domingo, 19 de abril de 2009

A falta do ensino técnico-profissional


Novo post sobre educação do nosso habitual colaborador Rui Baptista (na foto Cristiano Ronaldo):

“A universidade revela todas as capacidades, e até as incapacidades” (A.Tchekov)

Mais vezes do que aquelas que a minha paciência suporta algumas vozes tentam convencer a opinião pública da bondade do boom operado no actual sistema educativo que se traduziu em aumentos exponenciais de cidadãos de posse de diplomas de ensino superior.

Tudo isto seria digno de encómio, ou mesmo de orgulho nacional, não se desse o caso de na percentagem de licenciados se incluírem todos os indivíduos com um pergaminho ou simples cartolina com o imprimatur do Estado que os iguala em direitos e os desiguala em deveres, numa espécie de preito a um demérito que a ética deve reprovar, a justiça obriga a rejeitar e um estado de direito não pode legitimar. Aqueles valores percentuais só são possíveis pelo desconhecimento de uma simples regra da adição no ensino primário que diz que não se podem somar peras com maçãs.

Há quem diga que a actual situação, na qual a bolsa dos pais conta mais que a massa cinzenta dos filhos, se deve a uma louvável democratização do ensino, que faz com que indivíduos que ontem trabalhavam nas obras possam hoje pensar no acesso à universidade. Pena é, no entanto e por outro lado, que, devido ao desemprego de diplomados em engenharia, estes, por vezes sem o suficiente “know-how”, sofram agora o pesadelo de terem que ir para as obras.

Ora este statu quo fica a dever-se a uma coisa bem simples, que repousa menos no direito constitucional à educação e mais no novo-riquismo da democracia portuguesa, que foi reconhecida pelo ex-ministro da Educação David Justino quando lamentava o facto de, no pós-25 de Abril, “se ter morto o ensino técnico e profissional, tendo-se perdido, com isso, quase 30 anos” (Diário de Coimbra, 10/12/2003).

Por acreditar num ensino técnico devidamente dignificado me fiz seu defensor por várias vezes nos media (v.g., “A extinção dos liceus e escolas técnicas”, Diário de Coimbra, 26/07/2001). Mas ouçamos, sobre esta temática, a voz de Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard e festejado autor da “Teoria das Inteligências Múltiplas”:

“Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda a gente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-los. Há centenas de maneiras de ser bem sucedido e muitas, muitas capacidades que nos ajudarão a lá chegar”.

E, se é verdade que o direito à educação está estabelecido pela Constituição, igual direito se perfila no que respeita à cultura física e à prática desportiva. Mas daí a defender que o acesso à universidade deve ser para todos, independentemente das suas capacidades intelectuais ou de trabalho, apresenta o mesmo vício de forma que considerar que aos praticantes de futebol de menor aptidão físico-motora deve ser facultada a integração nas equipas profissionais dos maiores clubes da 1.ª Liga de futebol. Em mera hipótese, suponhamos que Eusébio, Figo e Cristiano Ronaldo tinham sido obrigados a desistir das suas competências, para utilizar a classificação de Gardner, “corporal-cinestésicas” em favor de exigências “lógico-matemáticas ou linguísticas”. Não seriam eles hoje indivíduos a aumentar os números do insucesso escolar, mesmo que escamoteados em dados estatísticos para inglês ver?

Por este facto, considero que colocar indivíduos no ensino técnico-profissional depois de terem falhado anos consecutivos num ensino direccionado para o ingresso em escolas de ensino superior desacredita aquele ensino tornando-o numa escolha de último recurso. Urge mudar a mentalidade de uma sociedade arreigada a padrões obsoletos de sucesso, regressando a um ensino que, a partir do 6.º ano de escolaridade, seja capaz de indicar ao aluno o caminho a seguir, segundo as suas capacidades avaliadas em testes de aptidão vocacional. E, além disso, não misturando numa mesma escola secundária alunos de “caneta” com alunos que necessitam de oficinas devidamente apetrechadas e professores com a necessária formação técnica.

Julgo ter conhecimento de causa por ter iniciado a minha carreira de professor na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, da então Lourenço Marques, e ter-me deparado, décadas volvidas, com um site que homenageia o respectivo corpo docente em agradecimento dos seus alunos pela formação académica recebida e pelo seu não menos importante desenvolvimento como pessoas. Lê-se aí:

“Naturalmente que, como em tudo, no respeitável corpo docente que ao longo dos anos leccionou na nossa escola, nem todos conseguiram ser populares, mas todos contribuíram, de uma forma ou de outra, para a nossa formação, quer como estudantes, quer como pessoas. Alguns deixaram a sua marca. (...) Ainda hoje, e eu faço notar isso aos meus filhos, eu sei o nome dos meus professores, e faço questão de realçar a sua competência. Pena que nem todos eles possam já tomar conhecimento de que também fazem parte da nossa saudade académica”.

É este ensino técnico, viveiro de profissionais de valor e de homens reconhecidos, que deve merecer o respeito dos cidadãos e o remorso de políticos que, em nome de uma sociedade sem classes, a transformaram numa sociedade desclassificada académica e profissionalmente. Só desta forma sairá reforçada uma educação que não tenha como “única direcção a conveniência”, como escreveu Eça de Queiroz.

Rui Baptista

10 comentários:

FJM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
purpurina disse...

a formação técnico-profissional é de facto importante e tem de parar de ser considerada como o parente pobre do ensino - não tem de o ser.

contudo, acho perigosa a ideia da "separação do trigo do joio" nas primeiras etapas de formação dum aluno. são inúmeros os casos de alunos "fraquinhos" nos primeiros anos de escolaridade que desabrocham no ensino superior, assim como alunos considerados brilhantes por vezes emperram mais tarde. assusta-me a ideia de colocar etiquetas nas testas dos alunos, e o caso do ensino na baviera alemã talvez possa ensinar-nos como não fazer.

conheço o sistema muito mal, mas segundo o que me foi explicado, até há uns anos era prática comum encaminhar os alunos para escolas especiais (direccionadas ou para o ensino técnico-professional ou para o ensino universitário) assim que terminavam o ensino básico (e agora não sei se seria após o quarto ou após o sexto ano de escolaridade). o sistema estava (está?) montado de tal maneira que assim que um aluno ingressasse num tipo de ensino se tornava muitíssimo difícil alterar a escolha.

este sistema apresenta, numa análise muito superficial e incompleta, vários problemas:
- inflexibilidade dos processos;
- diferenciação por "tipos de inteligência" numa idade em que esta ainda não está plenamente desenvolvida;
- estigmatização dos alunos enviados para as escolas de "burros" (que existe!);
- diferença na qualidade de ensino disponibilizada nos dois tipos de estabelecimentos;
- dependência de avaliadores externos, que desconhecem os alunos, ou de avaliadores internos, inerentemente subjectivos.

este é um assunto complicado. como conseguir garantir ensino de qualidade a toda a população estudantil, oferecendo uma panóplia de opções adequadas a cada indivíduo (encaminhando-o para uma actividade profissional que o satisfaça e o estimule), e ao mesmo tempo destruir a ideia da "escola dos pobres/burros"?

joão boaventura disse...

O problema posto por Purpurina ocorreu há anos na Nigéria resolvido por um sistema similar.

Consistia em avaliar as capacidades intelectuais e psicotécnicas dos alunos, após as quais, uns eram encaminhados para o secundário e Universidade, outros para actividades manuais (carpinteiro, electricista, mecânicos,...).

Desconheço se o sistema vingou ou claudicou.

Anónimo disse...

caro rui batista
os seus filhinhos foram para o profissional ou sao eles dotados para ensino superior como todos os filhos de uma certa classe favorecida
nas escolas normalmente perdem se os miudos desfavorecidos porque os outros ja se sabe,
SAO DOTADOS mas so pelo apoio ENORME dos paizinhos
evidente ja os miudos desfavorecidos tem de ser operarios para que os seus filhos possam ser doutores entao mais vale com formacao profissional assim ja podemos todos dormir tranquilos

artur campos

Rui Baptista disse...

Agradeço os 2 comentários acima. Quando escrevi o "post", estava ciente de ser um assunto polémico (ou mesmo um vespeiro) com pistas a seguir, possíveis ferroadas por um caminho espinhoso e sem receitas prontas a resolver todos os problemas que afectam o sistema educativo nacional.

Responderei a estes dois comentários ( redigidos sem ferroadas) e espero, sinceramente, que estes e outros que, porventura, sejam escritos posteriormente, me (nos) possam ajudar, a problematizar esta complexa temática em critérios bem mais amplos.

Da minha parte, a promessa de tentar romper com tabus tão prejudiciais em resolver os problemas que afectam a vida actual e futura dos pais que julgam poder encontrar no actual sistema educativo a panaceia que resolva o futuro dos filhos, esse, sim, verdadeiramente um mesmo problema a várias incógnitas num país em que ainda se tem uma licenciatura obtida “com sangue, suor e lágrimas” tão, ou mais, importante que um altíssimo cargo na governação do país. Infelizmente, é nessa perspectiva que o ensino tem encontrado os seus frágeis caboucos, por vezes, de um oportunismo que leva o ensino superior a tornar-se num negócio altamente rendoso na venda de papeluchos que pouca ou nenhuma utilidade possuem a não ser satisfazer o ego dos seus semi-analfabetos possuidores. São estes os parâmetros que condicionaram o post. Mas estão longe de serem os únicos.

Anónimo disse...

de um oportunismo que leva o ensino superior a tornar-se num negócio altamente rendoso na venda de papeluchos que pouca ou nenhuma utilidade possuem a não ser satisfazer o ego dos seus semi-analfabetos possuidore
caro rui batista continua a pensar de forma errada penso que devia trabalhar a equacao de outra forma
primeiro o mercado tem funcao selectiva,darwin, isto e, os mais fortes vencem a nao ser que haja paizinhos para dar um empurrao mas de qualquer forma de entre os que nao tem ajudas da providencia o mercado absorve os mais competentes quanto aos outros resta lhes repensar, esta e uma caracteristica do ser humano, a capacidade de reavaliar e agir de acordo com nova informacao.
nao tenha medo da democratizacao massiva do ensino superior e quem tira um curso sempre vai a tempo de ser carpinteiro ou outra coisa qualquer se assim o desejar
lamento e que alguns protegidos tenham certos lugares reservados isto sim deve nos preocupar e envergonhar

art campos

nuvens de fumo disse...

“se ter morto o ensino técnico e profissional, tendo-se perdido, com isso, quase 30 anos” (Diário de Coimbra, 10/12/2003).

sim e depois como o mercado de trabalho remunera mais uns que outros .... obviamente quem pode tira a licenciatura.

Eu não sei onde estas pessoas vivem, mas essa coisa do ensino técnico acaba com os eng. de cursos de 3 anos a tirar doutoramentos em espanha LOLLL

Era interessante se alguém percebesse que o que se passa é simples: as instituições do país estão decadentes e em tempos mais exigentes nota-se mais o rasgão.

é a universidade, a justiça, o ensino , de uma maneira geral tudo o que é estruturante.

Existem países assim, lá para o sul, entre os trópicos.

Com o aquecimento global, alargam-se os desertos...

Anónimo disse...

O sr. ex-ministro David Justino apenas disse o que eu constato há muito. Respondendo sobre o joelho e a ordem é indifernte:
1) Um dos maiores erros do ensino pós-25 de abril foi o de ter acabado com as Escolas Industriais e Comerciais e Liceus.
2) O problema é que essa divisão era "classissista".
3) Omitir essa diferença, valorizando o ensino nos dois tipos de coorperações era (devia ter sido...) o rumo a seguir.
4) Pelo contrário, optou-se por unificar o ensino e, ao longo do tempo, este foi sendo nivelado por baixo.
5) Paralelamente surgiu o ensino de valorização, baseado em explicações, para ultrapassar o facilitismo e o fracasso que se instalou.
6) A exigência da escola diminui enormemente e a valorização do ensino tombou.
7) Todos os intervenientes no sistema foram envolvidos nesta teia (pessoal docente, programas, alunos), como consequência o ensino bateu no fundo.
8) Com o vazio surgido da unificação do ensino, do seu nivelemaneto por baixo e de alunos que ou não tinham desejo de tirar um curso superior ou não tinham potencialidades para o fazer, surgem Escolas Profissionais.
9) Estas passam a (tentar) substituir as extintas Escolas comerciais e industriais.
10) Os sucessivos governos reconhecem os sucessivos erros e experiências falhadas e tentam colmatar os erros. Criam cursos Ténico-Profissionais. Muitos alunos com potencialidades para ofícios ou que, simplesmente, falharam no ensino normal, são encaminhados para estes cursos. São alunos repetentes, alunos com "dificuldades de progressão", etc. Um processo de combater o abandono escolar.
11) Os novos cursos CEFs e similares, esbarram entre as possibilidades das escolas públicas e as dezenas de instituições privadas que foram criadas para dar formação (escolas profissionais, escola de..., centro de formação...), ou seja, há demasiada oferta e a escola publica tecnológica não tem possibilidades de se implementar. Muitas dessas instituições são financiadas e os formandos recebem pela formação.
12) é necessário pensar, de alto a baixo, o que se pretende. Não é possível falar de formação tecnológica e valorizá-la se não for possível criar condições para que esta se afirme e seja valorizada.

João Moreira

Rui Baptista disse...

Dado o interesse da temática e, principalmente, dos comentários que mereceu, encontro-me a redigir um novo post que amplie a perspectiva da sua abordagem.

maria disse...

Muito bom o seu artigo. E na Holanda e na Suiça penso que funcionam uns sistemas em que até dado ciclo os meninos podem ser reclassificados. E só quem termina num dado nível o secundário ingressa na faculdade. E não é pelos pais serem ricos.., claro que se forem ,sempre podem por o rebento numa universidade privada , mesmo que o seu destino fosse uma escola técnico profissional.

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