sábado, 23 de novembro de 2019

Há uma "crise da nova civilização que desenvolve características cada vez mais negativas"

Edgar Morin, sociólogo, filósofo, antropólogo, ensaísta francês esteve mais uma vez em Portugal. Na entrevista que a jornalista Márcia Rodrigues lhe fez nada disse sobre a educação escolar, mas o que disse tem tudo a ver com a educação escolar. Mais concretamente, sobre o pensamento dominante nas sociedades que a decidem e onde ela tem lugar, sociedades em profunda crise sob o ponto de vista de um pensamento humanista. 

É importante que professores e outros educadores atentem nas suas palavras pois elas não podem estar mais distantes da interpretação política que se tem feito daquilo que defende, nomeadamente no livro Os sete saberes para a educação do futuro, que a tutela declara ser a base da reforma curricular em curso desde 2015 (cf. o documento estruturante da reforma: Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, 2017, pp 5-6).

Eis o essencial do que disse nessa breve entrevista:
"Crise de pensamento, crise da nova civilização que desenvolve características cada vez mais negativas em detrimento das suas características positivas. Crise da humanidade, se quiser. E o que faz a unidade de todas as crises é que o destino da humanidade é agora muito incerto e muito ameaçado.
(...)
O pensamento político esvazia-se de todo o conteúdo. Havia um pensamento político que animava a esquerda, os socialistas, os comunistas, que era a herança do pensamento de Marx. Tudo isso se desintegrou. A direita tem uma posição que era reaccionária mas a própria reacção já não tem sentido. É o pensamento de direita, a direita em benefício, evidentemente, da elite e dos ricos. Portanto, crise de pensamento político.
(...)
Vemos os sinais de uma democracia que perdeu os seus fundamentos. E as múltiplas revoltas que vemos hoje no mundo (...) vemo-las em regimes completamente diferentes. O que há de comum com essas revoltas? É que desde os anos 80, desde há 30 anos, instalou-se no mundo um sistema a que chamam neoliberal, que é um sistema baseado em economias massivas em prejuízo das populações e dos trabalhadores em benefício unicamente de uma elite financeira e económica.
(...)
Hoje a Europa é um esqueleto vazio. Claro que esse esqueleto deverá ser salvaguardado mas não creio que nas actuais condições possamos encontrar o grande projecto cultural e humanista que era o projecto inicial.
(...)
[A minha força vital], o bem mais profundo de mim próprio [é], antes de mais, uma curiosidade omnívora, que tenho desde criança. As forças da vida estão em mim e afastam as angústias da morte. É por isso que continuo, sem saber exactamente porquê."

4 comentários:

Anónimo disse...

“Edgar Morin, sociólogo, filósofo, antropólogo, ensaísta francês esteve mais uma vez em Portugal. Na entrevista que a jornalista Márcia Rodrigues lhe fez nada disse sobre a educação escolar, mas o que disse tem tudo a ver com a educação escolar. Mais concretamente, sobre o pensamento dominante nas sociedades que a decidem e onde ela tem lugar, sociedades em profunda crise sob o ponto de vista de um pensamento humanista.”


Sobre a educação escolar, em Portugal:

O pensamento dominante sobre a educação escolar em Portugal é de esquerda e extrema-esquerda.
A principal função de uma escola, de qualquer escola, é ensinar. Evidentemente que, se um aluno entra na escola a morrer de fome, primeiro tem de se lhe dar de comer e beber, seja a escola de direita ou de esquerda, senão o aluno não vai conseguir aprender! Agora, partir desta evidência e concluir, à maneira esquerdista, que as escolas devem ser transformadas em hospícios, onde se acolhem ricos e pobres, doentes mentais e pessoas saudáveis, subalternizando a função de ensino-aprendizagem da escola, mas compensando todos os alunos com um belo diploma, que, à saída da escolaridade obrigatória, certifica um perfil de cidadão igual para todos, é um absurdo. Portanto, a escola inclusiva das aprendizagens essenciais e flexíveis, é absurda!
Na vertente do ensino-aprendizagem, a escola fascista de Salazar e Caetano tinha uma qualidade muito superior à escola de esquerda do “engenheiro” Sócrates e das doutoras Catarina Martins e Joacine Katar Moreira; só na vertente do apoio social, a escola esquerdista é melhor. Um grande apoio social, acompanhado por um desprezo do ensino-aprendizagem, está a matar a escola!

Helena Damião disse...

Estimado Leitor Anónimo
O pensamento dominante sobre a educação escolar em Portugal é o mesmo que domina em múltiplos países do mundo com regimes político-partidários de esquerda e de direita. Quem ter o poder de traçar os desígnios da educação escolar conseguiu um "modelo" que é supra regime. É um modelo económico-financeiro em que a justiça social, a igualdade, a dignidade e outros valores estimáveis estão arredados. E ninguém parece notar-lhe a falta.
Concordo inteiramente consigo quando diz que "a principal função de uma escola, de qualquer escola, é ensinar" (ensinar o que é da atribuição da escola, evidentemente), mas quem nos acompanha? Terá de concordar que cada vez menos pessoas nos acompanham. E, sim, é evidente que afirmar isto não é descuidar o cuidado (com o estado físico e psicológico dos alunos), mas isso é uma condição para ensinar, não é ensinar.
Estou convencida que o pior cenário da escola pública ainda não é este da autonomia e flexibilidade curricular, que vemos e que já estava em Portugal na reforma iniciada em 1996; o cenário evoluirá no sentido de reduzir a escola pública - usando palavras de Morin - a um "esqueleto vazio". Mas tenho a certeza de que a humanidade daqui a uns séculos conseguirá reedificá-la.
Cordialmente,
MHDamião

Anónimo disse...

Cara Helena Damião,

A massificação do ensino em Portugal também já chegou ao professorado e aos educadores de infância. Já raramente nos tratam por doutores, e se ainda não somos considerados proletários, apesar de sermos mais de cem mil trabalhadores, é porque, num país muito pobre, como é Portugal, a maioria do povo é miserável.
Portanto não se admire que a palavra de ordem entre os professores, que são uns funcionários públicos como outros quaisquer, é obedecer e calar. O ministério diz:
- Os professores e os educadores de infância têm uma ideia muito errada do que é ensinar! Ensinar, com um espírito de flexibilidade e inclusão, já não é só transmitir conhecimentos e competências por meio do pensamento e da experiência; agora, é, sobretudo, preencher imensa papelada burocrática que, só por si e à falta de exames justos e rigorosos, justificam o sucesso escolar pleno, quer dizer, sem reprovações e altas classificações.
E os professores anuem, preenchendo a papelada...
E assim, as autoridades podem dar largas aos seus delírios educativos, negando a necessidade de ensino especial, propriamente dito, a alunos com manifestas deficiências mentais, uma vez que um plano de remediação, preenchido por um professor qualquer, garante a aprovação obrigatória prevista na lei. Aqui chegados, começamos a entrar na quinta dimensão!
Salve-se quem puder!

Cordialmente.

O que é hoje o Homem? disse...

Sobre o sentido das coisas, um famoso poema em prosa de Baudelaire (O Estrangeiro):
- Quem é que tu amas mais, homem enigmático, diz: o teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou o teu irmão?
- Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Os teus amigos?
- Usas uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
- A tua pátria?
- Ignoro em que latitude fica.
- A beleza?
- Amá-la-ia de boa vontade, deusa imortal.
- O ouro?
- Odeio-o como vós odiais a Deus.
- Bom, o que é que tu amas, então, extraordinário estrangeiro?
- Eu amo as nuvens... as nuvens que passam... além... além... as maravilhosas nuvens!"

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