quinta-feira, 31 de outubro de 2019

APOCALIPSE AGORA?

Meu prefácio ao livro de David Wallace-Wells Terra Inabitável (Lua de Papel), que acaba de sair:

Os relatos do apocalipse sempre inquietaram a humanidade. A inquietação que nos lança David Wallace-Wells, jornalista norte-americano da revista New York, neste livro ora publicado em português numa boa tradução, é que os tempos do aquecimento global que vivemos – o aquecimento do planeta devido à emissão pelos seres humanos de gases de efeito de estufa – poderão dar lugar a tempos de apocalipse, se não fizermos desde já o que é preciso fazer.

Ele escreve num estilo muito vivo – o estilo de quem não quer morrer tão cedo –, compondo uma narrativa bem informada pelos dados da ciência a respeito da nossa casa comum.

O mundo parece lançado num caminho de destruição? Pois temos a obrigação de o salvar e, acrescenta o autor com base nas fontes seguras que recolheu, é ainda possível salvá-lo.  Como ele sumaria, a nossa geração permitiu que o clima entrasse num caminho agonizante. Mas a próxima pode ainda evitar o pior.

Tal como a Primavera Silenciosa, de Rachel Carson (Pórtico, 1966) chamou em 1962 a atenção para a destruição química da natureza, tal como o Fim da Natureza de Bill McKibben (Terramar, 1990) chamou, logo em 1989, a atenção para os perigos das alterações climáticas, perigos amplificados social e politicamente em 2006 com o filme e o livro Uma Verdade Inconveniente (Esfera do Caos, 2006) de Al Gore, o presente A Terra Inabitável surge como um grito de alerta. Humanos: tereis de mudar de vida, se quereis evitar o fim bastante próximo.

Há quem o tenha ouvido – o ensaio da New York, publicado em 2017, que foi a semente para o presente livro teve mais de seis milhões de leitores não só nos Estados Unidos como em todo o mundo. A controvérsia estalou. Participou nela uma parte da comunidade científica que trabalha em alterações climáticas, que, não tendo grande coisa a apontar quanto aos factos transmitidos, achou que a narrativa construída sobre eles era exagerada, que o tom era desnecessariamente alarmista. O autor defendeu-se, numa entrevista ao site Gothamist, dizendo que não lhe “parecia plausível que existisse um risco maior em assustar demasiado as pessoas do que em não as assustar suficientemente… Mas, na minha opinião, se houver a mínima hipótese, um por cento que seja, de o ser humano desencadear uma reacção em cadeia capaz de extinguir a sua espécie, então essa informação devia ser tornada pública e as pessoas deviam reflectir sobre isso.” Parece-me difícil contrariá-lo.

Algumas das informações deste livro que podem e devem fazer-nos pensar: um voo de ida e volta entre Londres e Nova Iorque causa a fusão de três metros cúbicos de gelo do Árctico; estamos hoje a queimar 80 por cento mais carvão do que estávamos no ano 2000; a produção de plástico no mundo está a aumentar a tal ponto que, em 2050, deverá haver mais plástico do que peixe nos oceanos.
Apesar de ainda existirem alguns negacionistas isolados (o mais relevante dos quais é Donald Trump, aparentemente um caso perdido), eminentes vozes globais têm chamado a atenção da população do planeta para as ameaças que pairam sobre ele.

O papa Francisco, que tem formação superior em Química, publicou em 2015, precisamente no ano do Tratado de Paris, a encíclica Laudato si’. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, de resto citado por Wallace-Wells, apareceu recentemente na capa da Time como um náufrago com água pelos joelhos, na costa de Tuvalu, na Polinésia, uma terra que parece condenada à submersão. Começaram a aparecer vozes da nova geração, a geração que terá de reparar os estragos para viver uma vida longeva: a sueca Greta Thunberg, de 16 anos, que iniciou uma greve em defesa do clima, uma greve que teve eco em Portugal, e o movimento de desobediência civil Extinction Rebellion, que suscitou a atenção entre nós quando um jovem invadiu, em Abril passado, o palco onde estava António Costa a festejar o aniversário do PS.

Portugal, por estar à beira-mar e no Sul da Europa, é um país bastante vulnerável às alterações climáticas. A Agência Europeia do Ambiente calculou, há dois anos, que Portugal já teve 7 mil milhões de euros de prejuízo entre 1980 e 2013. Os prejuízos depois disso agravaram-se muito. Os efeitos são conhecidos: erosão costeira, vagas de calor e, nos últimos anos, grandes incêndios, com perdas de dezenas de vidas humanas. Os fogos de 15 de Outubro de 2017 foram despoletados pelo furacão Ophelia, o maior de sempre no Atlântico Oriental, cujos efeitos, conforme assinala Wallace-Wells, chegaram até à Irlanda. E o jornal britânico The Guardian encabeçou um artigo sobre A Terra Inabitável com uma tenebrosa fotografia do grande incêndio de Monchique de Agosto de 2018.
A ciência identificou, sem dúvidas, o problema e forneceu algumas pistas para uma eventual solução (há já na história um exemplo notável: todos os países do mundo ratificaram o Protocolo de Montreal, de 1987, que baniu os clorofluorcarbonetos, fazendo diminuir gradualmente o buraco na camada de ozono). Mas a questão está longe de ser do domínio da ciência. Convoca, como bem narra Wallace-Wells, a sociedade, a cultura, a economia, a política e até a religião. Como a ameaça é global, só uma resposta global poderá ser verdadeiramente eficaz. Apocalipse agora? Como termina o autor: “Cada um pode escolher a sua metáfora. Não podemos é escolher o planeta, que é o único a que cada um de nós algum dia chamará casa.”

Carlos Fiolhais
Professor de Física da Universidade de Coimbra

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Será que podemos fugir ao destino? O destino, por natureza, é triste e, muitas vezes, trágico. Não precisamos de ser muito sábios para constatarmos a realidade do destino. Tudo isto é fado, tudo isto é triste, ou, tudo isto é triste, tudo isto é fado. Não se trata de optimismo ou de pessimismo. Optimismo ou pessimismo, cada um toma o que quer.
Talvez nenhuma espécie, como a humana, viva o dilema e o problema de as coisas não terem de ser como são, mas serem como são, apesar de não deverem ser como são.
Volto ao princípio: será que podemos fugir ao destino?
Tudo indica que sim e tudo indica que não. O big-bang pode ser entendido como uma fuga ao destino. No entanto, cumpriu o destino. E, assim, tem sido ao longo de milhões e milhões de anos. Nos últimos séculos, os registos históricos revelam que a humanidade tem estado tão obcecada a fugir ao destino, que quase não tem tempo nem disponibilidade para mais nada. E, assim, cumpre o seu destino de fugir ao destino.
Inventa-se tudo, pensa-se em tudo, sacrifica-se tudo, faz-se tudo, para escapar ao destino. Mas o destino é cada vez mais destino.
Sem querer ser "totalitário", diria que todas as revoluções, toda a discussão e dialéctica entre o bem e o mal, toda a cultura e todas as guerras, quiseram moldar o destino e conseguiram-no.

Alarme disse...

http://www.paroquias-sintra.pt/actualidade/enciclica-do-papa-francisco-laudato-si-sobre-o-cuidado-da-casa-comum-1

Documento em PDF

E viu Deus que era bom disse...

Se tudo for caos e a realidade apenas uma tentativa de regulação desse caos, então não há destino. A ordem é falsa.

Se tudo não for caos e a realidade se construir ao espelho de uma Geometria oculta, então há destino. A ordem força o caminho.

De uma forma ou de outra, a Humanidade terá fim. A sua existência é insustentável.

Anónimo disse...

Na Matemática, podemos ir de menos infinito a mais infinito; mas a Física é que manda: somos uns seres finitos, em todos os sentidos.

NOVA ATLÂNTIDA

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