segunda-feira, 13 de julho de 2009

O que é o literário?

Texto de João Boavida antes publicado no semanário As Beiras, na sequência de um outro intítulado Por onde passa o literário?

Há tempos, numa tertúlia da Livraria Almedina de Coimbra, a escritora convidada era Lídia Jorge, que é, como se sabe, um dos mais sólidos nomes da literatura portuguesa actual.

No debate pus uma questão que consistia no seguinte: "Como leitor de quase toda a sua obra sinto que houve uma mudança significativa entre o seu primeiro livro – O dia dos prodígios – e quase todos os seguintes. Embora sem perder a qualidade, que se reconhece, houve algo que se perdeu, ou que, pelo menos, se modificou. Havia um universo encantado e encantatório a que correspondia um modo de dizer adequado, que criava a própria adequação, constituindo um belo exemplo daquilo a que se pode chamar a verdadeira dimensão do literário, o modo por onde a literatura se revela no seu esplendor. E a que poderemos chamar, à falta de melhor, de especificidade literária. Ora, foi esta especificidade, tão fortemente afirmada numa estilística notável que, de algum modo, se tornou menos nítida e evidente. Restou qualidade suficiente para ser uma grande escritora, mas algo do mais autêntico e original parece ter-se perdido."

Respondeu dizendo que, de facto, no primeiro livro tinha havido a preocupação de pintar uma certa realidade algarvia (e, portanto, portuguesa), e que, fixando-a no texto, de algum modo se tinha libertado para produzir uma literatura mais interventora. Vilamaninhos e a sua serpente prodigiosa, aquele mural esplêndido onde a palavra pintura é a mais adequada, ficara como a imagem de um Portugal perdido, sublimado literariamente e assim cristalizado para sempre. A realidade nacional em rápida transformação exigira-lhe uma outra atitude e ela seguira-a. No final, em conversa mais restrita, repetindo o argumento, acabou, porém, por compreender o que eu tinha querido dizer.

A questão é subtil e traça uma linha quase invisível entre a verdadeira literatura e a que já não o é, levantando em cada autor um problema particular. O mais interessante é saber como cada um encontra um modo pessoal de fixar esse específico na sua produção. É um problema incontornável, mas que passa frequentemente despercebido. Perceber-se-á o que quero dizer se pensarmos na quantidade de livros e de autores que se editam, muitos deles apreciados e com sucesso, mas que, dentro de vinte anos, ou menos, ninguém lerá. Enquanto que outros, muito poucos, uns já hoje reconhecidos, outros ainda ignorados, serão no futuro lidos e apreciados. Ora, o que fará que muitos desapareçam e outros, muitos menos, sobrevivam? É a qualidade, dir-me-ão. Talvez, embora a expressão ”qualidade” seja ambígua e dependa muito dos leitores e das épocas.

Penso que é exactamente por essa linha divisória que passa o específico literário como definidor da literatura e, portanto, como o que, embora muito subtil e variável, vai distinguindo o que é bom do que não tem força para sobreviver artisticamente. Tem a ver com estilo, mas a noção é também ambígua porque há estilos que são a desgraça do seu autor e outros a verdadeira glória dele. Ninguém, em cada momento, saberá dizer o que é, e por onde passa essa linha, mas é o que fará a diferença; o que há séculos faz a diferença. Quem poderá dizer ao certo, do que hoje se produz, o que perdurará pela qualidade e pela originalidade?
João Boavida

1 comentário:

Helena Ribeiro disse...

As suas reflexões são estimulantes, obrigada por as partilhar.

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