quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Não, a violência não é normal nem tolerável na escola

Na passada segunda-feira, o programa de debate televisivo "Prós e Contras", da RTP 1, foi, mais uma vez, dedicado à escola (leia-se, porque estava implícito, escola pública). O título, "Escolas sob Pressão", pretendeu dar destaque a agressões físicas e verbais (de que se tem dado ampla notícia) que envolvem alunos, pais, professores e funcionários.

Tentei ver o programa enquanto estava a ser transmitido, mas confesso que não fui capaz de assistir a mais do que alguns minutos: o que está em causa é demasiado importante para não me incomodar profundamente. Vi-o agora e não quero referir-me a ideias peregrinas (por exemplo "educar as emoções", "mudar os métodos porque estamos no século XXI", "os currículos têm de ser revistos" mais uma vez?!, a "escola tem de estar mais aberta à sociedade", etc.) que surgem nestas ocasiões, bem como relatos de "experiências pessoais" distanciados do vulgo, incólumes a qualquer problema (dando a entender que "isso" acontece aos outros, noutras escolas).

Noto, porém, o relato de um professor, também director de um agrupamento, Luís Sottomaior Braga, que me impressionou sobremaneira pelo discernimento de ter percebido que um ambiente escolar não normal, não tolerável poderia passar a ser percebido como normal, como tolerável. Depois de ter sido agredido por várias vezes, e de ter convivido com agressões frequentes, houve um momento de sensibilidade e lucidez que o levou a abandonar as funções de direcção. Nas suas palavras:
"... fui agredido por uma senhora no gabinete... percebi que já não estava a sentir o que se deve sentir numa situação destas e a reflexão que fiz levou-me a achar que não devia continuar. Portanto, senti aquela sensação de vazio quando somos agredidos, insultados, ameaçados de morte e isso já se [havia tornado] uma coisa que encaramos com alguma normalidade".
A normalização da violência em contexto escolar e o juízo que paira de que os agredidos, por fazerem alguma coisa ou por deixarem de fazer, têm culpa, conduz ao que o escritor Valter Hugo Mãe contou há poucos dias (aqui):
"Numa escola, quando me recebiam em grande festa, o alarido escondeu um gesto horrível que só eu vi. Um professor ainda jovem, tímido e algo frágil, foi surpreendido por um aluno escondido atrás de uma porta que o esmurrou sumariamente. 
Não é fácil de explicar mas, quando seguia ao meu lado, ouviu o seu nome à passagem, inclinou o rosto para o vão entre a porta e a parede, e só eu, por um ínfimo e inesperado instante, vi o punho voando e ouvi a ameaça clara do miúdo: fodo-lhe o focinho. 
A diretora da escola dizia que a mãe de uma menina mandara um bolo. Outra menina pediu para fazermos uma fotografia. Comentavam que sou muito mais gordo na televisão. Diziam que talvez chovesse. O professor agredido apanhou um livro do chão, disse: agora não. Voltou ao meu lado na mesma expressão afundada de há pouco. Queria uma dedicatória. Pediu desculpa por haver sujado a capa (...). 
Eu não me canso de pedir respeito pela escola e pelos professores. O descalabro do Mundo incide sobre o universo escolar como uma bomba-relógio. Tudo o que falha se dissemina pelas crianças e pelos jovens. Mas julgo que ninguém pode desejar a degeneração do lugar onde os seus filhos se educam, o lugar onde o futuro se educa. A atenção à sanidade escolar precisa de ser prioritária. Não vai haver esperança para gerações mal formadas, admitidas à demasiada ignorância ou egoísmo (...). 
O digníssimo ofício de ensinar tem perigado por políticas sempre pouco consequentes, mas tem perigado mais ainda pela progressiva aceitação da humilhação dos professores. Os professores fazem a vida inteira o que poucos de nós aguentariam fazer por uma só hora: estão entre quatro paredes com vinte ou trinta crianças ou jovens tentando que aprendam algo enquanto tudo nos seus corpos, nas suas idades, pede movimento, ruído, enquanto trazem de casa a marca das crises familiares, tantas vezes a fome e a violência (...).
Dediquei o livro assim: peço-lhe que não tenha dúvida, é um dos meus heróis. Não é pelo medo que falhamos. É pela falta de coragem. Como conversámos, não está em causa desistir. Nem dos alunos, nem do futuro. Mas isso implica começar por não desistir dos professores.

1 comentário:

Anónimo disse...

É caso para dizer que a poesia não está na escola !!!
O relato triste do professor Luís Sottomaior Braga trouxe-me à memória um poema escrito no tempo da longa noite fascista:

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sem um mínimo disciplina em sala de aula, todos os projetos, planificações, grelhas e critérios de avaliação exaustivos são documentos vãos. Muito mais importante do que a papelada, tradicional ou digital, são as funções do ensinar e do aprender. É contraproducente obrigar meninos de 16, 17, 18, e mais anos, a aprender. Se estes meninos crescidos preferem bater e insultar os seus professores, deviam ser proibidos de frequentar a escola, sem prejuízo das sanções a que estão sujeitos conforme o articulado do Código Penal. Se nos ficarmos pela normalidade dos casos pontuais, que se vão transformando em casos residuais, a situações de violência e crime na escola só podem ir de mal a pior. Valham-nos as estatísticas das magníficas classificações escolares alcançados pelos nossos alunos, ao nível do Português, da Matemática e das Ciências, que fazem de Portugal um dos países mais avançados do mundo!

CARTA A UM JOVEM DECENTE

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