sexta-feira, 24 de abril de 2009
Ainda a falta do ensino técnico-profissional
Em complemento do seu último post, Rui Baptista enviou-nos mais outro sobre o mesmo tema (na foto, José Saramago recebe o Prémio Nobel):
“Existe uma erótica do novo, o antigo é sempre suspeito” (Roland Barthes).
Um dos comentários ao meu último post “A falta do ensino técnico-profissional”, pode ter deixado passar a ideia de ser este ensino vocacionado para cábulas ou filhos de pais de estratos cultural e económico baixos. Pelo que posso testemunhar, tomando o exemplo da minha saudosa docência na Escola Mouzinho de Albuquerque da ex-Lourenço Marques, dois professores licenciados do seu corpo docente matricularam nesta escola como escolha preferencial os seus filhos, que, posteriormente, vieram a fazer o seu percurso universitário.
Um dos males deste país, em que se confunde democratização com mediocratização, é continuar a pensar-se que, tão-só, um diploma de licenciatura é o “abre-te Sésamo” de um emprego devidamente remunerado e de elevado prestígio social, o que leva, ainda mesmo hoje, os pais de poucas posses a sacrificarem-se para terem um filho possuidor de um canudo mesmo que leve o dobro dos anos a formar-se, dando, desta forma, aval a um dito amargo do falecido Francisco de Sousa Tavares: “Estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados”.
Ora a expressão “burros diplomados” que Sousa Tavares usou não se dirige, certamente, apropriando-me de uma frase de um outro comentário, à “estigmatização dos alunos enviados para as escolas ‘de burros’ ” (aliás, tese rejeitada pela própria autora do comentário). Indivíduos diplomados por antigas escolas técnicas prosseguiram estudos alcançando diplomas universitários e a própria cátedra universitária. José Saramago, possuidor de um desses diplomas, chegou a Prémio Nobel da Literatura e Jerónimo de Sousa distinguiu-se no campo da política. Diplomados por antigas escolas comerciais exercem hoje a profissão de contabilistas. Muitos destes cursados, e é bom que se ponha o enfoque nisto, receberam simultaneamente uma formação cívica e moral que os autoriza a apresentarem o seu percurso escolar aos filhos como exemplo a seguir: ”Sempre tivemos capacidade de entrar em algumas brincadeiras, partidas mais ousadas, sem sequer roçar a má educação, ordinarice ou violência” (frase de ex-aluno no“site” da Escola Industrial de Lourenço Marques). E o que vemos nós hoje nas nossas escolas secundárias que preparam futuros licenciados? Má educação, ordinarice e violência por parte, muitas vezes, de alunos para quem a escola única actual nada lhes diz sendo até uma verdadeira chatice.
Sei bem que, em tempos do extinto ensino técnico, eram exigidos mais dois anos de estudo para que os seus diplomados ascendessem ao ensino superior. Pela então chamada via liceal eram impostos 4 anos de ensino primário, 2 de ciclo preparatório e 5 anos de liceu num total de 11 anos de escolaridade. Em contrapartida, no ensino técnico havia que cumprir os mesmos anos de ensinos primário e de ciclo preparatório (6 anos), mais 5 anos de curso geral industrial ou comercial, acrescidos de 2 anos de curso complementar dos referidos cursos e dos 2 primeiros anos dos antigos Institutos Industriais e Comerciais (actuais Institutos Superiores de Engenharia e Contabilidade), o que perfazia um total de 13 anos que abriam, finalmente, os portões das escolas universitárias de Engenharia ou de Economia e Finanças.
Além de restaurar a dignidade do antigo ensino técnico parece-me igualmente importante a criação de uma espécie de sistema de vasos comunicantes que possa levar o aluno, se desinserido das suas verdadeiras capacidades, por decisões parentais ou de qualquer outra natureza, a transitar directamente para um ensino do tipo do antigo liceu a partir do nono ano de escolaridade.
A verdadeira gravidade do statu quo actual do nosso ensino reside, outrosim, em assistir-se, em nossos dias de autêntica manipulação de dados estatísticos de sucesso escolar, a uma caça despudorada a diplomas de licenciatura ou até de doutoramento obtidos em escolas d’aquém e além fronteiras de duvidosa qualidade, ou mesmo de duvidosa seriedade, que apenas servem para satisfazer o ego dos seus possuidores e atestar a respectiva ignorância, numa tentativa desesperada de continuar a manter bem vivos, em imagem pessoana, “cadáveres adiados que procriam”. Até quando?
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14 comentários:
Mais uma vez boa escolha de temas, mas se me permite duas críticas, penso que a falha na sua argumentação é a falta de exemplos recentes por um lado, e a falta de informação sobre números ou outros casos, mais correntes, por outro. Ir buscar dois ou três exemplos a dedo não ajuda, porque há sempre alguns casos excepcionais. Do que se deve falar é dos exemplos de pessoas que não se distinguem publicamente mas que demonstram elevado nível profissional
Dou o exemplo de dois colegas meus de doutoramento (um deles continua a sê-lo na empresa onde trabalho). Ambos alemães, que seguiram a via do ensino profissional (a Alemanha tem várias distinções de ensino secudário, com possibilidade de transferência entre as mesmas). Depois dos seus estudos, ingressaram numa escola superior profissional (Fachhochschule, para quem esteja familiarizado com o sistema) onde obteram o seu grau de engenheiros. Posteriormente fizeram os seus doutoramentos e são ambos engenheiros competentes nas suas empresas. Tudo sem ingressarem numa universidade tradicional.
E isto são exemplos de dois colegas meus, mas conheço outros (na Alemanha são vários) e provavelmente existirão estatísticas muito exemplificativas do que escrevi.
O facto é simples: o ensino profissional não é um ensino para burros, antes será um ensino para quem esteja mais interessado numa via diferente, menos "intelectual" (perdoem-me o termo) e mais "prática". E em nada prejudica a carreira futura (muitas vezes os profissionais destas áreas terão melhores vencimentos que licenciados).
Há "burros" que seguem para este ensino? Sim, claro, mas isso nada tem de mal, especialmente vendo a quantidade de "burros" que seguem para o ensino regular, esperando poder aceder à universidade. É até uma forma de rentabilizar alunos menos vocacionados para os estudos "livrescos". O que há sempre que manter é exigência a qual tratará de separar os "burros" dos "inteligentes", seja lá qual for o tipo de ensino.
Caro João Sousa André: Começo por agradecer o seu comentário motivado, em parte, pelo que julgo, pelo facto de eu não me ter expressado convenientemente quando pretendi dizer precisamente aquilo que entendeu eu não ter dito. Os casos excepcionais que apresento são excepcionais só, e apenas, por isso mesmo. O caso de José Saramago,com o curso de uma escola industrial, de outros tempos, ombreia com o Prémio Nobel de um indivíduo, que seguiu a via liceal, atingindo galardões académicos de doutoramento e cátedra académica. Refiro-me, como é óbvio a Egas Moniz no campo da Medicina. Se reparar, no meu post refiro-me ao exemplo de contabilistas, com o antigo curso das escolas comerciais, que, pelo seu grande número, estão longe de constituirem exemplos de excepção.
E porque falei de uma escola industrial, onde leccionei, com muito gosto, e não menos orgulho que o ensino prossegui no liceu ou mesmo no ensino universitário no Porto e em Coimbra, posso apresentar-lhe o caso dos seus diplomados que reencontro em almoços de confraternização para o qual sou convidado e em que com grande prazer os vejo bens instalados e realizados na sua vida profissional, dando lições de cidadania que não comuns, infelizmente, e por vezes, em indivíduos embrulhados em diplomas universitários de pechisbeque que não valem um tostão furado e em que a falta de massa cinzenta dos seus possuidores se substitui a altos cabedais ou posição social ou política dos seus possuidores.
Atrevo-me a pensar que foi com alguma interesse que leu o testemunho prestado na homenagem que antigos alunos da Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque prestaram aos seus antigos professores, em sentido texto constante do referido “site” não lido por todos os seus destinatários que pela lei inexorável da morte não pertencem a este nosso mundo em que nem tudo o que é parece e nem tudo o que parece é. Cordialmente.
Quanto à apresentação de casos recentes, eles não se me tornaram possível pelo verdadeiro assassinato das antigas escolas técnicas industriais e comerciais de antes de 25 de Abril, em nome de “uma erótica do novo; o velho é sempre suspeito” (R. Barthes).
Termino como comecei. Agradeço-lhe o seu comentário no que tange ao exemplo de um país tido como a locomotiva da Europa, a Alemanha, ainda mesmo em situação de crise com a que se vive actualmente num mundo globalizado. Comentários, ao meu post anterior, apresentaram exemplos de outros países que têm um ensino de “saber fazer” como altamente benéfico. Limitei-me, portanto, porque concebo, até, ter-me faltado “o engenho e a arte”, para ir mais longe, a defender, uma vez mais, e tantas quantas as necessárias, sem qualquer procuração a não ser a de um dever cumprido, o papel social, económico e de sã cidadania desempenhado por essas profissões que o novo-riquismo de uma falsa democracia tentou subalternizar relativamente a outras que procuram um lugar de superioridade que nada justifica,mormente, quando alcançadas com o forcep´s de um facilitismo com juros altos a pagar por uma juventude que queima as pestanas num ensino oficial de qualidade a ceder terreno a um ensino privado ao serviço de cábulas, sem pretender generalizações sempre perigosas. Não será isto um socialismo em inversão de marcha perigosa?
Termino como comecei: agradecendo o seu valioso comentário pela possibilidade de discutirmos, em tom amistoso e a melhor das intenções, possíveis rectificações a um sistema educativo nacional que teima em importar tudo quanto de mau existe no estrangeiro e a fechar os olhos a exemplos bons ou assim tidos enquanto não houver provas em contrário. Razão tinha Eça quando escreveu, ser Portugal um país traduzido do francês em calão!
Na 2.ª linha do 2.º§ do meu comentário: prosseguido em vez de prossegui.
"saudosa docência na Escola Mouzinho de Albuquerque da ex-Lourenço Marques"
"se desinserido das suas verdadeiras capacidades"; entre outras incongruências o que podemos escrever relativamente a isso?
Pronto, o senhor tem razão; agora acabemos com o assunto para que quem anda no planeta terra possa ajudar de facto a melhores soluções.
arte
O exemplo da Alemanha é paradigmático e actualíssimo, bem patente no que Lenine prognosticou: "A Europa nunca se fará, mas no dia em que se fizer, quem mandará é a Alemanha".
A tabela mais baixa do euro, na rateação dos respectivos valores pelos países, foi imposta pela Alemanha, a Portugal e à Grécia.
Lenine tem razão. Já há sinais.
Caro João Boaventura: E eu, não tenho razão?
Caro Rui Baptista
Quando escreve que
"Agradeço-lhe o seu comentário no que tange ao exemplo de um país tido como a locomotiva da Europa, a Alemanha"
situa-se na linha visualizada por Lenine ao considerar, embora metaforicamente, que a Alemanha é "a locomotiva da Europa".
Só para concluir, respigo de Portugal Azevedo, sobre a crise actual, que a Europa "Continua a acreditar que, se ficar quieta, a tempestade lhe passará por cima. Berlim foi o centro desta estratégia defensiva. Paris e Londres tiveram de se posicionar em função das decisões alemãs."
Soma e segue
O verdadeiro erro é associarem escolaridade ( sobretudo universitária ) a bons empregos. Saber é bom por si só. Fundamental para escapar ileso ao pseudo discurso cientifico que tomou o lugar da religião . O lógico , hoje , que não há empregos , nem bom nem maus , seria encerrar universidades e escolas , né?
Uma sociedade inteira nova rica. Patética.
Prezada Maria: Pelo que defendi no meu "post", não poderia estar mais de acordo consigo. Mas que quer? A mentalidade portuguesa não está preparada para aceitar que a inexistência de um diploma de estudos superiores tenha merecido de Eça de Queiroz o seguinte elogio à Ramalhal figura : "Tem saúde e não é bacharel".
Um mundo ideal seria a pessoa cultivar-se sem a preocupação dessa cultura ser acompanhada de um diploma em pergaminho com um selo de prata. Mas para, como nos diz, Jean Jaurès,"atingir o ideal é compreender o real".
A última frase do meu comentário deverá ser emendada para: "Mas, como nos diz Jean Jaurès, "atingir o ideal é compreender o real".
E ao Rui nem lhe passa pela cabeça as dificuldades no mundo do emprego que a associação entre escolaridade e melhores salários/ ascenção social trouxe.
Muitos erros , mesmos muitos: profissões essenciais ao conforto social metidas num guetto porque não precisam de escolaridade , só de saber fazer? Ninguém as quer fazer já. Mas nós não passamos sem elas. Que grande paradoxo!!
Os seus artigos merecem todo o nosso aplauso. São muito bons.
De longe o ensino técnico profissional é superior em termos de bom andamento das sociedades ao universitário. E como tal devia ser reconhecido e os seus resultados remunerados.
Eu preciso do homem que me recolhe o lixo todos , todos os dias. De doutores? ocasionalmente preciso , pouco até , dado que acedo facilmente ao que eles sabem. Minha cabecinha não é pior que a deles e a literatura está toda aí , on line..O saber fazer? aí já é diferente.
E pessoas que só acham que vale a pena aprender se isso render dinheiro? Como chegámos a isto?
Maria: Obrigado pelas suas amáveis palavras para com os meus textos. É sempre grato ver reconhecido o empenhamento com que os escrevo, sabendo, de antemão, ser muito difícil agradar a gregos e troianos. Mas isso nada me preocupa.
Preocuma-me, apenas, estar de bem com a minha consciência e manter, na medida das minhas possibilidades, o nível de qualidade e de respeito a que o blogue habituou os seu inúmeros leitores. Seria uma falsa modéstia da minha parte, portanto, não lhe manifesrar o meu contentamento pelas suas (repito) amáveis palavras.
?...
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