domingo, 17 de novembro de 2019
Minha entrevista ao Jornal do Congresso de Neurologia realizado na semana passada em Coimbra
"A Física está muito mais próxima da saúde e da vida das pessoas do que se pensa» Entrada: Intitulada «O cérebro do ponto de vista da Física», a conferência inaugural do Congresso de Neurologia 2019, marcada para as 12h00, na Sala A, vai ser proferida pelo Prof. Carlos Fiolhais, diretor do Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Nesta entrevista, o físico e professor catedrático reflete sobre a relação entre a Neurologia e a Física, a atualidade da inteligência artificial e o legado do Prof. António Egas Moniz, no ano em que se assinalam os 70 anos da atribuição do Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina a este neurologista português.
Pedro Bastos Reis- Que pontos de relação encontra entre a Neurologia e a Física?
Carlos Fiolhais- Em 1543, quando Copérnico publicou o seu novo sistema do mundo, com o Sol no centro, o médico Vesálio publicou o seu atlas sobre a constituição do corpo humano, com as figuras resultantes da anatomia, entre as quais o cérebro. É uma coincidência interessante… [risos]. Física significa Natureza, que inclui o corpo humano. Na Idade Média, os médicos eram chamados físicos, porque cuidavam do corpo humano. A Física está por todo o lado e está, decerto, no mais interessante dos lados, aquele que pensa, o nosso cérebro. O cérebro é o único sítio do Universo que tem capacidade de o compreender.
PBR- Quais os principais desenvolvimentos em Medicina que resultam da Física?
CF- A Física tem uma longa história de ajuda à Medicina e há um exemplo muito claro disso. No ano de 1895, na Baviera, o físico alemão Wilhelm Röntgen descobriu os raios-X, uma radiação invisível que conseguia revelar o interior do corpo humano. Hoje em dia, com técnicas mais sofisticados, como a tomografia axial computorizada [TAC], consegue-se obter imagens do cérebro que são extraordinárias, pela sua grande precisão. Talvez esta seja a contribuição mais importante que a Física já deu à Medicina – ver o interior do nosso corpo!
PBR:_ Que outras descobertas da Física estão a ser aplicadas no estudo do cérebro?
CF- Existem núcleos atómicos que são instáveis emitindo antieletrões, ou positrões, uma forma de antimatéria. Colocadas no cérebro, emitem raios gama, que podem ser detetados facilmente sendo, por isso, possível formar imagens do cérebro graças a essa radiação. Chama-se a essa técnica a tomografia por emissão de positrões [PET], uma prática clínica que se tornou corrente nos melhores hospitais. Por exemplo, é possível detetar a doença de Alzheimer através da PET, que é um exame funcional. E há, claro, as técnicas de Ressonância Magnética.
PBR- E ainda existem as contribuições menos óbvias…
CF- Claro! Os computadores vêm da Física assim como muitos algoritmos de que eles se servem. No início da Revolução Científica, tínhamos as observações astronómicas e as observações anatómicas, as duas à vista desarmada. Hoje em dia, a observação astronómica já se faz automaticamente e há software de reconhecimento de imagem que deteta eventuais alterações. Curiosamente, este tipo de software desenvolvido pelos físicos é útil também em aplicações médicas, porque, em vez de estrelas e galáxias, pode-se tentar encontrar pontos e manchas no interior do corpo humano, comparando imagens. A Física está muito mais próxima da saúde e da vida das pessoas do que se pensa.
PBR- Qual o papel que a inteligência artificial vai assumir no estudo do cérebro?
CF- A inteligência artificial ganhou ímpeto nos últimos tempos com o desenvolvimento do hardware, com máquinas mais poderosas, e do software, programas que incorporam melhores algoritmos. Hoje em dia, consegue-se fazer o reconhecimento de padrões em imagens muito rapidamente, o que representa um desenvolvimento enorme. Vou dizer algo que pode surpreender quem estiver menos informado: hoje em dia, o trabalho de médicos imagiologistas pode ser realizado por máquinas. Sei bem do valor do olhar clínico assente em longa experiência, mas, tal como um computador já ganhou ao campeão mundial de xadrez, hoje temos máquinas com excelente poder de reconhecimento de imagens que actuam com base em poucas regras básicas e que só necessitam de um treino curto.
PBR- Este ano, assinalam-se os 70 anos da atribuição do Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina ao Prof. Egas Moniz. Como vê o legado desta distinção para a Medicina portuguesa, particularmente para a Neurologia?
CF- Egas Moniz é não só um famoso neurocirurgião, como é também o cientista português mais conhecido à escala mundial. Foi premiado devido ao desenvolvimento da leucotomia pré-frontal, uma técnica que, com os avanços da farmacologia, não chegou até aos nossos dias. Por isso, ainda hoje, na minha opinião sem razão, há pessoas a pedir que lhe seja retirado o Prémio Nobel. Mas, nos anos de 1930 e 1940, era um tratamento novo e em muitos casos eficaz. Antes disso disso, Egas Moniz já tinha desenvolvido a angiografia cerebral, uma técnica tão importante que, por si só, já merecia o Nobel e que ainda hoje é actual. O que importa enfatizar é que, até agora, é o nosso único cientista português premiado pela Academia Sueca. Em condições difíceis e num contexto de escassa cultura científica, Egas Moniz conseguiu ganhar o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina, uma marca científica até agora inigualada entre nós.
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