Na sequência do texto do Carlos, intitulado “
Desconcerto educativo”, afixado no
De Rerum Natura no passado dia 15 de Fevereiro, e para que se perceba qual o
lugar da música no Ensino Básico, bem como a sua
substância, aqui sistematizo, praticamente transcrevendo, o que é prescrito nos documentos que estabelecem o currículo nesse nível de ensino em Portugal: Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro; Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais datado de 2001; Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.
“A música é um elemento importante na construção de outros olhares e sentidos em relação ao saber e às competências, sempre individuais e transitórias, porque se situa entre pólos aparentemente opostos e contraditórios, entre razão e intuição, racionalidade e emoção, simplicidade e complexidade, entre passado, presente e futuro.”
(
Currículo Nacional do Ensino Básico, página 165).
Com a citação acima destacada, constante no
Currículo Nacional do Ensino Básico, inicia-se a explicação do que é a
Literacia Musical, uma competência global que os alunos devem adquirir, ao longo dos nove anos que compõem o dito nível de ensino. Segue-se o esclarecimento da relação entre as competências musicais mais específicas e as competências gerais, uma vez que toda a aprendizagem deve acontecer “numa rede de dependências e interdependências”. Um esquema complexo, que ocupa uma página inteira desse documento, do qual omito a maior parte da informação, sistematiza a ligação da música – ou, como se refere, da(s)
música(s) - com as Línguas, a Matemática; as Ciências Humanas e Sociais, as Ciências Físicas e Naturais, as Tecnologias, a Expressão e Educação Físico-Motora, e as outras Artes.
Vejamos, então:
1. O lugar da Música no Currículo do Ensino BásicoO Ensino Básico é composto por três ciclos. O plano curricular de cada um desses ciclos inclui duas dimensões: “Áreas curriculares” (que estão divididas em “Áreas Curriculares Disciplinares” e “Áreas Curriculares Não Disciplinares”) e “Actividades de Enriquecimento Curricular”. Estas dimensões devem ter presente e orientar-se por um aspecto que lhes é transversal: a Educação para a Cidadania.
No 1.º ciclo, com a duração de quatro anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as “Áreas Curriculares Disciplinares de Frequência Obrigatória” (Língua Portuguesa, a Matemática, o Estudo do Meio, as Expressões Artísticas e Físico-Motoras) e uma “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
As “Actividades de Enriquecimento Curricular”
podem incluir a Expressão Musical.
No 2.º ciclo, com a duração de dois anos, as “Áreas Curriculares Disciplinares” incluem as áreas de Línguas e Estudos Sociais (Língua Portuguesa, uma Língua Estrangeira; História e Geografia de Portugal) de Matemática e Ciências (Matemática e Ciências da Natureza) de Educação Artística e Tecnológica (Educação Visual e Tecnológica e
Educação Musical) e de Educação Física. Nestas Áreas inclui-se, ainda, a “Área Curricular Disciplinar de Frequência Facultativa (Educação Moral e Religiosa).
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.
No 3.º ciclo, com a duração de três anos, as “Áreas curriculares disciplinares” incluem a Língua Portuguesa, duas Línguas Estrangeiras, Ciências Humanas e Sociais (História e Geografia), Matemática, Ciências Físicas e Naturais (Ciências Naturais e Físico-Químicas), Educação Física, Introdução às Tecnologias da Informação e da Comunicação, e Educação Artística (Educação Visual e Outra Componente
por oferta da escola, que pode ser Educação Musical.
As “Áreas Curriculares Não Disciplinares” incluem a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado, a Formação Cívica.
Existem, ainda, as “Actividades de Enriquecimento Curricular” e "Outra Componente" a decidir pela escola.
Fazendo o raciocínio do fim para o princípio, e não me desviando daquilo que está estabelecido nos
documentos macro-curriculares vigentes, é possível afirmar que a Música
não tem um lugar bem definido nem estável no currículo do Ensino Básico, pois no
1.º ciclo pode situar-se nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” que são “actividades de carácter facultativo” (Decreto-Lei n.º 209/2002)., no
2.º ciclo situa-se nas “Áreas Curriculares Disciplinares” e no
3.º ciclo, apesar de se situar nestas áreas, pode ou não ser disponibilizada pela escola.
Por outro lado, tendo em conta as múltiplas componentes do currículo, o lugar da Música é ínfimo no Currículo do Ensino Básico.
2. A substância do ensino da Música no Currículo do Ensino BásicoPara se compreender este aspecto é importante saber quais são as competências que os alunos devem adquirir com a aprendizagem da música.
São três as competências centrais referidas: “ouvir, interpretar e compor”. Essas competências articulam-se, no esquema acima reproduzido, com “quatro grande organizadores”: interpretação e comunicação; percepção sonora e musical; cultura musical nos contextos; e criação e experimentação (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 170).
Tais “organizadores” são especificados em competências que os alunos devem demonstrar no final do nível de Ensino em causa, as quais, por sua vez, remetem para “tipos de situações de aprendizagem” que se lhes deve apresentar em cada ciclo.
Noutro esquema, mais complexo do que este, com setas que apontam em todos os sentidos, as três competências centrais ligam-se às seguintes proposições: “Interpreta, sozinho e em grupo (canto e instrumento) diferentes géneros e tipologias musicais”; “Adquire diferentes códigos e convenções de leitura, escrita e notação musical”; “Compreende as relações entre a música, outras artes e áreas do conhecimento tendendo à perspectiva sócio-histórica, sócio-técnica e cultural”; “Compreende a música em relação à sociedade, à história, à cultura”; Analisa, descreve, compreende e avalia auditivamente produtos e processos musicais”; e “Improvisa, compõe e faz arranjos a partir de elementos predefinidos ou outros” (Currículo Nacional do Ensino Básico, página 172).
Em suma: é ambiciosa e complexa a substância do ensino da Música no Currículo Ensino Básico.
3. Conjugando os pontos 1 e 2A análise dos documentos em apreço – redigidos numa linguagem hermética, confusa e redundante, de que é exemplo a frase com que iniciei este texto – permite inferir que existe uma
incongruência, eu diria inultrapassável, entre o lugar recôndito que a música ocupa no currículo do Ensino Básico e as ambições que, no mesmo documento, são explicitadas para a sua aprendizagem.
Assim, uma vez reformados os Conservatórios, e entregue uma boa parte das suas competências às escolas básicas, diminuem as possibilidades de os alunos entre os seis e os quinze anos, ou seja, no período de vida mais adequado para a aprendizagem da música terem acesso, no ensino oficial, ao
acompanhamento, à
exigência e à
dignidade pedagógica que essa aprendizagem requer.
E porquê? Porque as escolas básicas não têm nem se prevê que venham a ter num futuro próximo, condições logísticas para assumirem essa responsabilidade, porque a preparação dos professores que leccionam música tem lacunas graves, porque as condições em que estes professores trabalham são degradantes, porque as turmas têm vinte alunos ou mais, porque as escolas não dispõem de espaços adequados nem de instrumentos musicais… Porque, enfim, no nosso país, apesar da retórica da tutela, a música não foi no passado, nem é no presente encarada como uma área fundamental de aprendizagem formal, ainda que a investigação científica nos diga que é, ainda que a tradição educativa ocidental a justifique, ainda que seja obrigação moral da Escola transmitir a herança civilizacional e cultural às novas gerações.
Uma última nota: não obstante o ensino da música ter sido recentemente integrado nas “Actividades de Enriquecimento Curricular” do 1.º ciclo de escolaridade, o problema mantém-se, pois, mesmo que todas as condições acima referidas fossem excelentes, não é possível em dois blocos de 45 minutos por semana, levar os alunos, em grupos heterogéneos e alargados, a “ouvir, interpretar e compor música”.
Figura: Chichorro,
Aula de Música, Óleo sobre tela, 2002 (Retirada de: http://espacotempo.files.wordpress.com/2006/10/chichorro-aula-de-musica-oleo-sb-tela-100x81-2002.jpg).
Documentos consultados:
- Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências essenciais. Lisboa: ME/DEB.
- Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro (Organização Curricular do Ensino Básico).
- Decreto-Lei n.º 209/2002 de 17 de Outubro.