terça-feira, 15 de outubro de 2019

O DESTINO DO MUNDO E A DEMOCRACIA LIBERAL

Texto de Guilherme Valente publicado no dia 12/10/19 no OBSERVADOR (aqui com um pequeno ajustamento no ponto 3).  

"Um discípulo perguntou um dia a Confúcio: “Mestre, se tivesses o poder qual seria a tua a primeira medida?  “Rectificar os nomes”, respondeu o Mestre. "

 ”No século XXI as classes dominantes e superiores ocidentais têm de aprender de vez a viver ligadas ao povo. “ Ch. Guilluy, géografo e ensaísta explicando a crise dos Coletes Amarelos.

 1. Quando falo em diferenças entre direita e esquerda refiro-me à esquerda e direita democrático-liberais.

 E porquê justapor a “democrático” o “liberais”? Se não há “democracia” sem liberdades, incluindo, determinante, a de mercado (“o doce mercado” de que falavam Condorcet e Voltaire); sem direitos humanos (que o iliberalismo não reconhece ou viola); direitos humanos como tal teorizados e politicamente instituídos no Ocidente pelo Liberalismo, pelos liberais, que foram também eles os criadores do ensino público, não foi o comunismo - Estaline até dizia que era crime proibir o trabalho infantil?

 Coloco o “liberal” para distinguir da pseudo “democracia” que os iliberais da extrema-esquerda, roubando o nome legitimador, designam “democracia popular” - ignorando a redundância.

 2. O destino do mundo depende de novo da democracia liberal, da lucidez e determinação dos democratas-liberais. Em Portugal, de um Partido Socialista que recupere os seus ideais fundadores, iluministas, humanistas, universalistas, e de uma direita que assuma informada e sem tibieza a sua inspiração democrática-liberal e democrata-cristã.

 “Democracia” significa manifestação, representação e realização da vontade comum. “Liberal” consagra a autonomia do indivíduo face à colectividade. «Democracia» remete para um movimento centrípeto, uma preocupação de unidade. “Liberal” para um movimento centrífugo, reafirmação do diverso, do múltiplo. É o encontro, a tensão e a interacção de um e de outro pólo, espécie de Yin e Yang político, que gera a harmonia e o dinamismo das sociedades democrático-liberais. É nessa natureza híbrida que está a sua força.

 Como escreve Raphaël Gluskmann (1), “É a oscilação permanente entre esses dois pólos opostos que permite às nossas sociedades serem livres e progredirem”.

 Se o movimento de balança entre ambos for interrompido, se a contradição que os anima deixar de ser dinâmica, “se um dos pólos se tornar dominante, a democracia deixará de ser liberal ou o liberalismo deixará de ser democrático”. Será o caso, em maior ou menor grau, de experiências de sucesso económico recentes, caracterizadas pela liberdade de mercado, mas restritivas politicamente.

 3. Os dois polos da democracia-liberal que referi vivem ameaçados por dois extremos, que são faces simétricas do iliberalismo: a utopia colectivista, representada pelos totalitarismos da extrema-esquerda e da extrema-direita.

 Extremismos agora rearmados pelos “novos cavaleiros do Apocalipse”, como bem designa Amin Maalouf**, “os três escolhos do nosso tempo: turbulências identitárias, islamismo radical, ultraliberalismo” (termo bem mais apropriado do que “neo-liberalismo), este a corromper o papel regulador que um verdadeiro Estado liberal deve exercer.

 Totalitarismos cada um de algum modo agora alimentado pelo deslizamento dos democratas liberais para as causas delirantes das “politicas de identidade”, anti-humanistas, atomização social extrema, regressão tribalista, que se não for detida conduzirá ao “naufrágio das civilizações”, como escreveu Maalouf. É nas gerações com menos de 50 anos que não foram contemporâneas do nazismo nem descobriram a realidade da Guerra, da URSS e dos países do Leste (e também nas sobras idosas que não fizeram a destalinização); é entre os que não têm consciência do progresso e da qualidade de vida na Europa e no Mundo, inimaginável antes do triunfo da democracia liberal — todos esses que a escola conduziu e continua entre nós sem resistência a conduzir à amnésia da História — que os iliberalismos recrutam hoje.

 4. Diferenças dinâmicas entre esquerda e direita liberais que não são hoje exactamente as que eram antes, por ter havido apropriação mútua de ideias e soluções que o tempo e a História consagraram.

 Segundo Alain Juppé***, “a direita dá uma importância maior ao indivíduo, à sua autonomia, capacidade de iniciativa e espírito empreendedor”. A esquerda dá “maior relevância ao colectivo, ao grupo, é socialisante, enfim”. [Sublinhados meus.]

 Sendo ou não absolutamente rigorosa esta distinção, o que é relevante é as diferenças enriquecerem as soluções. São um fruto inestimável da liberdade, condição do vital debate de ideias. Na democracia liberal não há inimigos, há adversários e divergências criadoras. Não há soluções impostas, nem imposição de ideologias e de crenças. Por isso o convívio e a emulação democráticas fizeram progredir o mundo. Geraram a paz, desenvolveram o mundo e melhoraram a vida dos seres humanos. Determinaram a construção da unidade da Europa. Tudo isto espinhas na garanta do totalitarismo, da extrema-esquerda e da extrema direita, anti-liberais, nacionalistas e xenófobas.

 5. Se esse movimento de balança se desequilibrar, se um pólo prevalecer sobre o outro, a democracia ficará fragilizada e será vulnerável aos demónios que em permanência a ameaçam. É à luz deste mecanismo que devem ser compreendidas as dificuldades crescentes que em vários países conduziram e estão a conduzir ao poder o populismo, antecâmara do fascismo. E porquê? O que agora fragiliza a democracia-liberal é o que foi razão do seu sucesso.

Guilherme Valente

 * Raphaël Gluskmann, “Les enfants du vide”, Allary Éditions, 2019

** Amin Maalouf, “Le naufrague des civilisations”, Grasset, 2019.

*** Entrevista ao semanário “Le Point”, 2018.

1 comentário:

Mário Reis disse...

Caramba, o que é que este senhor disse ou quer dizer mesmo?

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