"A 22 de Junho de 1633, Galileu Galilei, de 69 anos de idade, vestido com o hábito branco dos penitentes, entra na grande sala do Convento de Minerva, em Roma. Vai comparecer, a pedido expresso e urgente do papa Urbano VIII, diante do tribunal inquisitorial da Congregação do Santo Ofício, composto por dez cardeais designados para o efeito.
Comparecer é uma força de expressão, em temos da língua actual, já que ele terá de se contentar com escutar a sentença, sem debate preliminar. Durante seis meses é mantido «prisioneiro» em Roma. Enquanto lhe sugerem que se retrate, os subalternos da Inquisição recusam-lhe que veja o papa, de quem tinha sido amigo, ou mesmo qualquer cardeal. Privam-nos do contacto com os colegas mais queridos. Zanga-se, respinga, exige um debate contraditório com os seus acusadores mas em vão. Permanecerá na ignorância do que se trama contra ele e que decidirá a sua sorte. Não verá os seus julgadores antes de 22 de Junho, não terá um verdadeiro processo e, portanto, não terá ocasião de exibir essa maravilhosa inteligência que teria seduzido, subjugado mesmo, tantos eclesiásticos havia mais de trinta anos.
Ei-lo agora diante do tribunal da Inquisição. Ajoelhado, escuta, tenso pálido, silencioso, a espantosa declaração, aquela declaração supostamente escrita por ele, mas de que, na realidade, toma conhecimento pela primeira vez enquanto é lida por outro.
Eu, Galileu Galilei, filho do falecido Vincenzo Galilei, de Florença, de 69 anos de idade, comparecendo em pessoa perante este tribunal, ajoelhado diante de vós, mui eminentes e reverendíssimos cardeais grandes inquisidores de toda a cristandade contra a perversidade herética, os olhos postos sobre os mui Santos Evangelhos, que toco com as minhas próprias mãos:
Juro que sempre acreditei, que acredito neste momento e que, com a graça de Deus, continuarei a acreditar no futuro e tudo quanto a Santa Igreja católica, apostólica e romana tem por verdadeiro, prega e ensina.
Mas, em virtude de o Santo Ofício me ter notificado de que não acredita na falsa opinião de que o Sol está no centro do mundo e é imóvel e que a terra não é o centro do mundo e se move e de que não mantém, nem defende, nem ensina, quer oralmente, quer por escrito, esta falsa doutrina, em virtude de ter sido notificado de que a dita doutrina era contrária às Sagradas Escrituras; em virtude de ter escrito e ter mandado imprimir um livro no qual exponho esta doutrina condenada, apresentando em seu favor uma argumentação muito convincente, sem apostar qualquer solução definitiva; tornei-me por este facto fortemente suspeito de heresia, isto é, de ter mantido e acreditado que o Sol está no centro do mundo e é imóvel e que a Terra não está no centro e se move.
Por este facto, e querendo apagar do espírito de VV. Eminências e de qualquer cristão fiel esta suspeita veemente a justo título concebida contra mim, abjuro e maldigo de coração sincero e com fé não simulada os erros e as heresias supracitadas e, em geral, qualquer outro erro, heresia e empreendimento contrários à Santa Igreja; juro, no futuro, jamais dizer ou afirmar de viva voz ou por escrito seja o que for que permita haver de mim semelhante suspeita e, se por acaso vier a encontrar um hierático ou tido como tal, denunciá-lo-ei a este Santo Ofício, ao inquisidor ou ao prelado da diocese onde resido.Juro também e prometo cumprir e observar estritamente as penitências que me foram ou vierem a ser-me impostas por este Santo Ofício; e, se desobedecer, que o não queira Deus, a uma das minhas promessas e juras, submeto-me a todas as penas e castigos que são impostos e promulgados pelos sagrados cânones e pelas outras constituições gerais e particulares contra semelhantes delinquentes. Com a ajuda de Deus e dos Santos Evangelhos, que toco com as minhas mãos.
Eu Galileu Galilei, abaixo assinado, reneguei, jurei, prometi e comprometi-me como acima ficou dito; em fé do que, para atestar a verdade com a minha própria mão, assinei a presente cédula da minha abjuração e recitei-a, palavra por palavra, em Roma no Convento de Minerva, a 22 de Junho de 1633.
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Atordoado por um julgamento de cuja celeridade e rigor não tinha suspeitado, ele assina, sem uma palavra. Depois, lentamente, deixa estes lugares, curvado, vacilante, como que quebrado para sempre, quebrado nesse imenso orgulho que lhe tinha permitido dominar a Itália intelectual durante os últimos trinta anos. Mais tarde tomara conhecimento de que o sobrinho do papa se contava entre os três cardeais que se opunham à sentença, mas neste momento está quebrado pela mudança de parecer daquele que fora durante mais de dez anos o seu protector, o seu amigo papa Urbano VIII, que ele acreditara poder desafiar impunemente.
Enquanto se retirava lentamente para a sua casa de Florença, condenado à reclusão doméstica, a nova espalha-se pela Europa como um rastilho de pólvora. Descartes, assustado, suspendeu a publicação do seu livro consagrado à explicação do mundo, os protestantes, contentíssimos, deram a voz e a palavra escrita aos seus cientistas, recolocaram em lugar de honra os trabalhos escritos do mais respeitado de entre eles, Kepler, o matemático imperial falecido em 1630.Sábio respeitado e admirado, Galileu transformou-se de um dia para o outro em mártir. Entrou na lenda dos séculos, erigido em símbolo eterno da verdade face à vaidade, da liberdade de pensamento face à censura, da luminosa ciência face à obscura crença. O seu processo, dado como exemplo, marcou para sempre a Santa Igreja católica com o selo da intolerância e do obscurantismo.
O seu processo, resumido pela famosa expressão epuur, si muove! (que Galileu, sem dúvida, nunca pronunciou), é dado como exemplo da denegação da justiça. Contudo, nada teríamos compreendido da complexidade das relações que desde há sete séculos se entretecem entre a Igreja católica e a ciência se nos contentássemos com a simples exposição deste acontecimento.O processo de Galileu é certamente um processo intentado por uma crença a uma ciência, por um obscurantismo dogmático a um autêntico génio intelectual, mas é também o de um homem de ciência cuja arrogância desesperou uma fracção da Igreja que, no entanto, estava disposta a mostrar-se tolerante, antes de exasperar o papa, aliás seu amigo sincero.
O processo de Galileu foi também uma arma, entre outras, utilizada pelo papa para fazer face ao crescimento do protestantismo, encorajado secretamente por Richelieu, primeiro-ministro de França, antes de ser cardeal da Igreja, tendo Urbano VIII tentado restabelecer por uma sanção religiosa espectacular uma autoridade espiritual e temporal muito enfraquecida.
A partir deste processo trata-se, pois, de determinar a posição das grandes correntes de pensamento da cristandade em face do progresso científico, atitudes ambíguas, ondulantes, variáveis, frequentemente ligadas mais a considerações de ordem política do que de ordem religiosa.”
3 comentários:
Lembro-me com grande gosto deste livro, muitíssimo bem escrito e fundamentado.
Não é este mesmo Claude Allegre que está prestes a entrar no governo de França como ministro do ambiente?
A intenção da estimada Helena Damião era ótima, só que pecou pela falta de revisão crítica. Quiçá confirmando a tese controversa do Desidério de que o trabalho não-remunerado pode dar nestas coisas.
A tradução, particularmente do ato de abjuração do Galileu é, no mínimo, péssima, e não só no que toca ao estilo. O tradutor, ou melhor, o traditore, entre outras barbaridades, escreve "hierático" ou devia estar "herege" ou algo parecido.
A fim de avaliar os desvarios da versão portuguesa, eis aqui o original em italiano da referida abjuração:
"Io Galileo, fig.lo del q. Vinc.o Galileo di Fiorenza, dell'età mia d'anni 70, constituto personalmente in giudizio, e inginocchiato avanti di voi Emin.mi e Rev.mi Cardinali, in tutta la Republica Cristiana contro l'eretica pravità generali Inquisitori; avendo davanti gl'occhi miei li sacrosanti Vangeli, quali tocco con le proprie mani, giuro che sempre ho creduto, credo adesso, e con l'aiuto di Dio crederò per l'avvenire, tutto quello che tiene, predica e insegna la S.a Cattolica e Apostolica Chiesa. Ma perché da questo S. Off.io, per aver io, dopo d'essermi stato con precetto dall'istesso giuridicamente intimato che omninamente dovessi lasciar la falsa opinione che il sole sia centro del mondo e che non si muova e che la terra non sia il centro del mondo e che si muova, e che non potessi tenere, difendere né insegnare in qualsivoglia modo, né in voce né in scritto, la detta falsa dottrina, e dopo d'essermi notificato che detta dottrina è contraria alla Sacra Scrittura, scritto e dato alle stampe un libro nel quale tratto l'istessa dottrina già dannata e apporto ragioni con molta efficacia a favor di essa, senza apportar alcuna soluzione, sono stato giudicato veementemente sospetto d'eresia, cioè d'aver tenuto e creduto che il sole sia centro del mondo e imobile e che la terra non sia centro e che si muova;
Pertanto volendo io levar dalla mente delle Eminenze V.re e d'ogni fedel Cristiano questa veemente sospizione, giustamente di me conceputa, con cuor sincero e fede non finta abiuro, maledico e detesto li sudetti errori e eresie, e generalmente ogni e qualunque altro errore, e eresia e setta contraria alla S.ta Chiesa; e giuro che per l'avvenire non dirò mai più né asserirò, in voce o in scritto, cose tali per le quali si possa aver di me simile sospizione; ma se conoscerò alcun eretico o che sia sospetto d'eresia lo denonzierò a questo S. Offizio, o vero all'Inquisitore o Ordinario del luogo, dove mi trovarò.
Giuro anco e prometto d'adempire e osservare intieramente tutte le penitenze che mi sono state o mi saranno da questo S. Off.o imposte; e contravenendo ad alcuna delle dette mie promesse e giuramenti, il che Dio non voglia, mi sottometto a tutte le pene e castighi che sono da' sacri canoni e altre constituzioni generali e particolari contro simili delinquenti imposte e promulgate. Così Dio m'aiuti e questi suoi santi Vangeli, che tocco con le proprie mani,
Io Galileo Galilei sodetto ho abiurato, giurato, promesso e mi sono obligato come sopra; e in fede del vero, di mia propria mano ho sottoscritta la presente cedola di mia abiurazione e recitatala di parola in parola, in Roma, nel convento della Minerva, questo dì 22 giugno 1633.
Io, Galileo Galilei ho abiurato come di sopra, mano propria."
e, para quem tenha dificuldade com a língua de Dante, uma versão inglesa:
"I, Galileo, son of the late Vincenzo Galilei, Florentine, aged seventy years, arraigned personally before this tribunal, and kneeling before you, Most Eminent and Reverend Lord Cardinals, Inquisitors-General against heretical depravity throughout the entire Christian commonwealth, having before my eyes and touching with my hands, the Holy Gospels, swear that I have always believed, do believe, and by God's help will in the future believe, all that is held, preached, and taught by the Holy Catholic and Apostolic Church. But whereas -- after an injunction had been judicially intimated to me by this Holy Office, to the effect that I must altogether abandon the false opinion that the sun is the center of the world and immovable, and that the earth is not the center of the world, and moves, and that I must not hold, defend, or teach in any way whatsoever, verbally or in writing, the said false doctrine, and after it had been notified to me that the said doctrine was contrary to Holy Scripture -- I wrote and printed a book in which I discuss this new doctrine already condemned, and adduce arguments of great cogency in its favor, without presenting any solution of these, and for this reason I have been pronounced by the Holy Office to be vehemently suspected of heresy, that is to say, of having held and believed that the Sun is the center of the world and immovable, and that the earth is not the center and moves:
Therefore, desiring to remove from the minds of your Eminences, and of all faithful Christians, this vehement suspicion, justly conceived against me, with sincere heart and unfeigned faith I abjure, curse, and detest the aforesaid errors and heresies, and generally every other error, heresy, and sect whatsoever contrary to the said Holy Church, and I swear that in the future I will never again say or assert, verbally or in writing, anything that might furnish occasion for a similar suspicion regarding me; but that should I know any heretic, or person suspected of heresy, I will denounce him to this Holy Office, or to the Inquisitor or Ordinary of the place where I may be. Further, I swear and promise to fulfill and observe in their integrity all penances that have been, or that shall be, imposed upon me by this Holy Office. And, in the event of my contravening, (which God forbid) any of these my promises and oaths, I submit myself to all the pains and penalties imposed and promulgated in the sacred canons and other constitutions, general and particular, against such delinquents. So help me God, and these His Holy Gospels, which I touch with my hands.
I, the said Galileo Galilei, have abjured, sworn, promised, and bound myself as above; and in witness of the truth thereof I have with my own hand subscribed the present document of my abjuration, and recited it word for word at Rome, in the Convent of Minerva, this twenty-second day of June, 1633.
I, Galileo Galilei, have abjured as above with my own hand."
Alberto Sousa
Agradeço ao leitor Alberto Sousa a correcção e a disponibilização no "De Rerum Natura" do texto em mais duas línguas. Helena Damião
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