quarta-feira, 1 de abril de 2009
Ficamos pelo "Bolonhês"?
Nuno Crato, professor de Matemática no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, escreveu um artigo com este título no nº 31 da Revista "Ensino Superior" do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESUP). Abrindo o apetite para o artigo integral que pode ser lido na revista (em breve aqui) publicamos uma parte substancial dele. Agradecermos ao autor e à revista a possibilidade desta citação. Na imagem uma iluminura do século XV mostrando uma aula na antiga Universidade de Bolonha.
A Grave Redução de Exigência
No caso português, duas peculiaridades tornam a redução do primeiro ciclo universitário ainda mais gravosa. Em primeiro lugar, os ensinos Básico e Secundário estão em profunda crise, enterrando os nossos estudantes na cauda da Europa, como todos os estudos internacionais revelaram.
Começaram por ser os estudos TIMSS a alertar-nos para o desastre educativo. No entanto, escondendo a cabeça na areia, o Ministério da Educação decidiu abandoná-los. Posteriormente, forçado pela pressão internacional, o nosso país aderiu aos estudos PISA, que têm vindo a confirmar consistentemente as gravíssimas deficiências do nosso ensino. A conclusão é unânime: não temos uma massa de finalistas do Secundário bem preparados para rapidamente progredirem em três anos universitários, como o terão a Nova Zelândia ou a Inglaterra.
A segunda peculiaridade do nosso sistema é o facto de o insucesso escolar pré- universitário e a e a demografia nos terem empurrado para uma carência de estudantes face à capacidade instalada. As universidades têm sido obrigadas a abrir mão de critérios de maior exigência, sob o risco de ficarem vazias de alunos e de terem de proceder a despedimentos de pessoal ou ao encerramento das portas. As nuvens acumulam-se sobre o ensino superior. Por um lado, a pressão da melhoria das estatísticas, privilegiando os resultados aparentes e não a melhoria da realidade. Por outro lado, as «novas oportunidades» e o facilitismo crescente no Secundário. Tudo isto gera pressão para admitir mais estudantes e mais mal preparados e para os passar de ano e diplomar. O ensino superior está face a um desafio enorme. Será que o dito «espírito de Bolonha» nos prepara melhor para esse desafio ou será que nos prejudica?
Os sinais são mistos e muitas universidades portuguesas estão a responder da pior maneira. Noutras, tem vingado o bom senso. Mas é preciso tomar consciência que algumas recomendações pedagógicas do dito «espírito de Bolonha» podem vir a provocar um desastre quase irreparável no ensino universitário. Os professores do ensino superior têm sido poupados aos dislates das inovações pedagógicas que de há algumas décadas têm sido propaladas no ensino Básico e Secundário. A pedagogia construtivista romântica contribuiu para desorganizar o ensino. Eliminou exames, transformou a palavra de ordem da inclusão numa bandeira pelo facilitismo, dificultou a disciplina assimilando-a ao autoritarismo, esvaziou conteúdos e propalou um palavreado «crítico» que se tornou no estrabo ideal para a formação de ignorantes fala-barato. Aliada a um construtivismo pedagógico dogmático, essa pedagogia privilegiou o ensino centrado no aluno, defendeu o primado da motivação e do ensino lúdico e repudiou a transmissão de conhecimentos. Conseguiu abolir o próprio conceito de ensinar — a palavra tem desaparecido dos documentos oficiais; foi eliminada do Estatuto da Carreira Docente não universitário e do Reajustamento dos Programas de Matemática do Ensino Básico, para dar apenas dois exemplos muito recentes.
As ideias e o estilo verboso desta corrente pedagógica têm sido pejorativamente designados como «eduquês», termo que veio para ficar. Infelizmente, a antipatia pelo «eduquês» nem sempre tem sido transformada numa crítica coerente aos fundamentos desta pedagogia romântica. Em muitos docentes universitários, a repulsa pelo «eduquês» transformou-se num pretexto para manter métodos antipedagógicos antiquados, para não acompanhar os estudantes e para alijar sobre os professores que os antecederam no ensino dos seus alunos, nomeadamente no Básico e no Secundário, as responsabilidades por todos os fracassos.
Noutros docentes universitários, a aversão ao «eduquês» transformou-se numa aversão a todas as «ciências da educação», ignorando que a psicologia cognitiva moderna e os estudos rigorosos em educação têm sido os algozes desse mesmo «eduquês». As pretensões radicais do chamado «método global» de ensino da leitura foram derrotadas pelos psicólogos e pelos estudiosos de educação. De igual maneira, as correntes de educação matemática que desprezam a memorização e o automatismo de algoritmos estão a ser derrotadas pela crítica científica da psicologia, pela neurologia cerebral, pelas ciências cognitivas e pelos estudos das práticas educativas. Este facto não deve ser confundido com um outro, que é a incapacidade de muitos dos nossos ditos «especialistas em educação» acompanharem essas novas correntes de fundamentação crítica e científica. Na realidade, tanto muitos dos autoproclamados «peritos em educação» que se arrastam pelos corredores dos ministérios e pelas inúmeras reuniões de reflexão «eduquesa», como muitos dos «especialistas» que se barricaram em alguns lugares da academia, não conseguiram sequer perceber que o ensino está em crise. Sempre disseram que quem denunciava os males do sistema educativo estava a pôr em causa a escola democrática e sempre se refugiaram nas suas capelas estreitas ou nos seus gabinetes ministeriais para repetirem em círculo fechado o que aprenderam ou julgam ter aprendido com Piaget, Vigotsky, Bruner ou Perrenoud.
Os Pecados Capitais do Ensino por Competências
Uma abominação cega a uma atitude ou corrente ideológica não é o equivalente a uma vacina — as pessoas mais influenciáveis pela imprensa são, muitas vezes, as que dizem nunca acreditar nas notícias. Assim, o desafecto primário ao «eduquês» por parte de docentes universitários tem levado, paradoxalmente, a uma aceitação acrítica de ideias e teorias derivadas do construtivismo pedagógico dogmático. O caso mais chocante é o transporte da moda do “ensino por competências” para a reforma de Bolonha.
Expliquemo-nos. Uma das ideias que no Ensino Básico actualmente melhor consubstancia o «eduquês» é a ideia da organização do ensino em competências e não em conteúdos. As competências nasceram no mundo empresarial como reacção a um ensino que não prepara directamente os jovens para a vida activa. Dizia-se que o conhecimento livresco não bastava para tornar os jovens competentes no mercado de trabalho e procurou-se então, de forma cega, prepará-los para as tarefas exigidas na vida activa.
Com um fundamento talvez generoso — ou, pelo menos, tendo receptividade em algumas mentes generosas —, a ideia é totalmente desapropriada fora do ensino profissionalizante. Aí sim, pode ter sentido preparar directamente os estudantes para usar uma broca ou para assar um pato. Mas mesmo aí o ensino não pode estar completamente limitado às competências práticas. Há aspectos de cultura geral que não podem ser desprezados, sob pena de se formarem gerações cegas à cultura e à vida e completamente incapazes de se adaptarem às transformações de um mundo do trabalho em transformação acelerada.
No ensino universitário, a teoria das competências é completamente oposta à ideia de universidade, um local de cultura onde os jovens se preparam não por lhes ensinarem a maneira de apertar parafusos ou de redigir um relatório técnico, mas sim por adquirirem os conhecimentos e o treino necessários para poderem descobrir como se aperta um parafuso ou quais são os pontos em causa num estudo que devam ser transportados para os relatórios técnicos. Ou seja, no ensino universitário, mais que em qualquer outro, reconhece-se o valor especial da cultura, do estudo e do conhecimento — mesmo da cultura, do estudo e do conhecimento que, aparentemente, e apenas aparentemente, não têm qualquer aplicação prática. Como gostam de dizer os físicos, nada é mais prático do que uma boa teoria.
O Decreto-Lei 74/2006 de 24 de Março, que concretiza em Portugal o dito processo de Bolonha, revela um deslumbre pela teoria «eduquesa» das competências.Não pode ser acaso; é alvedrio. Logo no preâmbulo, afirma visar a «passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências». E repete a mesma ideia falando da «mudança do paradigma de ensino de um modelo passivo, baseado na aquisição de conhecimentos, para um modelo baseado no desenvolvimento de competências». Não explica, é claro, nem poderia explicar, por que razão identifica a «aquisição de conhecimentos» com um «modelo passivo» e por que razão as competências são implicitamente activas. Trata-se apenas de uma profissão de fé, como as que nos habituámos a ver nos teóricos dogmáticos do «eduquês». E uma profissão de fé falsa: há transmissão de conhecimentos activa e há aquisição de competências acrítica.
Nas universidades, para cumprir o «novo paradigma» do ensino activo, os professores perderam dias e dias a reformular programas e a inserir referências às «competências multiculturais» da Álgebra Linear e às «competências comunicacionais» da História da Antiguidade. Perderam-se e perdem-se dias e dias a preencher formulários que são pura ficção, onde o palavreado «eduquês» das competências é obrigatório e onde a imaginação é imprescindível para poder mentir sobre o número de horas que os estudantes vão dedicar à cadeira e sobre o envolvimento activo dos alunos na construção do seu próprio conhecimento. Felizmente, a maioria dos docentes universitários tem o bom senso de ignorar o tremedal teórico das competências e de continuar a basear o seu ensino na louvável e imprescindível transmissão de conhecimentos.
Nuno Crato
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4 comentários:
Aos coveiros da educação acontecerá o mesmo que àqueles que contribuiram activamente para a crise económica; serão premiados e terão uma reforma dourada. Os docentes do ensino pré-universitário perderam à muito tempo a autonomia para poderem mandar às urtigas o paradigma falso do eduquês e ensinarem os alunos como deve ser, estão afogados numa burocracia humilhante que só serve para comprovar sucesso estatístico. Em média haverá 2 ou 3 alunos por turma motivados para a aquisição de conhecimentos, são normalmente os filhos daqueles que não embarcam, e bem, nestas teorias. Os outros são a maioria e são esses que mandam na escola,(ou os seus pais) interessa-lhes o diplomazito, sem trabalho, sem chatices e de preferência sem ir à escola. Os políticos são hipócritas porque defendem para os filhos dos pobres esta educação sem futuro e colocam os seus filhos em colégios privados onde se aprende. Será preciso gritar esta realidade para que os cidadãos abram os olhos, antes de chegarmos ao ponto sem retorno.
Não se pergunta se um aluno "sabe as coisas", mas se é capaz de "mobilizar saberes culturais, científicos e tecnológicos para compreender a realidade e para abordar situações e problemas do quotidiano". Muito mais claro e simples!
Isto: "Perderam-se e perdem-se dias e dias a preencher formulários que são pura ficção, onde o palavreado «eduquês» das competências é obrigatório e onde a imaginação é imprescindível(...)", é, para os professores não universitários, corriqueiro. Para muitos, como eu, torna-se desesperante ter que trabalhar assim.
Citei este artigo aqui: Átomo e meio
Certamente um bom artigo como sempre.
Parabéns Nuno Crato!
Mas "treino" e "desenvolvimento de competências" não vão dar ao mesmo? E "mobilização de saberes" não é o mesmo que saber que conhecimentos aplicar em cada situação? E quando digo que os alunos têm que estudar e treinar não estou a defender o "envolvimento activo dos alunos na construção do seu próprio conhecimento"?
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