sábado, 2 de novembro de 2019

O "fantástico pavilhão"


Rosa Mota é uma heroína. Fez-se uma heroína. É certo que isso aconteceu com o suporte de outros, mas nem por isso deixa de ser reconhecida como uma heroína, pois o que ela conseguiu na sua carreira de desportista só está ao alcance de poucos, de pouquíssimos.

Deu-se o caso de ter ganhado a medalha suprema da maratona, mas se a não tivesse ganhado continuava a ser uma heroína pois o seu espírito, a sua tenacidade, a sua delicadeza é de heroína.

Heroína como os deuses e deusas das várias mitologias, desde as muito antigas e até às muito modernas, criaturas que, pelos seus feitos extraordinários, conseguiram superar limitações que a condição humana impõe ao comum dos mortais. E os mortais comuns, como eu, reconhecendo o valor desses feitos, olham-nas com o respeito que elas têm, porque o conquistaram.

Encontrei uma vez Rosa Mota, que me cumprimentou, como cumprimentou todos os presentes, com a simpatia de quem é mortal e que até pensa que o é, mas eu sei bem que não o é, portanto, respondi timidamente ao cumprimento, sentindo-me minúscula face à grandeza daquela mulher pequena e magra, um pouco inclinada, parecendo débil até. Se ela não se tivesse dirigido a mim, nunca teria tido a coragem de me dirigir a ela, nunca.

Das poucas vezes que entrei no pavilhão que sucedeu ao Palácio de Cristal e a que foi dado o seu nome, entristeceu-me que o espaço não lhe fizesse jus. Mas, enfim, esperava que um dia alguma entidade pública percebesse isso e empregasse devidamente dinheiros públicos num edifício público, dignificando a figura que o baptizava, a qual, pelo seu exemplo de vida, se tornou pública.

Enganei-me redondamente: dinheiros privados, falaram (presume-se), de forma sedutora, através de um consórcio, à câmara da cidade onde esse pavilhão está, para que ela permitisse a sua super-hiper-modernização, a que acresceria uma "renda" para a autarquia durante vários anos. Dito e feito: depois de uma renovação radical e em tudo inovadora, serve agora para eventos desportivos, científicos, empresariais, com destaque para concertos, acolhe exposições, permite o lazer e também comer, etc. etc, etc. Tudo muito ergonómico, muito dinâmico, muito funcional.

É claro que esta filantropia não é uma qualquer, é a "filantropia empresarial", que se pauta pelo velho princípio: "não há almoços grátis". Neste caso, o preço mais imediato que se pagou foi a subalternização do nome de uma heroína em relação ao nome de uma marca de produtos. Foi dito por representantes da autarquia e do consórcio/empresa que isso não tinha qualquer relevância pois o seu nome, afinal, estava lá: mantinha-se.

(Subjacente está algo mais refinado: tem Rosa Mota, e todos nós com ela, de agradecer a benesse de o seu nome se manter, pois terá sido dito, sem qualquer pudor - veio nos jornais - que "a primeira designação proposta foi recusada porque fazia desaparecer o nome Pavilhão Rosa Mota". Não posso deixar de perguntar, de mim para mim, sem querer saber a resposta: de quem será a "ilustre" cabeça de onde saiu tal proposta?!).

Mas há outro preço muito mais elevado a pagar e com juros inimaginavelmente crescentes. Tem ele duas vertentes: uma vertente é o triunfo da arrogância de algumas empresas que, chegando a um certo topo, acham-se no direito de usar e abusar daquilo que é público, de se apropriarem de símbolos a que muitos dão valor, de pôr e tirar isto e o outro, conforme as suas conveniências; outra vertente, é a anomia de alguns políticos que, gerem "a coisa pública" como se ela fosse privada, que não cuidam do que é de todos e que, sobretudo, permitem, os mais diversos abusos contra a cidadania, isto para serem "agradáveis" a quem os elege.

Sob o ponto de vista simbólico a secundarização da designação "Pavilhão Rosa Mota" em relação à marca da empresa bem como o tamanho reduzido das letras da primeira quando comparada com o tamanho gigante das letras da segunda, não deixa dúvidas acerca do que se impõe (do que alguns impõem) que uma sociedade pense:
mais importante, muito mais importante, do que transcender a condição humana pelo esforço, pelo brio, pela honestidade, sendo-se tão-somente humano,
é produzir e consumir, é ser-se "coisamente".
Percebe-se bem "a mensagem". Tê-la-ão percebido verdadeiramente os que encheram o concerto de abertura do fantástico pavilhão? Mesmo aqueles que disseram que sim, que a perceberam, sentiram como mais forte o apelo ao divertimento (aqui).

2 comentários:

PANCINHAS, O PAVILHÃO disse...

Creio que, no Porto, a casa onde terá nascido o Infante D. Henrique que tem um Museu, em próxima remodelação, não sei se de fachada ou de Exposição Permanente, se passará a chamar "A TASCA DO PINGUINHAS".

Anónimo disse...

Não é o nome da Rosa que está em causa!
O Palácio de Cristal é que nunca deveria ter mudado de nome.
É tão ridículo como chamar Ponte 25 de Abril à ponte que Salazar mandou fazer, em Lisboa, entre as duas margens do Tejo, ou apear a estátua do Marquês do seu alto pedestal, substituindo-a pela do Doutor José Manuel Durão Barroso!

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