domingo, 2 de maio de 2010

CEM ANOS DA BIBLIOTECA DA FIGUEIRA DA FOZ


Parte da minha intervenção ontem na sessão de comemorações dos cem anos da Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, que tem o nome de Pedro Fernandes Tomás (na foto, o edifício da Biblioteca e Museu Municipal da Figueira da Foz, inaugurado em 1967):

Faz hoje exactamente cem anos que a Biblioteca Municipal da Figueira da Foz foi inaugurada. O nome que hoje ostenta, embora não tão antigo como a Biblioteca, é bastante antigo (remonta a 1927) e bem merecido: o figueirense Pedro Fernandes Thomaz, sobrinho-neto desse outro figueirense e grande figura do liberalismo que foi Manuel Fernandes Thomaz. Foi ele, integrando uma comissão cívica formada por outros figueirenses, que propôs a criação da instituição que hoje vivamente felicito por estar de parabéns. Fê-lo a partir de um acervo de centenas de volumes que se encontravam no Museu Municipal. De então para cá os livros cresceram e multiplicaram-se, sempre à disposição dos cidadãos. E não é por acaso que a Biblioteca Fernandes Thomaz e o Museu Santos Rocha partilham o mesmo edifício da cidade: as duas instituições estuveram juntas desde o início. Pedro Fernandes Thomaz era amigo de António dos Santos Rocha, tendo pertencido à Sociedade Arqueológica que este fundou em 1894 e que, a partir de 1903, passou a ter o nome que hoje é o do Museu.

Por coincidência, o arqueólogo Santos Rocha morreu na sua cidade natal em 28 de Março de 1910, sem poder estar presente na inauguração da biblioteca hoje centenária. Mas o seu espírito de promotor de cultura, que tanto marcou a Figueira da Foz e, portanto, o país, no final do século XIX, encontra-se decerto aqui hoje, já que continuou vivo, inabalado pelas vicissitudes dos tempos.

Pedro Fernandes Thomaz, membro do Instituto de Coimbra, a academia coimbrã que, iniciada em 1852, só viria a fechar nos anos 80 do século passado, foi, além de organizador e conservador da Biblioteca com o seu nome, um grande publicista (fundou e dirigiu a Gazeta da Figueira e a revista Figueira) e musicólogo (recolheu músicas e canções populares, em colectâneas que têm tanto interesse que ainda hoje são reeditadas), para além de professor. Maçon e republicano, talvez não pudesse, mesmo assim, ter adivinhado que, escassos meses após a inauguração da Biblioteca da Figueira da Foz, a República seria implantada em Portugal, um evento que a Figueira soube logo receber. Ele fez parte de um grupo de grandes nomes figueirenses, nascidos na segunda metade do século XIX e cuja acção se prolongou para bem dentro do século XX. De entre eles, permito-me destacar apenas alguns, embora correndo o risco de fazer injustiça a outros.

Thomaz tinha nascido no ano da fundação do Instituto de Coimbra – tinha, por isso, 57 anos quando a sua, hoje nossa, Biblioteca abriu as suas portas. Mas, mais novos do que ele, eram os seguintes personagens:

- António Mesquita Figueiredo, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, nascido em 1880 e, portanto, com 30 anos à data da inauguração. Foi bibliotecário da Biblioteca Nacional, conservador da Torre do Tombo e grande estudioso de temas da região. Em 1910 publicava uma notícia necrológica sobre Santos Rocha na Révue Archéologique de Paris, que testemunha a dimensão internacional do arqueólogo figueirense. Dois anos antes, em 1908, tinha, com companheiros seus, integrado a Comissão Wellington que preparou e deixou uma memória do desembarque de Wellington na Figueira. Acrescento que, em 1910, Pedro Fernandes Thomaz publicava na Imprensa Lusitana, da Figueira da Foz, um volume intitulado “A Figueira e a Invasão Francesa- Notas e Documentos”, que não se esqueceu de oferecer ao Instituto de Coimbra, existindo no espólio dessa academia que deu entrada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e está actualmente a ser catalogado. Também aqui está nesta Biblioteca: procurei no catálogo na Internet e encontrei, além da edição original, uma reedição recente feita por um alfarrabista de Coimbra, o que mostra não só a relevância como a actualidade da edição.

(Permitam-me que faça aqui um parêntesis para lembrar o episódio da invasão francesa pois ele mostra a união, que sempre existiu entre a Coimbra. A 27 de Junho de 1808 o Batalhão Académico, formado por estudantes da Universidade de Coimbra, tomou aos invasores franceses o Forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz, preparando o caminho para o desembarque do general inglês Arthur Wellesley, mais tarde Duque de Wellington, na Praia do Cabedelo, na Figueira da Foz, prenunciando o fim da primeira invasão francesa comandada pelo general Junot. A expedição estudantil começou dois dias antes, às ordens do sargento de Artilharia e estudante de Matemática Bernardo António Zagalo. Eram só escassas dezenas os alunos que se alistaram, de capa e batina, mas o grupo foi sendo engrossado quando atravessou os campos do Mondego por numerosos paisanos, camponeses de foice e gadanha nas mãos, que, chamados pelos sinos da Torre e das igrejas, queriam ajudar na revolta. O batalhão ficou com mais futricas que doutores. Foi talvez por isso que o ocupante não ofereceu resistência, tendo rapidamente a bandeira lusa substituído o pavilhão francês na fortaleza figueirense).

- Luís Wittnich Carrisso, nascido em 1886 na freeguesia de S. Julião, na Figueira, botânico e professor na Faculdade de Ciências na Universidade de Coimbra que, em 1911, na sequência da mudança de regime, sucedeu às Faculdades de Filosofia e Matemática. Carrisso haveria de falecer de síncope cardíaca, em 1937, no deserto de Moçâmedes, em Angola, quando fazia mais uma das suas notáveis viagens de descoberta e exploração africana. Tinha 24 anos à data da inauguração da Biblioteca, e era recém-licenciado, uma vez que tinha concluído a sua tese de fim de curso sobre o tema da hereditariedade em 14 de Março de 1910 (doutorou-se no ano seguinte). Não sei se esteve presente na inauguração desta instituição, mas é bastante provável que a tenha frequentado. Muitos dos seus escritos estão acessíveis na Biblioteca Digital de Botânica, parte da Biblioteca Digital da Universidade de Coimbra.

- João de Barros, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, escritor (foi o autor do livro de poemas “Antheu”, saído em 1912, para além de muitas outras obras, incluindo algumas adaptações de clássicos para a juventude, que conheceram merecido êxito), pedagogo e político. Nasceu em 1881, pelo que tinha 29 anos quando a Biblioteca foi inaugurada e também podia, portanto, ter cá estado nessa ocasião. No ano de 1910, Barros publicou aliás uma “Homenagem a Luís de Camões”, publicada na Tipografia Popular de Manuel J. Cruz da Figueira, na sequência de um sarau sobre o nosso maior poeta que ele fez a 10 de Junho da Associação de Instrução Popular no Teatro da Figueira da Foz.

- Joaquim de Carvalho, formado em Direito e Letras pela mesma Universidade, notável professor de Filosofia e, em geral, de História da Cultura (incluindo na cultura a ciência), que foi director da Biblioteca da Universidade de Coimbra e da Imprensa da Universidade. Nasceu um ano depois de João de Barros e, tinha por isso, 18 anos à data da abertura desta Biblioteca (formou-se quatro anos mais tarde em Direito). Seja-me permitido prestar aqui uma particular homenagem a este erudito, cujo semi-centenário da morte se comemorou recentemente, e de cujos filhos fui e sou amigo. A Universidade de Coimbra, que a ele tanto deve, está muito empenhada em catalogar na íntegra com os modernos meios tecnológicos a sua espantosa biblioteca, que pertence à sua Faculdade de Letras, e espera da Fundação Gulbenkian – a instituição que publicou a sua “Obra Completa” e tanto ajudou a Biblioteca e o Museu da Figueira da Foz, uma ajuda nesse sentido.

Falei de alguns nomes de uma geração de ouro. Por falta de tempo, não posso falar tanto de outros nomes da geração que se seguiu. Mas sempre digo que, passados três anos de abrir a Biblioteca, nascia João Gaspar Simões, formado em Direito em Coimbra, o escritor e ensaísta que tanto marcou o Portugal literário do século XX, que, num registo, retratou a Figueira em escritos ficcionais (veja-se Uma História de Província: I parte — Amores Infelizes, 1934), e que, noutro registo, de editor e crítico, teve uma quota parte na revelação de Fernando Pessoa a Portugal e ao mundo. E, passados quatro anos, nascia, embora não aqui mas em Alter, no Alentejo, Joaquim Namorado, formado em Matemática pela Universidade de Coimbra, professor de Matemática impedido pelo Estado Novo de exercer a sua profissão e poeta “incómodo”, de cujo convívio tive o benefício de desfrutar, e que tomou a Figueira da Foz como sua terra adoptiva a ponto de dizer que o seu sonho político era ser presidente da junta de freguesia de S. Julião, na Figueira... Num poema intitulado "Mania das Grandezas" escreveu ironicamente "Talvez ainda venha a ser Presidente da República", mas, na vida real, não queria mais do que ser presidente dessa junta à beira-mar plantada. Entre o espólio do Instituto de Coimbra encontraram-se vários papéis dele, pois colaborou na última fase da revista O Instituto (hoje totalmente digitalizada) assim como o fez, ao longo de muitos mais anos, na revista Vértice.

Todos esses autores e outros estão, dentro das capas dos seus livros, à disposição do público nesta e noutras Bibliotecas. Estão, portanto, à nossa disposição. Muito mais podia ser dito sobre eles, mas o melhor é procurá-los nos livros que eles nos deixaram.

2 comentários:

Paisano disse...

Relativamente à data de 27 de Junho de 1798 acerca do Batalhão Académico e as invasões francesas deve existir qualquer falha, ou melhor dizendo, uma gralha (pássaro bisnau e negro que se entretem a invadir os escritos).

A corte portuguesa abandonou Lisboa para o Brasil nos finais de 1806 quando a primeira invasão napoleónica, comandada por Junot, entrou na capital, ficando a ver navios do alto de Santa Catarina.

O primeiro movimento de revolta contra as arbitrariedades do consulado de Junot deu-se em Olhão no dia 16 de Junho de 1808.

Logo a seguir também houve movimentos revolucionários no Norte (Porto) e Centro do País.

De Rerum Natura disse...

Foi gralha, de facto. Já emendei para 1808. Muito obrigado!
Carlos Fiolhais

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