domingo, 4 de novembro de 2007

Definição de Definição

O post da Palmira fez-me ver que os cientistas não sabem muito bem do que estão a falar quando falam de definições. Nomeadamente, aceitam sem saber o preconceito positivista de que todas as definições são meramente nominais. Este preconceito é hoje em dia dificilmente aceitável em filosofia, dados os desenvolvimentos recentes em metafísica (sim, há desenvolvimentos em filosofia). De modo que aqui fica uma versão ligeiramente adaptada do artigo que escrevi para a Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos sobre o tema da definição. No meu livro A Natureza da Filosofia e o seu Ensino encontra-se igualmente um capítulo sobre o tema.


Definir algo é especificar a natureza de algo. Chama-se definiendum ao que se quer definir e definiens ao que a define. Por exemplo, pode-se definir o ouro (definiendum) como o elemento cujo peso atómico é 79 (definiens). E pode-se definir a palavra «solteiro» como «não casado». Chama-se «real» ao primeiro tipo de definição e «nominal» ao segundo.


Há três tipos principais de definições nominais: as lexicais, as estipulativas e as de precisão.


Nas definições lexicais ou de dicionário dá-se apenas conta do significado preciso que uma dada palavra realmente tem. Estas definições podem ser equivalentes a definições reais. Por exemplo, definir a palavra «água» como «líquido incolor, sem cheiro nem sabor, que se encontra nos rios e na chuva» é equivalente a definir a própria água porque muitas vezes o modo formal é equivalente ao modo material.


Usa-se uma definição estipulativa quando se introduz um termo novo (como «Dasein»), ou quando se quer usar um termo corrente numa acepção especial (como «paradigma», na filosofia da ciência de Thomas Kuhn). Uma forma falaciosa de argumentação consiste em presumir que uma definição capta sempre algo, como se a definição de «flogisto» implicasse a existência de flogisto. Outra, consiste em simular definir uma noção da qual depende a plausibilidade de uma ideia, mas fazê-lo de modo tão vago que impede qualquer avaliação crítica dessa ideia.


Usa-se uma definição de precisão quando se pretende tornar o discurso mais preciso, dando um significado particular a um termo que pode ser entendido de modos diferentes («liberdade», por exemplo). Uma forma falaciosa de o fazer é usar uma definição que não capta aspectos fundamentais da noção em causa, o que permite criar a ilusão de que se resolveu o problema em discussão.


Os tipos fundamentais de definições são os seguintes:




Nas definições explícitas define-se algo por meio de condições necessárias e suficientes ou (o que é equivalente) através do esquema «definiendum é definiens». Por exemplo, «Algo é um ser humano se, e só se, é um animal racional» ou «O ser humano é um animal racional».


Nas definições implícitas define-se algo sem recorrer a condições necessárias e suficientes. Por exemplo, ensina-se as cores às crianças por definição implícita ostensiva: apontando para exemplos concretos de objectos coloridos. A incapacidade para definir explicitamente algo não significa que não se sabe do que se está a falar, pois a maior parte das pessoas não sabe definir explicitamente as cores, mas não se pode dizer que não conhecem as cores. Contudo, a procura de definições explícitas de noções centrais é uma parte importante da filosofia e da ciência; a definição de conhecimento, arte, verdade e bem, por exemplo, tem constituído parte importante respectivamente da epistemologia, da estética, da metafísica e da ética.


As definições implícitas contextuais podem ser tão precisas e rigorosas quanto as definições explícitas. Um sistema axiomático para a aritmética, por exemplo, nunca define a soma explicitamente, mas o sistema no seu todo define correctamente esta operação.


As definições analíticas são as mais fortes de entre as explícitas, no sentido em que toda a definição analítica correcta é uma definição essencialista correcta (mas não vice-versa), e toda a definição essencialista correcta é uma definição extensional correcta (mas não vice-versa).


As definições analíticas captam o significado do termo a definir, resultando numa frase analítica. Por exemplo, a definição «Um solteiro é uma pessoa não casada» é uma frase analítica. As definições analíticas são expressões de sinonímia. Estas definições são nominais; contudo, dadas as críticas recentes à definição metafísica de analiticidade, é defensável que são igualmente reais.


As definições essencialistas procedem em termos de condições metafisicamente necessárias e suficientes. Por exemplo, a definição «A água é H2O» é essencialista porque, em todos os mundos possíveis, uma condição necessária e suficiente para algo ser água é ser H2O (ou seja, a água é necessariamente H2O). Esta definição não é analítica porque o significado da palavra «água» não é «H2O» (mesmo as pessoas que não sabem que a água é H2O sabem o significado da palavra «água»).


As definições extensionais procedem em termos de condições necessárias e suficientes. Por exemplo, a definição «Uma criatura com rins é uma criatura com coração» é uma definição extensional porque todas as criaturas que têm rins têm coração, e vice-versa. Mas noutros mundos possíveis poderá haver criaturas com rins que não têm coração, e por isso esta definição não é essencialista (logo, também não é analítica).


As definições explícitas podem falhar por 1) serem excessivamente restritas (não incluírem tudo o que deviam), 2) serem excessivamente amplas (incluírem o que não deviam) e 3) incorrerem no erro 1 e 2 simultaneamente. Por exemplo: «A filosofia é o estudo do Homem» é uma definição excessivamente restrita de filosofia, pois exclui disciplinas filosóficas como a lógica e a metafísica, entre outras; «O Homem é um bípede sem penas» é uma definição excessivamente ampla, pois inclui na categoria de Homem bípedes como os cangurus; «O Homem é um animal racional» é excessivamente ampla (poderá haver animais racionais noutras partes da galáxia, e eles não serão seres humanos) e é excessivamente restrita (alguns bebés humanos nascem sem cérebro, pelo que não podem ser racionais, mas são apesar disso seres humanos).

14 comentários:

Anónimo disse...

Embora o artigo seja informativo e interessante, parece-me que revela uma certa despreocupação do autor em qualificar o seu "lead".

Não o rotulo de arrogante (na medida em que guardo esse mimo para quem se arvora em erudito, sem tal capacidade ou consequência -- e o artigo revela cabalmente o domínio do autor no tema); mas seria assim tão custoso acrescentar um paragrafozinho ou dois em que nos elucidasse sobre o erro epistemológico da Palmira, a ilusão positivista e a cura pedagógica?

Esmiuçando a definição de definição (composição que também mereceria um parágrafo ou dois), julgo descortinar as respostas ao enigma que abre o artigo; mas o propósito deste espaço não é obrigar o leitor a deduções, porventura erradas, com base em premissas que não domina, parece-me...

Em suma, uma explicação simpática e breve, esclarecendo a incorrecção cometida, seria proveitosa para todos. Assim, não se percebe.

Anónimo disse...

Desidério

Penso que deveria ter sido mais delicado e simpático com a Palmira. Independentemente de ter, ou não, razão era desnecessária aquela referência pessoal na introdução ao post. Ainda mais com alguém que o cita, o admira, e lhe dá um estatuto de supra-sumo filosófico. Há várias formas de escrever e a sua não foi a mais feliz. Melhores dias virão.

Anónimo disse...

O artigo da Seed dá razão ao Desidério, muitos cientistas não sabem bem do que estão a falar quando falam de definições:

"In the course of researching his book, Popa started collecting definitions that have appeared in the scientific literature. He eventually lost count. "I've found at least three hundred, maybe four hundred definitions," he says."

Mas por outro lado, parece que nem todos os filósofos concordam com a metafísica dele:

"Carol Cleland, who teaches philosophy at the University of Colorado and works with the NASA Astrobiology Institute—essentially as their philosopher-in-residence—is making a more radical argument: Scientists should simply give up looking for a definition of life.

Cleland believes biologists need to build a theory of life, just as chemists built a theory of the elements and physicists built a theory of electromagnetism.

Definitions, she argues, are concerned only with language and concepts, not true understanding."

Anónimo disse...

Jorge/António Parente:

A pressa como falsamente vem em defesa da Palmira numa tentativa de tentar deitar veneno entre os colaboradores do DRN é patética.

O Desidério deve ter lido o artigo da Seed, o que pelos vistos o António Parente não fez. Leia-o e perceba o post do Desidério. O artigo é muito bom, problemas de definições àparte.

Anónimo disse...

joão paulo

patética é a teoria da conspiração, rita. se eu e o jorge, que não faço ideia de quem é, entendemos de uma forma diferente da sua significa que a forma como o texto foi escrito gera equívocos.

o texto da revista seed tem 7 páginas, rita. acha que alguém o leu além da palmira? duvido.

ninguém tem tempo disponível para seguir todos os links e ler tudo o que lhe propõem. há mais vida para além dos blogues. e ler livros também é bom, acredite. aprende-se muita coisa.

fiz aquele comentário de boa fé sem quaisquer intuitos de causar divisões entre quem quer que seja.

o seu espírito belicoso é que vê fantasmas onde eles não existem.

isto não é uma guerra, rita. é um blogue.

Anónimo disse...

Bachelard di-lo de outra forma:

"Quando o homem do povo diz que o ouro é pesado e quando o químico diz que o ouro é um metal de densidade 19,5, eles enunciam da mesma maneira o seu conhecimento, aceitando sem discussão os princípios do realismo.

A experiência química aceita tão facilmente as proposições do realismo, que não se sente a necessidade de a traduzir numa outra filosofia.

... ... ...

Neste livro inteiramente consagrado às dificuldades filosóficas actuais, não nos alargaremos sobre os dois primeiros estádios - realismo e racionalismo - da filosofia química." (pp. 49 e 50)

In "A filosofia do não. Filosofia do novo espírito científico"
Editorial Presença, colofon 1987
Lisboa,

Anónimo disse...

Outras classificações aqui

http://www.radames.manosso.nom.br/retorica/definicao.htm

Erros de definição

aqui~~http://criticanarede.com/welcome-2.htm

Por exemplo, para a definição de "risco", "After claiming that ‘risk’ has at least three main meanings, Flynn et al. (2006: section 2.1) then argue that the meanings occur within three specific contexts: the first type is ‘typically deployed in “science”, the second [is] characteristic of “experience” and the third appl[ies] to [the] “representation” of risk, for instance in the media, influenced by culture and ideology’.
In Discourse & Society, 2007; 18; 163

Há 100 definições para cada uma dcestas palavras: Filosofia,Direito, Economia, Sociologia,...

Conclusão: todas elas são boas, isto é, nenhuma serve, qualquer que seja a classificação.

Anónimo disse...

1º soluço: «O artigo é muito bom, problemas de definições à parte». Claro, claro. Mas como o artigo tem a pretensão de tratar das definições, parece que não pode escapar aos problemas em que se enredou, n'est-ce pas?

2º soluço: «o texto da revista seed tem 7 páginas, rita. acha que alguém o leu além da palmira? duvido». Também eu! Quem é que se daria ao trabalho de ler sete-páginas-sete? Pfff. Ninguém, certamente. Em especial num blogue que aspira a científico.

3º soluço: atão o Dério agora amanda-se à Palmira sem pedir sff?

Será o blog, ou este gin nacional, que me põem a soluçar tanto? Vou beber outro, a ver se descubro.

Henry Tante

Anónimo disse...

Nunca será demais acrescentar que a definição do Dério como «filósofo» também é excessivamente ampla. E também é excessivamente restrita.

G. Galhardo

Anónimo disse...

De facto é. Mas será implícita, ou explícita? Analítica, essencialista, ou extensional? Ostensiva, ou meramente contextual?

Anónimo disse...

Diz-se que ele é de uma certa categoria...

Elisabete Joaquim disse...

Uma pergunta interessante seria: que tipo de definições se deveriam exigir à ciência?

Desidério Murcho disse...

Olá, Elisabete!

Depende das ciências e depende do que está a ser definido.

Em muitos casos, é parte integrante da ciência apresentar definições reais e explícitas, e essecialistas. É o que acontece com as definições químicas dos elementos, como o ouro, e dos compostos, como a água.

Noutros casos, a ciência usa apenas definições nominais, de precisão linguística -- determinando que se usa um certo termo com um certo significado técnico.

Noutros casos ainda, a ciência usa definições implícitas, através da descrição das propriedades de um dado sistema ou fenómeno.

Anónimo disse...

Voces não têm mais nada que fazer? Já viram bem a parvoíce que estão a discutir, sendo que a definição de parvoíce é meramente essencialista.
jÁ agora, não será a definição de essencialista, meramente contextual?

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