domingo, 6 de outubro de 2019

ENTREVISTA SOBRE "O QUE É VER": 3.ª parte

Terceira parte da minha entrevista à artista plástica Margarida Alves: 

 Carlos Fiolhais - "Algo semelhante no plano das relações interpessoais: os nossos olhos por vezes não vêem logo alguém que está à nossa frente porque não estamos à espera dessa pessoa.

 Margarida Alves - Entramos então no funcionamos do cérebro…

 Carlos Fiolhais - Exactamente, em questões do foro das neurociências. Os nossos olhos são coisas extraordinárias porque se habituaram a reconhecer padrões. Nós só estamos aqui na Terra, só fomos bem sucedidos na longa história evolutiva, porque os nossos olhos, sempre ligado ao cérebro, asseguraram a nossa adaptação ao ambiente. Os nossos olhos são um prodígio! Captam ao máximo a luz que a nossa estrela, o Sol, emite ao máximo, quer dizer, a luz visível está no pico de toda a luz que o Sol emite. Nós não vemos raios X nem ondas de rádio, mas o Sol também emite raios X e ondas de rádio, embora muito menos do que ondas de luz visíveis. Portanto, nós ao longo do percurso da evolução dos olhos - e, já agora, não fomos só nós, mas todos os animais com ligeiras excepções - adaptámo-nos à luz da nossa estrela. A nossa vista é limitada devido à nossa contingência biológica. As abelhas conseguem ver com luz ultravioleta, alguns répteis conseguem ver com luz infravermelha, mas são casos raros, pois a maior parte dos animais vêem tal como nós a luz visível, havendo naturalmente diferenças na percepção das cores. Tal significa que quem mandou na visão animal foi o Sol. No processo de evolução biológica, os mais bem sucedidos foram aqueles que conseguiram captar melhor a luz do Sol. Por exemplo, existem vertebrados sem olhos, mas onde é que eles vivem? Em cavernas, onde a luz do Sol não chega. Os olhos não iriam contribuir em nada para o sucesso desses seres vivos. Eles conseguiram sobreviver sem olhos.

Os morcegos, que habitam as cavernas, têm olhos, mas curiosamente não vêem com eles, mas sim com os ouvidos. Eles têm um sistema de radar que a Natureza desenvolveu. Lá está, a imaginação da natureza é prodigiosa… É fantástica a capacidade dos morcegos de emitirem e receberem ultrassons. Nós inventámos o radar de forma independente dos morcegos, mas depois percebemos que os morcegos fazem exactamente a mesma coisa que o radar. Emitem ondas sonoras que batem em obstáculos e que depois são recolhidas pelos ouvidos. Eles vêem com os ouvidos! Esta foi mesmo a expressão que o padre e cientista italiano Spallanzani usou no século XVIII para descrever o fenómeno da ecolocalização. Ele fez experiências em que morcegos que cegava previamente - a sociedade protectora dos animais proibiria hoje essas experiências- .eram postas a voar dentro de uma torre em que havia fios com chocalhos pendurados e verificou que os morcegos evitavam os choques com os fios, que seriam detectados com sons. Nós não precisamos de radar, como os morcegos, não somos ‘X Men’ com esses poderes, porque não vivemos em cavernas… Um controlador aéreo tal como os morcegos sabe onde estão os aviões porque há ondas de radar que são emitidas, batem no avião e voltam. Essa observação, como a dos morcegos, é indirecta, mas não deixa de ser uma observação.

Os nossos olhos aproveitam ao máximo a luz da nossa estrela. Se vivêssemos perto de outra estrela que emitisse principalmente luz infravermelha, os nossos olhos seriam câmaras de infravermelhos e nessa altura veríamos à noite porque com luz infravermelha consegue-se ver à noite. Mas nós não nos contentamos com a visão dos nossos olhos. A tecnologia que desenvolvemos permite-nos um aumento da percepção da realidade, permite-nos uma “realidade aumentada”. A realidade não deixa de o ser por estar a ser vista sem ser com os olhos, ou melhor, por chegar aos olhos indirectamente, porque os olhos continuam a ter um papel assaz relevante. A visão, digamos, é o sentido sem o qual ficamos muito limitados. Como vamos explicar o que é o céu estrelado a uma pessoa invisual de nascença? Com sons? Com tacto? É muito difícil.

 Somos uma espécie que nasceu e cresceu no planeta Terra. O Homo Sapiens não é muito antigo comparado com a idade da Terra: tem cerca de 300.000 anos, quando a Terra tem 4,5 mil milhões de anos. Antes houve o Homem de Neandertal, que coexistiu com o Sapiens, e outros hominídeos sobre as quais estamos a aprender muito graças a estudos de genética antiga. Já tinham olhos, mas não tinham o cérebro tão desenvolvido como nós temos hoje. Somos os únicos seres inteligentes na Terra e no Universo. De resto, Só conhecemos seres vivos na Terra e a espécie humana tem características únicas. Somos a única parte do mundo que o consegue compreender o mundo, o que nos confere uma enorme responsabilidade. Como é que, num Universo tão grande, os observadores inteligentes sejamos só nós? O céu é imenso e tanto quanto sabemos, só existimos nós para o ver, compreender e admirar. Ao falar de admiração estou a pensar num lado estético, pois há um elemento estético na ciência.

 Margarida Alves- Há um elemento estético?

 Carlos Fiolhais - A ciência, no seu caminho de descoberta do mundo, no seu percurso de descoberta dos constituintes da matéria e das relações entre os constituintes, recorre à observação, á experimentação e ao raciocínio lógico. Não pode fazer experimentação à escala do muito grande, mas, num acelerador, tentamos recriar o princípio do mundo, ou, pelo menos, uma parte do início do mundo, usando colisões extremamente energéticas. A matemática é importante na ciência porque constitui um guia para a mente: é a melhor maneira de assegurar que não nos enganamos. Oferece-nos um conjunto de regras que, se forem bem usadas, a partir de certos princípios, permite chegar a certas conclusões e estas estarão certas se os princípios estiverem certos. A matemática é uma grande bengala para o pensamento, pois não o deixa cair. É talvez a matemática o maior separador entre a actividade científica da actividade artística. O artista em princípio não precisa de matemática, mas apesar disso há profundas ligações entre ciência e arte. Uma delas é que a ciência também usa princípios estéticos. Os cientistas falam muitas vezes de beleza, de harmonia. O que é a harmonia? Uma certa conformidade entre as partes de um conjunto. Reconhecemos por vezes uma relação entre as partes que nos parece agradável. Há aqui um elemento subjectivo, pois o juízo do que é harmonioso varia de indivíduo para indivíduo. Também há a questão da quebra de harmonia: reconhecemos alguma desordem no seio da ordem. Uma ordem absoluta pode não ser muito interessante para a mente. Ordem significa sempre uma conformidade das partes, ao passo que desordem significa uma quebra dessa conformidade das partes. Ora a busca da ordem em ciência, perturbada ou não por ocasional desordem, obedece a princípios estéticos. A matemática desempenha nessa busca um papel. Um físico famoso afirmou um dia que preferia mais ter beleza nas suas equações do que ter uma correspondência à realidade. Se a Natureza não está de acordo com equações que são reconhecidas como belas, então é porque os fenómenos em causa estão a ser obscurecidos por outros. A grande confiança dos físicos teóricos nas suas equações provém muitas vezes de elas estarem baseadas em padrões de beleza. Há por vezes quem diga: “A Natureza não pode ser de outra maneira porque a matemática é bela” Einstein, por exemplo, cogitou uma teoria para descrever a gravidade, a teoria da relatividade geral, que foi confirmada pela observação de um eclipse solar na ilha do Príncipe em Sobral, no Brasil, há cem anos. Houve quem lhe perguntasse: “E se a sua teoria está errada?” Ele usou uma metáfora teológica: “Se não fosse assim, eu teria pena do bom Deus”. Ele não estava a falar de um criador no sentido religioso, mas sim a afirmar que o mundo não poderia ser de outra maneira dada a harmonia descrita pelas equações.

Esta relação entre ciência e arte é profunda e difícil de explicar – e, portanto, difícil de perceber. Mas há mais relações. Há, logo à partida, uma relação trivial entre a arte e a ciência. É sempre o ser humano que tenta penetrar em mistérios, que procura iluminar o que está escuro. A ciência vai sempre à procura do mistério e a arte, a seu modo, também vai. A arte é sempre uma tentativa de desvendar um mistério, um mistério que existe pelo menos para o artista. Os mistérios são evidentemente diferentes em ciência e arte. Ciência e arte têm metodologias diversas para encontrar respostas às questões que colocam. Num caso e noutro serão sempre respostas provisórias, pois a procura continua. O método científico permite, graças ao exercício da crítica, detectar erros em enunciados anteriores. Uma marca diferenciadora entre a ciência e arte é que na ciência nós podemos explicitar erros, ao passo que em arte é muito difícil indicar o que é um erro. O que é uma obra de arte errada? A crítica, que também existe, poderá dize : “preferimos esta peça de arte à outra.” Eu estou convencido que, tal como na ciência, a validação das obras de arte é feita bem mais pela crítica dos pares, do que pela crítica pelo público. Se formos ver a história de arte, as validações, por exemplo o cubismo de Picasso, não foram logo ovacionadas pelo público. Mas foram ovacionadas pelos pares. Na literatura isso é muito nítido. Há escritores que são reconhecidos pelos pares e não pelo público, pelo menos não o são imediatamente. Em ciência podemos falar de progresso, no sentido em que existem erros que já foram eliminados, mas, na arte, também se poderá falar de evolução, mas progresso poderá não ser a palavra certa. Juan Miró dizia que não havia progresso nenhum entre as suas pinturas e as de Altamira.

Enfim, há notáveis diferenças entre arte e ciência, mas o elemento estético está presente nos dois casos. E na ciência também está presente a imaginação que se costuma associar sobretudo à arte. Nós temos de prever antes de ver e prever é sempre imaginar. A Natureza é só uma e, de algum modo, o real concretiza-se de entre uma multiplicidade de soluções imagináveis. O artista tem à sua disposição uma infinidade de soluções mas o físico ou, mais em geral, o cientista tem de encontrar a solução que a Natureza escolhe. É como se a imaginação do cientista estivesse contida dentro de uma camisa de forças, aquelas camisas que alguns loucos eram metidos em hospitais psiquiátricos, Os cientistas são limitados porque são obrigados a tratar da realidade, mas esta é extraordinariamente rica. Ao procurar a imaginação da Natureza, temos de ser extraordinariamente imaginativos. Parece ser uma imaginação enorme a que é precisa para perceber a matéria negra e a energia negra. Um dia perceberemos essas questões, mas não temos ainda imaginação suficiente. Por outro lado, pode-se dizer que a mente dos artistas voa para bem longe do real, mas olhamos para as obras que os artistas fazem e percebemos que existem limitações imposta pela realidade. O artificial está condicionado pelo natural. É verdade que os artistas são mais livres do que os cientistas, mas não são completamente livres porque são seres limitados pela sua visão e pelo seu cérebro, que lhes foram proporcionados pela evolução e que lhes permitem relacionar-se com o ambiente. Se existirem extraterrestres inteligentes, seres com experiências biológicas diferentes das nossas, talvez também sejam capazes de fazer arte, mas seria provavelmente uma arte muito diferente da nossa. Os surrealistas pensavam que estavam a trabalhar com sonhos e com coisas absolutamente delirantes, mas estavam a trabalhar com sonhos que são processos naturais que ocorrem para uma boa manutenção do cérebro. Julgamos até que muitos animais também sonham.

 (continua)

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