A propósito dos recentes casos de cegueira ocorridos numa clínica algarvia, com insistência pertinaz , Vital Moreira escreve um novo artigo de opinião (Público, 31/08/2010) sobre ordens profissionais, intitulado “Para que servem as ordens profissionais?”, assacando à Ordem dos Médicos responsabilidades não cumpridas no desejável e célere andamento de queixas de utentes que lhe chegam às mãos contra médicos em prevaricação dos seus deveres. Mas não terá o próprio Estado responsabilidades neste status quo ao consentir que a clínica funcionasse sem estar devidamente autorizada?
Aliás, em grande parte das críticas tecidas, em tempos recentes, às ordens profissionais, com a patine do tempo e o prestígio dos seus associados, pode ser encontrada génese persecutória no facto da Ordem dos Engenheiros não ter sancionado a inscrição de indivíduos licenciados em engenharia pela Universidade Independente com razões mais do que sobrantes que fundamentaram o seu encerramento depois de um longo processo a que não foi estranha a notável acção dos media na denúncia pública de uma situação nada prestigiante para o ensino universitário privado aí ministrado e para os titulares dessas licenciaturas.
Ao arrepio das “boas práticas profissionais”, subjacentes a uma exigente formação académica – como reconheceu Somerset Maugham,”é uma grande chatice que o conhecimento só possa adquirir-se à custa de trabalho duro” –, surgiu uma lei quadro que pretendeu retirar, sem êxito, às ordens profissionais existentes o direito ao reconhecimento da qualidade exigível aos candidatos a respectivos membros. Contudo, amputando-as de uma responsabilidade importante vingou ela para as ordens a criar posteriormente num tempo que reflecte, cada vez mais, a crítica de José Miguel Júdice, ao tempo bastonário da Ordem dos Advogados: “Não é verdade que tudo que anda com o título de licenciado na testa seja um licenciado”(Diário de Coimbra, 12/11/2004). Estávamos ainda num período da vida nacional em que as Novas Oportunidades e as Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos não tinham sido partejadas na utopia de um país de licenciados como se fosse possível, como diz o povo, ter sol na eira e chuva no nabal. Aliás, anos atrás, o próprio Vital Moreira se mostrou discordante contra o rumo que o ensino superior estava a seguir, ao escrever: “A ideia de democratizar o ensino superior pela via da banalização do acesso e pela crescente degradação da sua qualidade não é somente um crime contra a própria ideia de ensino superior, é também politicamente pouco honesta”.
Mas voltemos à questão das ordens profissionais. Uma das razões apresentadas, de há muito, por Vital Moreira para a sua discordância para com a criação de ordens profissionais reside no argumento de que “as ordens profissionais tiveram a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo” (Público, 05/07/2005). Ora acontece, em boa verdade, como escrevi no dia 22 desse mesmo mês e nesse mesmo jornal, em Cartas ao Director, que “a Ordem dos Advogados foi criada sete anos antes da implantação do Estado Novo e uma quinzena de dias depois da Ditadura Militar que o antecedeu, através do Decreto n.º 11.715/26. De 12 de Junho" ( site da Ordem dos Advogados, “Resumo Histórico da Ordem dos Advogados”).
Seja como for, o Estado Novo foi bem mais parco na criação de ordens profissionais ( Ordem dos Engenheiros, em 1936, Ordem dos Médicos, em 38 e Ordem dos Farmacêuticos, em 72) relativamente aos consulados socialistas em que surgem quase em catadupa ordens profissionais dando-se até o caso da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (que, para além de licenciados e bacharéis, integrava indivíduos sem formação superior) se ter transformado em Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas. Por outro lado, se tivermos em linha de conta que a Ordem dos Enfermeiros foi criada no consulado de António Guterres (Decreto-Lei 104/98, de 21 de Abril), sendo constituída na altura da sua criação por indivíduos apenas de posse de um diploma de ensino médio ou um bacharelato do ensino politécnico (só através do Decreto-Lei 353/99, de 3 de Setembro, foi autorizada a respectiva licenciatura politécnica) rompendo, assim, com a tradição de se destinarem as ordens a profissões de formação académica universitária, reservando-se a designação de câmaras para estas situações, nada me autoriza a pensar que o Partido Socialista possa ser objector à criação de novas ordens profissionais destinadas a profissionais de formação universitária/politécnica.
Em verdade se diga, no caso da classe docente, essa objecção tem origem nos maiores sindicatos de professores e, é justo que se diga, também, no seio da própria classe pelo facto de dispares formações académicas, que vão de um simples curso do ensino secundário a um diploma de estudos superiores de raiz, não terem criado um esprit de corps que acabe com a guerrilha institucional entre várias associações profissionais com o desejo de se assumirem como suas criadoras deixando, desta forma, aos sindicatos o caminho livre para continuarem a assumir funções que lhes não competem. Nem de facto nem de direito!
No caso presente, tomar a nuvem por Juno, por mais negra e anunciadora de maus presságios que ela se apresente, pode conduzir a que se confunda uma boa canção com alguns maus intérpretes. Ou seja, a culpa não está nas ordens profissionais mas em possíveis causas que se compaginam com a imperfeição da própria condição humana dos seus órgãos tutelares. Mas estará o Estado, ele próprio, isento da quota-parte que lhe cabe num deixar correr o marfim tão ao gosto da alma lusitana que faz com que os processos se amontoem nos gabinetes e gavetas da Justiça deixando, por vezes, a culpa morrer solteira?
3 comentários:
Em 12 de Junho de 1926 vigorava a Ditadura Militar.
Em 1928 deu-se o início e apogeu do consulado de Salazar, ou do Estado Novo.
Caro Rui Baptista,
Infelizmente há ainda em Portugal muito político que considera que a sociedade deve estar ao serviço do Estado e não o contrário. Vital Moreira é apenas e só um exemplo disto mesmo.
Repare que o Ministério da "Educação" levou tão longe esta visão que criou de cima para baixo organizações que deveriam ter nascido na sociedade como por exemplo a Confederação das Associação de Pais (CONFAP) e o Conselho de Escolas.
Só quando cair um meteorito na 5 de Outubro é que o lobby das "ciências" e especialistas da educação é que permitirá que os professores tenham algum poder de decisão... e se algum dia permitir a criação da Ordem de Professores tal só acontecerá se for dirigida por representantes do status quo...
Caro Fartinho da Silva: Infelizmente, assim é.E mais infeliz é o facto de docentes (?)/dirigentes sindicais pactuarem com esta situação em nítido benefício próprio. Mas ainda pior, é haver docentes que se manifestam contra a criação de uma Ordem dos Professores. Enfim...eles lá terão as suas razões nesta espécie de conluio que os transforma em almas gémeas!
Enviar um comentário