segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Sagan responde

Acaba de sair um interessante livro de entrevistas de Carl Sagan, na editora Quasi. Intitula-se "Conversas com Carl Sagan", a organização é de Tom Head, a tradução e notas de Rui Lages e o prefácio de Pedro Russo (coordenador internacional do Ano Internacional da Astronomia 2009). O volume (ao lado a capa da edição orginal norte-americana) sai na colecção "Dragões do Eden", curiosamente o mesmo título de um dos livros de Sagan.

Para abrir o apetite para o livro trancrevo dois trechos da entrevista à revista "Hemispheres", de Outubro de 1994:

"P. Como é que a ignorância acerca da ciência prejudica as pessoas no seu dia-a-dia?

R. Vivemos numa sociedade totalmente dependente da ciência e da tecnologia e no entanto arranjamos as coisas de forma a que quase ninguém compreenda a ciência e a tecnologia. Eis uma receita infalível para o desastre. Todos os dias são tomadas decisões em Washignton que irão afectar o nosso futuro, coisas como as auto-estradas da informação ou a redução dos arsenais nucleares, a investigação sobre o vírus da SIDA, o debate sobre se as drogas que aliviam as dores dos moribundos devem ser descriminalizadas, qual é o melhor rumo para que a América continue a liderar a indústria da tecnologia, como lidar com a diminuição da camada de ozono, ou o aquecimento global. É difícil encontrar-se algum aspecto das sociedades modernas que não dependa de tomadas de decisão inteligentes no âmbito da ciência e tecnologia. É suposto sermos uma democracia. É suposto que o povo se assegure de que os seus representantes votem correctamente. Como é que podem fazer isso se nem sequer conhecem os temas em cima da mesa, ou se os conhecem e não são capazes de entendê-los?

P. Porque é que as pessoas não estão a acompanhar a ciência?

R. (...) As causas, estou convencido, são as seguintes: a ciência é difícil, a ciência nem sempre vai de encontro aos nossos sonhos, a ciência nem sempre nos conforta, a ciência coloca imenso poder nas mãos de pessoas das quais temos todas as razões para desconfiar. Os cientistas são responsáveis, num certo sentido, através da engenharia, pela diminuição da camada de ozono, pelo aquecimento global e tudo o resto. Mas muitos cientistas dirão, 'alto lá, estamos a penas a fazer o nosso trabalho. Tudo isso resulta de má aplicação da ciência por parte dos governos e da indústria.' Até certo ponto, é verdade. E até certo ponto os cientistas têm sido muito corajosos ao chamarem a atenção para os perigos oferecidos por essas tecnologias. Porém, ainda assim, se não tivéssemos a ciência não teríamos estes problemas. Mas também teríamos uma esperança de vida de 25 anos, a mortalidade infantil seria imensa, e muitas das coisas que tornam a vida agradável não existiriam".

8 comentários:

Flávio Santos disse...

A ignorância relativa à ciência daqueles que têm nas suas mãos os nossos destinos, revela-se uma verdadeira receita para o desastre. Especialmente quando o que determina a ignorância é uma série de enviesamentos cognitivos que não deveriam estar presentes em quem, supostamente, serve o povo.

Manuel Rocha disse...

A parte em que os cientistas dizem que estão "apenas a fazer o seu trabalho" é interessante.

Interessante porque remete para Pilatos: " lavo daí as minhas mãos".

Trata-se dum argumento de reinvidicação de "imunidade" curioso, sobretudo depois de se dizer que sendo a ciência dificil, a maioria das pessoas não a entende e não estará em condições de decidir conscientemente sobre as suas implicações.

Salvo melhor opinião não me parece que haja alguém melhor posicionado para decidir sobre os impactos sociais dos produto da ciência que a própria comunidade cientifica. Isso no entanto não obstou a que a equipa do Projecto Manhatan fizesse "apenas" o seu trabalho.

Ou seja: há por aí responsabilidades que têm que ser partilhadas e não fica bem a ninguém sacudir a àgua do seu capote.

O argumento final sobre a esperança média de vida e a mortalidade infantil, é tão verdadeiro que se torna demagógico. No percurso para chegarmos onde chegamos, seguimos sempre em frente nas encruzilhadas. Saber onde estariamos se tivessemos optado aqui e ali por "lateralizar" é puramente especulativo.

Anónimo disse...

Li "Um mundo infestado de demónios" e pareceu-me que muito do que é justamente apresentado ficaria melhor em formato pergunta/resposta: quero ler este livro!

Anónimo disse...

Caro Manuel Rocha: não percebi (mesmo, não é uma provocação) o seu comentário:

"O argumento final sobre a esperança média de vida e a mortalidade infantil, é tão verdadeiro que se torna demagógico."

Quanto aos cientistas do projecto Manhattan, não tenho a ideia que se tenham escudado na desculpa de não compreenderem as aplicações daquilo em que trabalhavam: de facto, estavam a laborar exclusivamente numa aplicação bélica de algo baseado no conhecimento acrescentado de Einstein, de Broglie, Heisenberg, Dirac, etc -- a mecânica quântica.

De facto, a típica acusação deveria ser desviada para estes últimos, os criadores da dita mecânica quântica. E, neste caso, parece-me manifestamente exagerado responsabilizar teóricos que se dedicavam a compreender o funcionamento da matéria e energia a escalas diminutas de não anteciparem (com mais de dez, vinte ou trinta anos de antecedência) as aplicações brutais das suas descobertas.

Parece-me, no entanto, justo realçar que os cientistas do projecto Manhattan acreditavam verdadeiramente que "a bomba" iria decidir o destino da segunda guerra mundial -- o que poderia ter acontecido, se o esforço alemão tivesse sido bem conduzido e sucedido.

Obviamente, finda a ameaça alemã, podemos questionar o porquê da bomba... mas essa foi uma decisão política, quer sob o pretexto (verdadeiro ou falso, as opiniões dividem-se) de evitar mais mortes numa invasão do Japão, quer como preparação para a guerra fria que já se vislumbrava no horizonte.

Manuel Rocha disse...

Olá Jorge:

Costumo dizer que um argumento é demagógico quando reporta para aquelas coisas tão óbvias, mas tão óbvias, que ninguém contesta.
Dizer que é graças à ciência que hoje é maior a esperança de vida e menor a mortalidade infantil, parece-me um bom exemplo.

Tudo o resto que diz está muito certo. Eu sei que o politicamente correcto é dizer-se que a ordem foi do Sr Truman. Pois. Mas duvido é que se lhe tivessem dado a ele os papers com as noções de mecãnica quântica o resultado tivesse sido o mesmo.

Tem aí algo mais actual e no entanto idêntico com a saga dos OGM´s. Duvido que o CEO da Monsanto seja capaz de alterar um genoma de um milho. Concorda ?

Atenção: não estamos a atacar ninguém! Apenas não gosto quando me sacondem para cima o guarda- chuva molhado e me dizem que esse é o custo a pagar por existirem guardas-chuva. E parece-me legitimo questionar se com tudo aquilo que se conhece não poderiamos estar todos melhor de vida e de consciência. Ou não há outras maneiras de nos protegermos da chuva ?

Anónimo disse...

Caro Manuel Roca, acho um exagero dizer-se que "O argumento final (...) é tão verdadeiro que se torna demagógico."

Manuel Rocha disse...

Rtra:

Eu até lhe dou razão, sabe. Admito que seja um exagero, e que a minha reacção se deva ao facto de aquela ser uma linha de raciocinio do tipo "tampão". Quando se chega ali não se consegue seguir para lado nenhum porque ficamos todos com a ideia dificilima de contestar de que, com os meios de que dispunhamos, é este estado civilizacional o melhor resultado que podiamos almejar. Repare que não há como contestar isto, porque ( ainda )não se regressa ao passado para ensaiar combinações diferentes.

António Viriato disse...

Com Sagan estamos sempre em boa companhia. Mesmo se rodeados de expressões inúteis como os insistentes «é suposto» da tradução. Mas, enfim, ninguém é perfeito. Sublinhemos antes o resto, que é muito e merece a nossa melhor atenção.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...