Com a devida vénia e agradecimento, transcrevo a seguir o texto da apresentação que a professora Carla Fernandes fez do meu livro "Diálogos com Ciência", aquando do seu lançamento no passado dia 28 de Novembro de 2019, na livraria Bertrand, no Alma Shopping, em Coimbra.
“Diálogos com Ciência”, a
obra da autoria de António Piedade, bioquímico, investigador e comunicador de
ciência, não é uma novidade, mas antes uma retoma a que a editora “Trinta por
uma Linha” deu uma nova e feliz roupagem.
De entre os escritos
publicados pelo autor, estes revelam, com particular acuidade, a intenção de
conferir uma missão especial aos que se dedicam à investigação: tornar a
Ciência acessível a todos, em particular aos mais jovens.
Podemos interrogar-nos
para que serve a ciência se não for aplicada em contexto e/ou se não contribuir
para a evolução dos saberes do vulgar ser humano. Do ponto de vista
epistemológico, este é um aspeto que se discute há muito. De facto, a ciência e a tecnologia são
frutos da cultura moderna e pós-moderna que decorrem da investigação praticada
nos centros de produção do saber, normalmente situada sob a chancela do meio universitário.
Contudo, a forma como as descobertas científicas são divulgadas é uma questão
premente, considerando que a maioria dos artigos científicos são publicados em
revistas especializadas e o eco do seu impacto para a evolução do conhecimento
comum é tardio ou muitas vezes até
inexistente. Essa contradição entre a velocidade a que se produz o
conhecimento, freneticamente acelerado hoje em dia, e a lenta perceção dos
avanços realizados deve preocupar-nos... Se recuarmos ao século XX, já
Habermass (2007) se interrogava sobre qual seria o papel da ciência e a
função que a atividade científica
deveria desempenhar na sociedade. Na realidade, concluía o mesmo pensador, que
esta força libertadora da tecnologia trouxe com ela a instrumentalização,
transformando-se muitas vezes, paradoxalmente, num entrave à própria liberdade
humana. A bem do exercício do pensamento crítico e da capacidade de análise do
mundo pelos cidadãos, que se querem ativos e interventivos, a transmissão do
conhecimento científico e a comunicação em ciência são vetores de investimento
inalienáveis para um progresso sustentável.
Neste pressuposto, a atividade do cientista ganharia muito
em transformar-se com a comunicação de ciência, por forma a favorecer o acesso,
a difusão, a reflexão e, por inerência, a interdisciplinaridade, pois o diálogo
entre as ciências é algo primacial para uma construção equilibrada do saber
universal. Por outro lado, a comunicação com o mundo do qual partem todas as
questões é uma tarefa de básica honestidade. É como se eticamente lhe fosse
devida uma resposta às interrogações, não a verdade (que é sempre efémera), mas
uma descodificação de conclusões que, afinal, são um investimento de todos os
cidadãos.
Invocando o professor Rómulo de Carvalho,
lembramos que, em boa hora, expôs o truque da sua pedagogia: “Estimular é saber
tirar proveito das coisas, saber encantar, digamos, pôr as coisas em relevo,
mesmo as coisas insignificantes(…) Tornar pensáveis as coisas habituais que não
se pensam”. “Diálogos com Ciência” segue este esteio de tornar
atraente e pensável o que poderia ser aparentemente inócuo e o seu autor é o
exemplo desta tentativa salutar.
O
livro, dirigindo-se fundamentalmente a um público infantil e juvenil, consegue
captar também a atenção de leitores adultos, movidos de natural curiosidade ou
pelo interesse intrínseco por matérias
científicas. Isto faz dele um veículo de conhecimento transversal que começa no
próprio objeto (pela diversidade de conteúdos científicos que explora) e se
estende ao seu recetor, dotado de pluralidade.
A característica
dialógica, marcada desde logo no título, põe em relevo um modo de representação
do discurso que é efetivamente uma marca do estilo do autor neste género, que
oscila entre a veia literária e o foco
das diferentes temáticas científicas abordadas. Na verdade, estas narrativas
breves são, muitas vezes, construídas
com recurso a conversas de improviso que expõem, de modo simples, as questões
em torno de um determinado problema científico, que se vai desmistificando ao
longo da interação entre as personagens. Veja-se, a título de exemplo, a
composição química da lágrima, com reminiscências de Gedeão, explicada num tom
paciente pelo tio António em “O que tem a tua lágrima?”. As crianças,
naturalmente curiosas, questionam, os adultos respondem-lhes, com linguagem
clara, e dão exemplos. E assim o leitor vai sendo conduzido para a decifração
dos diferentes cambiantes da ciência, explorados em cada história.
Efetivamente, no seu
conjunto, estas mini-histórias, nas
palavras do autor do prefácio, o Professor Carlos Fiolhais, fazem transparecer
a ciência de uma forma natural e simples. Afinal, para compreender melhor o que
se aprende nas ciências está ao alcance de um piscar de olhos. Basta ler
histórias. Convocamos para esta nossa reflexão a conhecida afirmação de
Einstein (ícone intemporal da ciência), que, segundo Maria Emília Traça (1992: 23), sugere à mãe
de uma criança que lhe leia contos de fadas.
E citamos: “Era uma vez um famoso físico chamado Albert
Einstein, que um dia encontrou uma senhora extremamente desejosa de ver o seu
filho triunfar numa carreira científica. A senhora pediu ao sábio que lhe desse
conselhos sobre a educação do seu filho, em particular sobre o tipo de livros
que lhe deveria ler.
– ‘Contos de fadas’, respondeu Einstein, sem hesitar.
– ‘Está bem, mas que deverei ler-lhe em seguida?’,
perguntou a ansiosa mãe.
– ‘Mais Contos de fadas’, replicou o grande cientista
acenando com o seu cachimbo como um feiticeiro que prenuncia um final feliz
para uma longa aventura.”
Pois bem, é certo que a
narratividade favorece a compreensão leitora e talvez a ciência possa tornar-se
mais sedutora para todos se for comunicada de mãos dadas com o universo
ficcional, sem perder o rigor dos seus fundamentos.
As personagens deste
livro são inseridas numa ação povoada de água, peixes, plantas, códigos de ADN,
grupos sanguíneos, números e datas, comboios e lágrimas. Na verdade, de tudo
isto é composto o mundo humano. As entidades fictícias que povoam estas
micro-narrativas, com nomes comuns ou com nomes próprios de ordem comum (a
Maria, a Leonor, o Rui…), dotam de inegável universalidade as situações criadas
e implicam-nas diretamente com o real. Tal facto confere objetividade à ação,
colocando o leitor num universo de verosimilhança que o conduz à descodificação
de realidades tangíveis e cientificamente comprovadas. Veja-se, a título de
exemplo, o episódio narrado em “Primavera marciana!”, em que o predomínio do
discurso direto entre as personagens vai descodificando as noções científicas.
Não obstante, o pragmatismo que se requer numa explicação
científica não oculta a beleza que as palavras podem ter. A escrita, enquanto
processo de criação conduz muitas vezes a mão do autor para outras incursões ao nível do uso da
linguagem. O recurso à metáfora, a que a produção de Piedade não é estranha, no
esteio de outros homens de ciência que deram azo ao fio do artístico, como Adolfo
Rocha / Miguel Torga ou já citado Rómulo de Carvalho/António Gedeão, do qual se
assinalou o aniversário no passado dia 24 de novembro, data escolhida para assinalar Dia Nacional da
Cultura Científica pelo antigo Ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano
Gago, em homenagem ao professor, divulgador de ciência e poeta, sempre
preocupado com os aspetos pedagógicos associados à transmissão do conhecimento.
De facto, é notória na
produção destas histórias breves sobre ciência a cadência das emoções, de que
“Música a cores” é exemplo.
“O coração de Leonor
batia numa cadência agitada. Parecia que o coração queria saltar-lhe do peito e
ir dançar com ela e com as folhas que chovem das árvores no Outono. Mas não era
só por causa do sobressalto que se adicionava ao tambor cardíaco. Leonor estava ansiosa.
Procurava sons da Natureza ao longo do caminho desde a escola até à sua casa.
mas o barulho da cidade era tão intenso que não conseguia descortinar sons que
associasse a outras coisas que não fossem carros, aviões, comboios,
equipamentos de climatização, entre tantos outros elementos da orquestra
citadina.” (p. 29)
Tudo isto para introduzir um episódio sobre o cruzamento
entre a comemoração do Dia Mundial da Música e a biodiversidade. Afinal, a
música está por aí, basta escutá-la...
“Concentrou-se nestas
sensações e sentiu que as melodias a inundavam com uma paleta de cores que
variava e, consoante a tonalidade do trinado, era mais aguda ou mais grave”.
(p. 31)
Há, efetivamente, temáticas, que apelam ao mergulho
interior. Piedade não resiste à criação do belo e à linguagem simbólica e
estilizada quando nos narra a história de um nascimento em “Silêncio
Prodigioso”, onde se cruzam “olhares uterinos”:
- “Já eu existia, ou pelo menos um
frágil princípio de mim, e já comunicava sem tu saberes… mas o teu corpo
entendia a minha primeira palavra - diz Leonor aninhando o seu olhar numa
recordação amniótica, numa lágrima singular a brilhar na face de sua Mãe.
- Vi então a cor do teu silêncio, que
afinal ressoava no meu ventre, pronto para muitas e novas mensagens futuras.
De mãos dadas, sentadas
na margem do lago, Leonor e sua Mãe estão contemplativas, num silêncio
prodigioso.” (p. 23)
Mas, sosseguemos agora a
força das palavras e vamos ao objeto livro.
Esta edição renovada,
trazida à luz pela editora “Trinta por uma Linha”, oferece-nos algo mais para
além do trabalho dos processos de composição textual do autor, aplicados ao
conteúdo científico.
As ilustrações de Maria
Pimentel, que acompanham o(s) texto(s), tornam a leitura mais leve, mais
divertida, por aquilo que acrescentam ao código escrito, traduzindo
pictoricamente as ideias, mas conferindo também, em paralelo, a sua assinatura
como objeto artístico per si. A
apresentação gráfica a preto e branco adequa-se em pleno à natureza discreta da
publicação, deixando ao leitor outras pistas de reflexão sobre os diferentes
temas que sobressaem destes diálogos interdisciplinares com a ciência. Se
atentarmos na capa, note-se como se torna apelativa para os mais jovens, desde
o lettering escolhido para o título
até à ilustração, que evidencia uma jovem sorridente em interação com alguém,
numa observação expressiva do mundo e das suas coisas (o planeta, a natureza,
os seres vivos, o tempo... - todos os elementos que se constituem como assunto
de conversa neste livro).
Neste
livro, texto e imagem em uníssono - cada qual na sua forma, no seu
código
e legítimo universo semiótico - presenteiam-nos com a ciência, num
claro
diálogo entre o saber e a arte.
Carla
Fernandes
Bibliografia
Bibliografia
- HABERMAS,
Jurgem (2007). Ciência e Técnica como
Ideologia. Lisboa: Ed. 70.
- TRAÇA, Maria Emília (1992). O Fio da Memória. Do Conto Popular ao Conto
para Crianças. Porto: Porto Editora.
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