domingo, 13 de outubro de 2019

A História sem passado

“Esta oferta, que partiu do diálogo que temos mantido 
com os professores de História, é uma resposta 
à necessidade de valorização do conhecimento histórico 
e do património enquanto alicerces da identidade e da democracia.
Além disto, estrutura-se de uma forma coerente com as finalidades
previstas no Perfil dos Alunos: 
o desenvolvimento de espírito crítico e capacidade de interpretação
da realidade sustentado em conhecimento.” 

João Costa, Secretário de Estado da Educação, 2019.


Foi recentemente anunciada pelo Ministério da Educação e, logo de seguida, notícia nacional (por exemplo, aqui e aqui), a criação de uma nova disciplina destinada a todos os cursos do ensino secundário. Situa-se no 12.º ano, enquadra-se nas opções de "oferta de escola" e a sua designação é "História, Culturas e Democracia". 

A primeira palavra da designação conduzirá quem se preocupa com o desaparecimento da área do currículo escolar, a concordar com a decisão da tutela. Efectivamente, no ensino básico o seu tempo lectivo tem vindo a diminuir e, em certas escolas, é associada à Geografia, em projectos semestrais.

Mas, de seguida, dará atenção às duas palavras que se lhe seguem e, por certo, interrogar-se-á acerca do sentido de "História", que, sendo disciplina autónoma, fica a par do seu conteúdo ("cultura") e do seu fim (adopção de valores democráticos). Dará, também, atenção ao plural de "cultura", o que, por princípio, aponta não para o sentido que o texto aqui publicado lhe confere, mas para um sentido etnográfico, antropológico, sociológico, de diversidade de cultural.

Com estas dúvidas em mente, abrirá o documento orientador do seu ensino: Aprendizagens essenciais (de notar que foi dispensado um programa em favor desta estrutura, oficialmente válida para todas as disciplinas).

No preâmbulo lê-se que com a História Culturas e Democracia pretende-se ajudar alunos a interpretar o presente, a compreender o mundo actual, em que vivem e a terem pensamento crítico e reflexivo sobre temas da História recente. Pretende-se dar-lhes ferramentas para alcançarem uma consciência histórica, uma posição informada, crítica e participativa na construção da sua identidade individual e coletiva. Isto num "quadro de referência humanista", referência recorrente no discurso educativo... do futuro que se vê dispensar o passado.

Os grandes temas a tratar são quatro temas: A História faz-se com critério; Global e Local (Glocal) e Consciência Patrimonial; Passados Dolorosos na História; História e tempo Presente

Não vou pronunciar-me sobre eles a não ser para notar um aspecto por demais óbvio: a focalização num (certo) passado "recente" e "doloroso" que serve, que é útil e funcional no presente, no imediato para o aluno (o aluno no centro) construir a sua identidade

Ora, a História, é, por essência, o estudo da marcha da humanidade, do pensamento e da sua acção, do que já passou. Certamente, requer ponderação no presente, eventualmente com vista a preparar o futuro, mas não dispensa uma incursão continuada e aprofundada, tanto pelo passado mais distante como pelo passado mais próximo, ainda que não tão próximo que impeça o estudo objectivo. E pode ser ou não (imediatamente) útil ou funcional a cada um.

Recuperar temas históricos recentes, de maneira solta, sem bases sólidas para os pensar não se traduz em consciência histórica nem conduzirá a uma posição informada, crítica e participativa nem a outras múltiplas e exigentes intenções de aprendizagem expressas no documento. 

Antes que a amnésia civilizacional alastre ainda mais, é preciso recuperar a História como disciplina fundamental no currículo do ensino público. Reforçá-la na escolaridade básica e implementá-la no ensino secundário: repondo conteúdos, atribuindo-lhe objectivos legítimos, conferindo-lhe os tempos necessários, usar métodos que permitam, de facto, aprender.

Mas, isto muito dificilmente irá acontecer nos anos, nas décadas mais próximas. Lembremo-nos que somos guiados pelo slogan do currículo do futuro/do século XXI.

Continuação desta nota no texto O declínio do pensamento histórico.

1 comentário:

Anónimo disse...

Além disto, estrutura-se de uma forma coerente com as finalidades
previstas no Perfil dos Alunos:
o desenvolvimento de espírito crítico e capacidade de interpretação
da realidade sustentado em conhecimento.”
Se no Perfil do aluno constasse que “o conhecimento da realidade sustentado em desenvolvimento de espírito crítico e capacidade de interpretação”, a vacuidade grandiloquente estaria igualmente garantida no que respeita à estruturação da disciplina de História de uma forma coerente com as finalidades previstas. Aliás, onde se lê História também se poderia ler Filosofia, Português, Inglês, Espanhol, Francês, Alemão, Geografia, Matemática, Ciências Naturais, Biologia e Geologia, Física, Química, Física e Química, Educação Visual, Tecnologias de Informação e Comunicação, Educação Física, Educação Moral e Religiosa, Geometria Descritiva, etc.
As Aprendizagens Essenciais da Escola Flexível estão a minimizar de tal maneira o papel dos professores e os conteúdos que se podem ensinar em sala de aula, que a História sem passado, a Filosofia sem pensamento e a Ciência sem sabedoria, assim como outras barbaridades quejandas, acabarão por impor a ignorância como o caminho mais fácil de chegar ao pleno sucesso escolar!

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...