domingo, 25 de novembro de 2007

Fé e justificação

Os meus posts sobre os argumentos tradicionais a favor e contra a existência de Deus provocaram vários comentários interessantes, e vale talvez a pena esclarecer alguns aspectos importantes.

Os posts não pretendiam, de modo algum, ser a última palavra sobre a discussão — mas apenas o início da discussão. Claro que para cada argumento apresentado nos posts há respostas, objecções e contra-argumentos. E depois há contra-argumentos a essas respostas... É isto a filosofia e a ciência: a procura incansável da verdade, apesar de nunca ser fácil encontrar a verdade. Uma coisa que me deixa sempre muito desconcertado, e com pouca fé na humanidade, é o facto de muitas pessoas desistirem deste processo por o acharem trabalhoso e aborrecido: tudo o que querem é receitas fáceis, respostas, resultados. Estão demasiado habituadas a aceitar por autoridade o que ouvem na televisão, o que aprenderem na escola, ou os resultados da história ou da física — quando se deparam com problemas em aberto declaram logo ingenuamente que não vale a pena tentar descobrir a verdade das coisas. Isto é infeliz, pois as respostas que hoje temos em história ou física ou filosofia ou seja o que for resultaram da tentativa de descobrir as coisas quando descobri-las não era fácil. O objectivo do post era ajudar os leitores a dar os primeiros passos no estudo de uma área que aparentemente é muito popular entre eles, dada a profusão de comentários que qualquer matéria religiosa sempre suscita.

Uma segunda questão, relacionada com esta, é a seguinte: alguns leitores manifestaram a ideia de que o estudo de tais argumentos é largamente irrelevante. O argumento usado a favor desta ideia, mais ou menos vagamente aludido, é algo do seguinte género: as pessoas não acreditam ou deixam de acreditar por causa de tais argumentos, por isso estes são irrelevantes — são "um mero exercício de retórica", como escreveu um leitor.

Há algo de verdadeiro neste tipo de reacção, mas também há algo de ilusório. O verdadeiro é que realmente as pessoas geralmente não acreditam ou deixam de acreditar por causa de tais argumentos — argumentos que a maior parte das pessoas não conhece sequer. Isto é verdade, mas é também irrelevante. A maior parte das pessoas também acredita que os objectos caem, mas não baseiam tal crença no nosso melhor conhecimento científico sobre a queda dos objectos: é apenas uma crença acrítica. O papel da ciência e da filosofia é estudar cuidadosamente estas crenças acríticas para ver se são verdadeiras ou falsas. É claro que as pessoas devem ser politicamente livres de acreditar no que quiserem, com ou sem justificação; mas outra coisa é saber se têm o direito cognitivo a tais crenças — e só têm tal direito se houver boas justificações para elas.

Justifica-se uma crença, seja ela qual for, fazendo três coisas. Primeiro, mostra-se que há boas razões para aceitar tal crença. Segundo, mostra-se que há boas razões para rejeitar os melhores argumentos contra essa crença. E por último, mostra-se que, no cômputo geral, os argumentos a favor da crença são mais fortes do que os argumentos contra a crença. Uma das ilusões muito comuns é pensar que basta apresentar um qualquer argumento a favor do que pensamos que é verdade para termos uma boa justificação cognitiva para isso; isto é ridículo, pois há sempre argumentos a favor de seja o que for, desde que sejamos imaginativos. Haver apenas argumentos a favor de algo não conta para coisa alguma; é preciso que tais argumentos sejam bons, e que sejam melhores do que os melhores argumentos contra isso.

Finalmente, a própria noção de fé levanta um problema interessante, que talvez capte o que alguns leitores sentiram. Imagine-se que amanhã aparecia uma prova largamente irrefutável da existência de Zeus: por exemplo, uma voz plena de beleza e sabedoria ouvia-se por todo o mundo, em cada país na sua língua, por exemplo, com mensagens plenas de sabedoria. Muitos filósofos, como Kierkegaard, diriam que nesse caso as pessoas não poderiam já ter fé em Zeus — precisamente porque passariam a ter boas justificações para crer na sua existência; tão boas, na verdade, que passariam a saber que Zeus existia, e não apenas a crer que Zeus existia. Por isso, Kierkegaard defendia que a verdadeira fé é sempre uma crença injustificada. Há algo de estranho na posição de Kierkegaard, que por isso não é aceite pela maior parte dos filósofos teístas da religião. Contudo, é realmente verdade que se tivermos boas justificações para ter fé, não podemos ter fé — temos apenas uma crença correctamente justificada, como a crença de que o nosso vizinho existe. Portanto, o dilema é este: ou há boas razões para ter fé, e nesse caso não é fé, é apenas crença justificada; ou não há boas razões para ter fé, e nesse caso é cognitivamente ilegítimo ter fé. Em qualquer dos casos, a fé parece pura e simplesmente indefensável.

Assim, é defensável a intuição de alguns leitores quanto à irrelevância dos argumentos a favor e contra a existência de Deus. Só que, correctamente articulada, esta intuição implica que a fé nunca é defensável. E por certo não é isso que muitos dos nossos leitores crentes querem defender. Mas esta é sem dúvida a intuição de muitos leitores ateus.

Muitos filósofos teístas defendem hoje em dia a posição de Tomás de Aquino, segundo a qual as pessoas entendidas não têm fé na existência de Deus, precisamente porque têm uma crença justificada na sua existência; quem tem fé na existência de Deus são as pessoas comuns, que não compreendem sequer os argumentos sofisticados a favor da existência de Deus. É um pouco como a crença de que a água é H2O: a maior parte das pessoas acredita nisso por mera autoridade dos cientistas, e seriam incapazes não só de determinar se isso é verdade, como até de compreender qualquer justificação que a Palmira ou outro cientista possa dar dessa verdade. Analogamente, Tomás de Aquino defendia que as pessoas comuns só por confiança na igreja poderiam ter fé na existência de Deus. Mas os filósofos teístas defendem que mesmo eles não podem saber certas coisas sobre Deus, que são inacessíveis à razão — e essas só podem saber por revelação ou iluminação. Contudo, popularmente pensa-se erradamente que se pode defender que todos os aspectos da crença em Deus podem ser deste género, por revelação. Ora, isto é falso porque só depois de termos boas razões para acreditar que Deus existe é que temos boas razões para acreditar na revelação. Por exemplo, só depois de termos boas razões a favor da existência de um deus criador é que temos boas razões para acreditar num determinado livro sagrado; o livro sagrado em si não é uma boa razão para acreditar que o que ele diz que existe existe mesmo, pois para aceitarmos que o livro é realmente sagrado temos de começar por aceitar que o deus que o livro sagrado diz que existe realmente existe.

45 comentários:

Daniel de Sá disse...

Meu Caro Desidério
É difícil ir por aí e chegar a algum lado. Não é num simples artigo (eu não disse um artigo simples) como este que se pode tratar o problema. Tanto faz escrever este texto, como fazer uma cadeira de Tratado de Fé (talvez a mais árdua que eu tive de enfrentar, já lá vão muitos anos), que tudo pode resumir-se mais ou menos a isto: a fé suporta-se em si mesma e portanto não pode ser provada. Ou justificada, como queira.
Mas, neste ponto, é irresistível fazer uma analogia com a ciência. Os cientistas sabem que muitas coisas não estão provadas, nem ao menos se vislumbra a sua explicação. E esperam confiadamente que o futuro revele tais segredos. Quer exemplos? Sabe-se, sem dúvida alguma, que houve uma sucessão de espécies animais ao longo de muitos milhões de anos. A evolução, portanto. Mas eis algumas dúvidas para que não há resposta. Enquanto os mamíferos não desenvolveram mamas e produzira leite, que comiam os filhos? Ou, se produziram leite antes de os filhos deixarem de ser herbívoros ou carnívoros, para que serviu esse leite? A cabeça dos cetáceos, quando nascem, é a última parte do corpo a sair do ventre da mãe, para que não morram afogados. Como sobreviveram ao acto do nascimento antes dessa solução evolutiva? Ou evoluíram em terra para tal solução no mar?
Vejamos um pequeno exemplo do universo. Consegue observar-se o universo até cerca de doze mil milhões de anos-luz. Quer dizer que, há doze mil milhões de anos, este pedaço do universo já era assim, e há mais outra parte que se desconhece ainda. Explicação: o espaço infla ao mesmo tempo que as galáxias se afastam. Será razão suficiente? Há a crença científica de que o universo começou quando se deu a explosão, ou começou a inflação, de uma “singularidade” com 10cm3 elevados a menos 43, e que essa partícula saiu de um “nada quântico”. Ora o nada é nada, e chamar-lhe quântico não resolve o problema. Nem há efeitos não causados, como já há quem tenha afirmado aqui, referindo-se à física quântica. Há efeitos imprevisíveis para causas obviamente não previsíveis.
Não será necessária muita fé para aceitar estas conclusões ou suposições científicas?

Unknown disse...

Daniel de Sá:

A ciência é crença justificada, usando as palavras do Desidério. Raciocínios baseados na fé são redondos, não se baseima em nada. Ciência não pode ser entendida com cadeiras de Tratados de Fé e por isso essa analogia infeliz com ciência.

O Daniel de Sá, como muita gente, confunde aquilo que dá autoridade à ciência com fé: nenhum cientista apresenta nada como a verdade acabada, mas como a melhor explicação com os dados existentes. E todos os cientistas procuram mais dados e melhores explicações. A ciência não aceita nada por fé e não esconde que há ainda muita coisa para que não temos explicações satisfatórias.

E depois é melhor não se meter por coisas que não percebe como a evolução porque mete a pata na poça. Quem lê o Daniel pensa que os carnívoros se transformaram em herbívoros assim num estalar de dedos.O mesmo sobre cetáceos. Há uns livros básicos de biologia que pode estudar, recomendo, por exemplo, ler sobre a evolução de equídeos que está muito bem documentada.

Recomendo ainda ao Daniel assistir uma vez que seja a uma conferência científica para perder a pose anti-ciência que o seu comentário mostra

Unknown disse...

Esta série de posts sobre fé é de antologia. Parabéns!

Sobre a razão porque a analogia do Daniel de Sá é péssima: os crentes como o Daniel de Sá acreditam que a sua crença é verdadeira sem qualquer prova, não procuram nem aceitam os argumentos que provam que muitas das suas crenças são falsas (milagres, revelações e assim).

A fé vende os seus produtos, as religiões, como verdades acabadas que não podem ser postas em causa. No cristianismo é impensável por em causa impossibilidades como a trindade, ressureição, "imaculada" conceição, etc., etc..

A ciência apresenta as suas teorias como uma procura da verdade e procura activamente os erros das suas teorias e põe-as de lado quando há melhores.

Clara disse...

Desidério, eu sou a pessoa menos filosófica que existe, adoro ciência e nasci numa família sem crenças religiosas. Tive a sorte de a fé me cair em cima em criança, quase como uma doença mental (porque a escondia da minha família). A fé (acho) não se escolhe, é ela que nos escolhe a nós. Porque alguém pode ser ensinado a seguir os preceitos religiosos mas a crença não se ensina.
Escrevi aqui sobre um documentário que vi sobre a fé e o cérebro.
(Agora vou ler o post debaixo sobre o Darwin, o homem mais brilhante que existiu, que foi o que me trouxe aqui).

Fernando Dias disse...

Fé ou convicção?
Se conhecermos o mundo através da via experiencial, directa evidencial, a fé ou crença cede lugar à confiança na convicção ponderada com a razão e a evidência das coisas. A verdade apurada através de factos testados e verificados pela nossa própria experiência prática, é mais segura e convincente do que a fé que temos nas palavras dos outros.

Via directa evidencial ou conceptual?
Por exemplo, qual é a melhor verdade (aquela em que devemos acreditar) sobre a minha dor de dentes? A minha verdade sobre a dor dentes que sinto, ou a verdade conceptual do médico (teorias científicas + todos os meios científicos e tecnológicos de diagnóstico ao seu alcance). Mas não é ele que sente a dor e por coincidência até nunca experienciou directamente uma dor de dentes em toda a sua vida. Neste aspecto ele não sabe o que é uma dor de dentes.

Se o médico através de conceitos “justifica” cientificamente que eu não posso ter uma dor de dentes, e eu teimar que sinto uma dor de dentes, em quem é que o Desidério “acredita” – em mim ou no médico?

CA disse...

"as mutações e a selecção natural diminuem a informação genética disponível"

O que quer dizer esta frase? A que tipo de "informação" se refere?

Daniel de Sá disse...

Rita
É sempre com expectativa que leio um comentário seu. De tantas vezes me chamar ignorante, quer como Rita quer como Joana, já me convenceu da sua basta cultura. De que nunca deu provas, diga-se em abono da verdade. O pior foi que, ontem, por causa destas novas normas de acesso ao DRN, terei falhado qualquer pormenor e o meu comentário não ficou registado. Assim, tenho de escrever nova resposta, se bem que pouco haja que responder a quem voltou a fazer um exercício mental que não foi além de me chamar ignorante, apenas porque lhe deu em pensar que eu julgo que alguns animais aquáticos acordaram um dia em seco na maré baixa, e trataram de improvisar uns pulmões e umas mamas antes que morressem asfixiados e os filhos não tivessem de que se alimentar.
Vai então a Rita, e que recomenda? Que eu lesse o que há sobre a evolução dos equídeos. Isso foi mais ofensivo do que ter-me repetido a dose do epíteto “ignorante”. É que essa questão está para as provas da evolução como Galileu para a o ataque às culpas da Igreja Católica. Ou seja, toda a gente o sabe. Esperava algo mais, sei lá, nem que fosse ter-me recomendado ler algo acerca dos camelídeos, por exemplo. Ou mesmo, mais prosaicamente, dos canídeos ou dos marsupiais.
Poderia igualmente ter ensinado alguma coisinha a este ignorante a respeito das mamas. “Honni soit qui mal y pense”, que me refiro apenas a uma das características essenciais dos mamíferos. Poderia ter-me explicado essa questão dos répteis mamalianos (obrigado, avozinhos), ou de como as glândulas sebáceas se transformaram nas famosas mamas. Poderia ter-me resolvido uma dúvida existencial, mas para isso seria preciso que a adivinhasse: a aréola apresentará através do colostro a memória das tais glândulas sebáceas? Ah, e ponho ou não o ornitorrinco nesta memória ancestral.
O melhor é parar por aqui. O dito já basta para a Rita/Joana me chamar ignorante à vontade. É que, se eu digo que tenho dúvidas na minha fé, mas apesar disso creio, levo com a classificação; por outro lado, se apresento dúvidas como estas e não afirmo a minha crença cega na ciência, volto a ser ignorante. Paciência.

João Vasco disse...

«Nem há efeitos não causados, como já há quem tenha afirmado aqui, referindo-se à física quântica. Há efeitos imprevisíveis para causas obviamente não previsíveis.»

Isto é alguma revelação?
Há alguma razão que sustente esta afirmação altamente especulativa?

É possível que o universo seja totalmente determinista, e que qualquer efeito tenha uma causa. Mas é possível que não seja assim. Na verdade, o que se sabe actualmente indicia que o acaso tem mesmo um papel importante na forma como o universo funciona. Ou seja: tanto quanto sabemos é mais razoável aceitar a existência de efeitos sem causa, do que não aceitar essa possibilidade.

guida martins disse...

De facto parece que gostamos muito de discussões sobre religião, e não admira. É até muito bom sinal. Há quanto tempo nos é permitido ter tais discussões?
O problema dos argumentos é ferrugem! Falta de uso! Podemos ver todos os dias, em qualquer telejornal, nos directos que emitem a partir da Idade Média quais os 'argumentos' que se utilizam para impor os credos com êxito. Será que aquilo são tudo metáforas? Há certas coisas que nem a televisão consegue disfarçar...

Daniel de Sá disse...

joão&a~de;o vasco
Releia o que eu disse e pense na sua resposta. Por favor, claro. Isso é científico, fazer suposições afirmativas pela falta de provas das contrárias? Foi o seu caso.

João Vasco disse...

«Isso é científico, fazer suposições afirmativas pela falta de provas das contrárias?»

Suposições fizemos ambos. O Daniel de Sá afirmou que o universo é determinista (ou seja: que todo o efeito tem causa) e eu disse que face ao que se sabe é mais razoável afirmar o oposto.

Não pela falta de provas contrórias, mas por um conjunto de resultados experimentais que indiciam que é essa a natureza das coisas (De Rerum Natura, eh!eh!eh!).

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Obrigado pelos comentários!

Fé não é sinónimo de esperança. Quando se tem fé em algo, acreditamos que esse algo existe realmente, e não apenas que é uma hipótese plausível. Mas aceitemos para efeitos de discussão que a fé é apenas uma questão de ter esperança que uma dada hipótese é verdadeira — a hipótese de que Deus existe, por exemplo. Isto nada muda o que escrevi sobre a justificação, pois levanta-se agora a questão de saber se tal esperança é justificável.

Por exemplo, a esperança de que se saltar com força suficiente consigo chegar à Lua não é justificável. As esperanças, como os receios, são avaliáveis criticamente, não são axiomas incomensuráveis de partida. Não há axiomas incomensuráveis de partida: podemos pôr todas as coisas em causa. Pôr coisas em causa é próprio da nossa capacidade de pensar — capacidade de pensar que é coarctada quando decidimos à partida que temos uma alma imortal, ou que Zeus existe, ou que tudo o que há no universo são átomos. Todas estas afirmações podem ser verdadeiras ou falsas, mas para sabermos se são uma coisa ou outra temos de as estudar cuidadosamente.

Finalmente, o wishful thinking não é justificável: o argumento “Gostava tanto que Deus existisse! Logo, Deus existe” não é aceitável, por mais voltas de retórica que se dê à coisa. Se somos realmente pó de estrelas, se não temos uma alma imortal, se o universo não foi criado para nós, nada disso muda argumentando “Ah, mas era tão bom que fosse verdade!” Na verdade, há fortes razões para pensar que é uma ilusão pensar que seria muito bom que fosse verdade: um dos aspectos mais fracos da mundividência religiosa é o facto de propor uma realidade alternativa que todavia é incapaz de caracterizar como genuinamente boa ou interessante; basta perguntar o que raio vamos fazer nas imensas tardes da eternidade para a coisa começar a parecer algo vácua. Mas isso fica para outra ocasião.

Fátima Lopes disse...

Caro Desidério, é pena que quando se fala de fé neste blog se parta do principio que toda a fé se confine às religiões organizadas, nomeadamente, o Cristianismo. Eu não pratico uma religião organizada mas tenho fé, acredito em Deus, numa alma imortal e na reencarnação (isto resolve o seu problemas das tardes eternas, boa?!)Não acredito em condenação eterna mas acredito no Karma (reacção causa-efeito)criado por nós próprios e acredito que o mundo observavel, esse sim, é uma mera ilusão dos sentidos. Acredito ainda que a terra é uma escola onde vimos para nos "graduarmos" e a avaliar pelo nível destas discussões, ainda estamos algures entre a 3ª e a 4ª classe (oopss...parece-me que desperdiçámos uns milénios no recreio, qual era mesmo a matéria a aprender?...humm! evolução espiritual?...nunca ouvi falar estive demasiado ocupado a mostrar aos outros colegas de escola que eu é que estou certo.)E fartar-me-ía de rir se tudo isto fosse verdade e um dia no além pudesse lembrar-lhe deste meu comentário!

Cumprimentos

P.S.:"A casa de meu Pai tem muitas moradas"

Daniel de Sá disse...

Jo etc.
A sua é uma opinião respeitável. De que não há qualquer prova.
Ó meu Caro Desidério, mas quem há que pense que por desejar muito algo que não existe o faz existir? Julgo que nem os maluquinhos do pensamento positivo.
Mas isso não prova nada, absolutamente nada, acerca de Deus não existir. O facto de termos sede não cria a água, mas há água.
Quanto àquela referência às tardes longas da eternidade, meu caro, tomo isso como mera brincadeira, pois nem um principiante de filosofia diria uma coisa dessas a sério.

João Vasco disse...

daniel de sá:

O Daniel afirmou que a todo o efeito corresponde uma causa.

Não há qualquer prova disso, mas há indícios fortes do contrário.

Não há provas de nenhum facto científico: é possível que a terra seja plana, ou que seja o Sol que gire em torno da terra, mas temos indícios fortíssimos que nos permitem rejeitar essas hipóteses (fotos da terra vistas do espaço, etc...).

Os indícios que nos permitem rejeitar o determinismo são as experiências relacionadas com o "paradoxo de Bell".

Mas mesmo que não existissem quaisquer provas ou indícios num sentido ou noutro, continuaria a ser pouco razoável afirmar a hipótese da causualidade ("a todo o efeito corresponde uma causa") como se fosse uma certeza indiscutível.

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Não é verdade que quando falo de fé neste blog tenho em mente unicamente a religião cristã. Pelo contrário, até citei o nome de Zeus, que não é o deus cristão.

O que escrevo é suficientemente geral para se aplicar a qualquer fé: como se justifica tal coisa? Terá justificação? O Daniel admite que não se justifica, mas quer ao mesmo tempo dizer que se auto-justifica; mas isto torna a justifição arbitrária e como tal não é já justificação. É rigorsamente o mesmo do que responder "Porque sim" quando fazemos a irritante pergunta socrática do costume: "Porquê?"

O Parente escreveu que quer ser crente porque se sente mal entre a torradeira e a lógica modal (uma imagem memorável).

Outros porque gostariam de reencarnar para sempre, para aprender lições da vida, apesar de ninguém se lembrar das lições da vida que tivémos nos últimos 35 mil anos, que é a idade aproximada da nossa espécie.

Gostariam, gostariam, gostariam. Se isto não é wishful thinking, Daniel, é o quê? Concedo que muitas vezes está muito disfarçado, mas a hipótese de que a religião é meramente uma projecção dos desejos que as pessoas têm é mais plausível do que qualquer outra hipótese concorrente, parece-me.

Finalmente, parece-me haver uma confusão constante aqui. A hipótese de existir Xiva, ou vida além da morte, ou seja o que for, é uma hipótese como outra qualquer, como a hipótese de haver água em Marte. Apenas envolve outro tipo de provas que não as experimentais -- são provas inferenciais, como tipicamente fazemos em filosofia. Um dos melhores filósofos da religião contemporâneos, Richard Swinburne vê precisamente as coisas assim: o mesmo tipo de pensamento científico que nos leva pensar que houve Big Bang leva-nos a pensar que existe um deus. Eu aceito esta estratégia como a única legítima. O que me parece absurdo é o "porque sim", ou apelar a "outras dimensões", ou apelar aos "limites da razão", ou à "superioridade da fé. Tudo isto é tolice ignorante, desculpem-me a franqueza.

Daniel de Sá disse...

Ó meu Caro Jo do nome complicado
Não percebo, e falo a sério, em que comprimento de onda está a funcionar. É que o que eu digo é uma coisa e o que o meu caro amigo afirma é outra. Ou seja, eu digo que tudo tem uma causa, que pode ter efeitos distintos conforme as ocasiões ou os elementos envolvidos. É tosca a metáfora, mas o calor derrete a manteiga e solidifica o ovo. E o meu caro amigo considera isso efeitos não causados. Percebi bem?
Que vem o teorema de Bell fazer para aqui?
Segundo julgo, trata-se de negar dois pontos tidos como muito importantes na física quântica: a influência da observação no comportamento das partículas e interacção ou comunicação destas independentemente da distância a que se encontrem.
Do primeiro ponto, nunca percebi que tipo de observação está em causa; do segundo, sempre duvidei porque, a crer na teoria da Relatividade, não há comunicação instantânea. E aqui avanço uma conclusão minha, que arrisco para meu uso pessoal, já que me está vedado emitir opiniões científicas. No espaço não há apenas distâncias “físicas”, mas também temporais. Ou seja, entre o Sol e a Terra há cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros, correspondendo ao tempo solar e ao tempo na Terra uma diferença de pouco mais de oito minutos. Portanto, nada pode ir de um lado ao outro em menos do que esses oito minutos e pouco, porque não se pode viajar contra o tempo.
Já me dispersei. Mas delicio-me com estas especulações.
Um abraço.
Daniel

Daniel de Sá disse...

Meu Caro Desidério
Aí há tempos invocou a necessidade de se conhecer a filosofia das religiões para se compreender uns raciocínios seus. Pois vamos um pouco a tal filosofia, para ver se nos entendemos quanto aos conceitos de racionalidade e irracionalidade da religião.
Para todas as religiões (note-se que o tempo verbal que usarei não quer dizer “hoje” ou “agora”, é intemporal):
A observação do Mundo leva a supor que haja um ser que o criou.
Se o Mundo teve um criador, esse criador deverá manter uma relação com a obra criada e desejar que a humanidade a respeite.
Se a vida é um dom altamente apreciável, é legítimo pensar que não seja exterminada.
Se se guarda memória desta vida, é natural que se sinta a alegria de ter merecido viver ou o remorso do contrário.
Para cada religião em particular:
Estas suposições levam a diferentes modos de encarar a relação com Deus, segundo a cultura de cada sociedade. Naturalmente o indivíduo começa a viver com a cultura que herdou, seja politeísta, idólatra, monoteísta ou ateia. O uso da razão permite ao indivíduo avaliar a plausibilidade das suas crenças, e manter-se nelas ou não.
Pessoalmente, e sem negar o valor de outras crenças, o cristianismo parece-me uma boa maneira de entender Deus na medida do possível.
(É um resumo, que tem os defeitos de qualquer resumo, e os meus próprios vícios de pensamento. Nada mais.)

Alef disse...

Caro Desidério:

É complicado responder a um «post» quando pensamos que o problema não está tanto neste ou naquele «argumento», mas no modo de colocar todo o problema. Uma forma de «evitar» a dificuldade é não entrar na aventura de quase ter que questionar e/ou apresentar alternativas a cada frase escrita; outra, é arriscar-se a escrever muito e chegar ao fim com a sensação de que era necessário muito tempo para fazer-se entender ou que o seguimento do texto que comentamos não deixa muito espaço para pôr de uma forma ordenada aquilo que pensamos positivamente sobre o tema. Desta vez resolvi escrever, mesmo sabendo do enorme risco de não me fazer entender totalmente. Temos pressupostos e conteúdos muito diferentes e certamente cada um defenderá os seus… Talvez a maior dificuldade esteja nos pressupostos, no não escrito. Mas tentemos conversar. Também não pretendo deixar a última palavra sobre o assunto, mas apenas apontar algumas ideias que poderão implicar um alargamento de horizontes no tratamento dos problemas. Espero também que as respostas a estas considerações não pretendam apressar o «encerrar» da questão, sensação que tive noutras ocasiões.


1. O problema de Deus na filosofia. Naturalmente, o problema de Deus é de tratamento difícil em Filosofia. Em certa medida temos que dizer que é uma questão «impossível», mas significará isso que é irrelevante na filosofia, inútil ou então que temos os instrumentos suficientes para «anulá-la»? Da mesma forma que historicamente encontramos a tentação de eliminar a Filosofia em nome da Ciência, porque aquela não «respeita» o método científico, existe também a tentação de «despachar» a questão de Deus como «ilusória», por ela não «respeitar» os cânones epistemológicos que funcionam bem em ciência e relativamente bem em filosofia. O Desidério parece querer chamar o «drama» ao «palco da argumentação», supondo que é este o âmbito final onde tudo se resolve. Ora bem, isto levanta muitas questões, algumas das quais irei apontado ao longo deste comentário.


2. Os argumentos da existência de Deus: ponto de partida e centro da questão? O Desidério tem insistido no problema dos argumentos a favor e contra a existência de Deus. Possivelmente está convencido de que aqui está o centro do problema de Deus. Muita gente assim o pensa. Mas será isto verdade? É a existência uma questão formalmente prévia à da realidade?

Pois bem, partir daqui, dos argumentos, e reduzir o problema de Deus ao da discussão argumentativa da sua existência é já uma petição de princípio, porque haveria que justificar que esta questão é a fundamental ou que é o seu ponto de partida. Eu creio que a questão da existência de Deus é uma questão derivada de outra mais fundamental, anterior às considerações epistemológicas. Começar a abordagem do problema de Deus pela dos argumentos da sua existência é um primeiro suposto que haverá que justificar e penso que é também um primeiro erro de abordagem, porque implica uma restrição ilegítima do âmbito do problema. Isto tem enormes consequências.

Note-se que se eu usar o mesmo «procedimento» restritivo para a estética ou para a ética, chegarei também a resultados viciados. Começar a abordagem do problema de Deus pelo da sua existência é viciar a questão «ab initio». E é possível tratar filosoficamente o tema desde outro ponto de partida e sem este tipo de restrições.


3. Uma nota sobre os «argumentos clássicos»: contexto e «frutos». Os argumentos sobre a existência de Deus são exercícios «posteriores», histórica, existencial e filosoficamente falando. Do ponto de vista histórico, trata-se de um conjunto de instrumentos que de alguma forma tratam de «situar» ou «justificar» uma realidade já previamente «dada» ou assumida, com o instrumental conceptual de cada época. No caso dos argumentos «a favor», não se trata tanto de «provas» como de «justificações» de que a fé não é necessariamente irracional. Mas nenhum dos seus defensores cria em Deus pela força dos seus argumentos. E, naturalmente, na maior parte dos casos, a rejeição de um determinado argumento não significava a rejeição de Deus, mas de dado um argumento. Assim se vê nas «relações» entre S. Tomás de Aquino com Santo Agostinho e de Duns Escoto com S. Tomás. Esta nota relativamente banal deverá ajudar a ter em conta que o problema de Deus não se identifica com nenhum argumento concreto sobre a sua existência.

Relativamente aos «frutos», a discussão habitual e tradicional dos argumentos a favor e contra a existência de Deus não parece ser conclusiva, deixando sempre um espaço para o «anterior» ao próprio debate; isto é, cada um levará consigo os argumentos que trouxe. Assim aconteceu no famoso debate entre Russell e Copleston. Isto também deveria fazer pensar. Naturalmente, pessoas como Richard Dawkins têm «quase» a certeza de que Deus não existe, enquanto Alistair McGrath e outros têm a certeza ou «quase» a certeza de que existe, enquanto ainda outros pura e simplesmente suspendem o juízo sobre a questão. Parece ainda que o Desidério tem quase a certeza de que não é verdade que não se pode provar que Deus não existe. De qualquer forma, talvez o que mais causa impressão a algumas pessoas, sobretudo crentes e agnósticos, é que não se consegue provar irrefutavelmente que Deus existe, da mesma forma que se pode provar a existência do átomo de hidrogénio ou das luas de Júpiter. Já veremos qual o problema aqui presente, quando a seguir falar da questão epistemológica. Diante deste cenário muitos crentes parecem preferir sair da pura e aparentemente estéril dialéctica argumentativa, aludindo ao «argumento» de que «as pessoas não acreditam ou deixam de argumentar por causa de tais argumentos», pelo que eles serão irrelevantes ou, pelo menos, não decisivos. Terão razão?

Ao Desidério não lhe agrada esta «desistência», que parece associar à tendência geral das pessoas a alinharem na carneirada. Acha que o «argumento» da irrelevância dos argumentos tem algo de ilusório e insiste em trazer o problema ao palco da argumentação, como se este problema fosse formalmente um problema exclusivamente cognoscitivo ou epistemológico. Será assim? Pode-se partir para esta abordagem sem uma justificação fundamentada?


4. O problema de Deus é formalmente um problema epistemológico? Da mesma forma que antes questionava a redução do problema de Deus ao da argumentação sobre a existência de Deus, importa perguntar se o problema de Deus é uma questão do foro estritamente epistemológico, de tal forma que este esgote a questão. Haverá que justificar uma tal pretensão. Penso que a questão de Deus não é primariamente epistemológica. Isto não significa que não exista um aspecto epistemológico, mas a existência de um âmbito epistemológico não significa necessariamente que a mesma questão se reduza a isso.

Vejamos uma breve analogia com a questão estética. Será o âmbito estético primordialmente epistemológico? Penso que não. A experiência estética não é primariamente de ordem epistemológica nem nela é primária a pergunta sobre a existência do que quer que seja. Todas estas questões epistemológicas podem ser colocadas também no campo estético, mas são ulteriores e de modo nenhum são «critério de validade» único da experiência estética. [E atenção: ao dizer isto não estou simplesmente a apelar sem mais ao «sentimento» como oposto a «razão» (não aceito essa dicotomia, mas isso é outro tema, embora devesse ser tratado alguma vez, porque ele está latente nesta e noutras discussões).] Se eu colocasse a questão estética em termos puramente epistemológicos dir-se-ia, e com razão, que tal abordagem é muito limitada, viciada, e pode mesmo ser enganadora. Ora bem, se concedemos que a questão estética tem um modo próprio de abordagem, porque pretender obrigar o problema de Deus a reduzir-se a questão epistemológica? Voltarei a esta questão quando referir a questão da justificação que o Desidério pretende exigir à fé em Deus.

Portanto, e resumindo, reduzir o problema de Deus a uma questão do foro epistemológico é outro modo de viciar a questão «ab initio». E terá que haver alternativas, sob pena de cairmos em problemas absurdos, como aquele que identifico no apartado que se segue.


5. Um «deus-objecto». Nas suas exposições sobre o problema de Deus, sobretudo em vários exemplos, a forma como o Desidério tem enunciado o problema da existência de Deus aparece em termos que eu chamaria «idolátricos» e «ingénuos». Usando uma linguagem heideggeriana, o Desidério parece insistir numa entificação daquilo que por definição não pode ser entificado. Este é um dos problemas mais frequentes nesta discussão e os crentes que caem nesta esparrela acabam por «ter de» responder à idiota objecção do monstro de esparguete voador, do unicórnio azul ou ao bule de Russell… Acresce o facto de que algumas características apontadas em «posts» anteriores para esse tal «deus» me parecem algo arbitrárias (por exemplo, a omnisciência), quando a grande «característica» necessária, o carácter absoluto, não é sequer referida. O carácter absoluto é fundamental e suficiente para obrigar a reformular muitas das formulações por aqui aparecidas.

Este problema já o enunciei várias vezes nestas caixas de comentários, concretamente no «post» dedicado à «alegada» busca de Deus por parte de Sagan: é Deus «mais-um-objecto-como-outro-qualquer» que se busca como se busca o bule de Russell? Se for «mais-um-objecto», isso tem alguma relevância para o problema de Deus? É-me perfeitamente indiferente que exista um unicórnio azul ou o bule de Russell, mas outro galo cantará no caso de Deus.
Eu penso que entificar Deus é não ter entendido ainda o centro do problema.
É possível tratar filosoficamente o problema de outro modo? Claro que sim. «Basta» pegar pela noção de absoluto e ver o problema de Deus desde a perspectiva do fundamento em vez da perspectiva de mais um objecto.


6. Outras distinções necessárias. Da mesma forma que é importante ter presente que o problema de Deus não se reduz nem parte dos argumentos a favor ou contra a existência de Deus, é também importante fazer outra distinção que não vejo muito clara nos escritos do Desidério: uma coisa é o problema de Deus «qua tale»; outra, o problema das diferentes divindades, nomes, categorizações. [E já agora, outro é o problema da religião, outro o das religiões concretas; outro ainda o da vivência concreta de cada religião num grupo e numa pessoa. Já me referi a isto em comentários anteriores, a propósito de maniqueístas, falsas e indiscernidas dicotomias entre ciência e religião (em que tanto incorrem crentes como não-crentes).] Não tive tempo de intervir no debate a propósito do dito argumento das diferentes experiências religiosas, mas parece-me que ficaram muitos pontos por esclarecer. A multiplicidade das experiências religiosas não é em si mesma qualquer prova da existência de Deus, mas também não tem sentido usá-la como objecção contra a existência de Deus. Relembrando a analogia da experiência estética ou ética, parece-me evidente que essa argumentação da variedade da experiência religiosa é bastante acessória e até artificial. [Já agora, artificial e sem sentido (ou, pelo menos, circular) é ainda o mesmo exercício a propósito dos milagres. Em si mesmo o milagre já é o reconhecimento de uma intervenção divina, caso contrário é apenas um fenómeno não explicado, uma «anomalia», uma excepção. Ou chamaremos milagre a tudo aquilo para o que não temos explicação? E porquê chamar «milagre» e não outra coisa? E estará a ser usado o termo «milagre» com propriedade?]


7. «Fé e justificação»: três palavras, muitos problemas. O título deste «post» tem três palavras e, pelo menos, três problemas.

7.1. O primeiro, o que significa «fé» quando se fala de Deus. Apesar do sucesso que a sua definição de fé conseguiu neste blogue, repetida várias vezes como se de uma cartilha se tratasse, penso que tal definição de fé está enormemente equivocada, fazendo com que este ponto de partida vicie mais uma vez o resultado final. E, mais uma vez, é fundamental ter em conta o ponto de partida e os pressupostos com que funcionamos. No caso presente, como já disse noutras ocasiões, a definição de fé que o Desidério é insuficiente: não chega sequer a ser «fides»; «esquece» a fundamental vertente semita que o termo tem na cultura ocidental; não faz justiça a distinções fundamentais clássicas («credere Deo» vs. «credere in Deum») já presentes em Santo Agostinho e posteriormente desenvolvidas. A definição de fé dada pelo Desidério não chega sequer ao primeiro «nível» agostiniano. E embora se possa pensar que a definição de fé que o Desidério apresenta está mais próxima da de S. Tomás, nem sequer isso é totalmente verdade, tendo em conta não apenas o papel da vontade como também o objecto do acto de fé num e noutro caso. Também seria conveniente a distinção entre fé e conteúdos da fé e não tomar uma pelos outros. O Desidério insiste em colocar a fé num âmbito de tipo discursivo-proposicional (crença não justificada na existência de Deus), mas isso nada ou muito pouco tem a ver com aquilo que é a fé. Como justificar esta restrição? Que consequências teremos no resultado? Será justificável uma restrição do mesmo tipo no campo estético? E se não o for, por que razão o será no caso do problema de Deus?

7.2. O segundo problema está relacionado com o primeiro, agora a propósito da justificação. Voltarei a este problema no apartado seguinte, porque merece outro tipo de atenção.

7.3. O terceiro problema tem a ver com a articulação entre «fé» e «justificação» e implica outros problemas relacionados, «tocados» noutros «posts», como o da relação entre fé e conhecimento. Numa visão da fé reduzida a um âmbito «discursivo» ou «proposicional» a articulação «fé e justificação» pode ter um determinado significado; numa visão de outro tipo poderá ter significados completamente distintos.


8. O problema da justificação. Para não me estender demasiado neste complicado e vasto problema, referirei apenas algumas questões mais directamente tocadas no «post».


8.1. O Desidério reivindica a necessidade trazer de novo a problema da existência de Deus ao palco do debate argumentativo e mostra-se algo desapontado com a aparente falta de comparência de alguns «participantes» que noutros contextos são muito prolixos. Também lhe parece não totalmente aceitável (porque terá «algo de ilusório») o «argumento» já citado de que a justificação da existência de Deus é pouco relevante para os crentes.

Ora bem, eu diria que concordo que é uma pena que muitas pessoas não se interessem por levar as questões até ao fundo, mas neste caso concreto também me parece que reduzir a questão de Deus à discussão de argumentos sobre a sua existência acaba por ser uma questão derivada e academicamente confinada num segundo nível de discussão, sem grande contacto com o problema real do problema de Deus na vida das pessoas. O mesmo se diga de outras formulações dadas por cá. Por exemplo, a noção de fé que apresenta o Desidério que conta dá do fenómeno da conversão? Pensemos no caso de Edith Stein. Esta brilhante e prometedora discípula de Husserl, de família judaica mas confessadamente ateia, vai ao funeral do professor Reinach. Vai saudar a viúva e vê-se na situação «caricata» de querer dar palavras de ânimo e esperança a uma viúva, sendo que Edith não crê em Deus, na vida para além da morte nem coisa que o valha. A viúva parece adivinhar algo do «conflito» de Edith e é ela própria que fala da sua esperança a Edith. «Ali se desmoronou o meu ateísmo», dirá depois Edith. Mais tarde far-se-á carmelita e será assassinada pelos nazis. Que diz uma noção de fé de tipo meramente discursivo sobre isto? Suspeito que nada «compreende» (no seu duplo sentido). Terá sido também fundamental ali a justificação de algum argumento sobre a existência de Deus? Tudo indica que não. No entanto, está ali o problema de Deus em toda a sua força e a fé na sua máxima expressão! Há, certamente, lugar para uma «justificação», mas não necessariamente que seguir um único «molde» e será sempre algo derivado ou ulterior. A validade e densidade humana do primeiro momento não depende do «brilho» do segundo! E o problema que vejo em relação à conversão, também o vejo em relação a outros fenómenos como a oração, a revelação ou aquilo que no Cristianismo se chama graça.

Fé não é simplesmente «crença» ou «crença não justificada» e menos ainda «crença não justificada de que Deus existe».


8.2. Em segundo lugar, ao reivindicar a necessidade da justificação daquilo a que chama as crenças, o Desidério diz algo que me chamou bastante a atenção. «Concede» que as pessoas devem ser politicamente livres para acreditar no que quiserem, mas considera que há que «saber se têm direito cognitivo a tais crenças»! E acrescenta: «e só têm tal direito se houver boas justificações para elas»!

Confesso que esta formulação do Desidério sobre o alegado e limitado «direito cognitivo» às crenças me causa alguns «pruridos». O que é exactamente isso de «direito cognitivo a uma crença», direito de que só usufruem uns tantos? E quanto a haver boas justificações que garantam esse tão especial direito, qual é o cânon e qual o tempo de referência? As primeiras pessoas que apontaram para o sistema heliocêntrico antes de que isso pudesse ser demonstrado cientificamente (e quando as observações do tempo indiciavam o contrário) tinham «o direito cognitivo» a tal crença? Como meter aqui o caso de Demócrito no que respeita aos átomos? Há «direito cognitivo» a crenças diametralmente opostas? Como decidir no caso da conhecida distinção de Jacques Monod quando diz que a ciência é assunto do conhecimento e a fé uma questão de sensibilidade?

Mais: este «direito cognitivo» também é válido e decisivo na estética? Quando algumas pessoas detestam a música de Erik Satie, por deprimente, e outras a «adoram», alguém fica excluído deste «direito cognitivo» se não tiver outra razão que a «porque sim»?
Enfim, qual o cânone decisivo de definição de quem tem tal «direito cognitivo» nos vários âmbitos da experiência humana, seja ela cognoscitiva, ética, estética, política ou religiosa?

De qualquer forma, volto a uma das questões fundamentais: é legítimo reduzir a questão de Deus a uma crença e a um suposto «direito cognitivo»? Não haverá aqui um sucessivo amputar da questão, também ele necessitado de justificação?


8.3. Em terceiro lugar, o Desidério pretende estabelecer as «regras do jogo»: um triplo teste para as crenças. Mesmo tendo em conta que eu considero que o problema de Deus e a fé não se reduzem a «crenças», como é que depois de «tirar» a cabeça e o coração do problema ainda se pretende este exercício «decisivo»? Será legítimo? Primeiro reduziu-se a questão de Deus à questão da existência; depois, esta a mera dialéctica de argumentos. Ao mesmo tempo, reduziu-se o problema de Deus a um problema gnoseológico. Agora, este resíduo, tomado pelo todo, terá de passar pelos critérios estabelecidos não pelo âmbito que lhe é próprio, mas por uns critérios epistemológicos: veremos se estas crenças passam o teste da justificação cognitiva. Será isto legítimo? Não me parece.

Relembro uma questão já aqui colocada acima: é legítimo fazer isto noutras áreas como a experiência estética ou a criação literária?

De outra forma, repito algo do já dito anteriormente: Nem o problema de Deus se reduz ao da sua existência, nem este aos dos argumentos, nem a fé a uma crença não justificada, nem tudo isto a uma questão epistemológica.

Significa isto que não é possível justificar a realidade de Deus ou a fé em Deus? Não. Significa antes que é possível e necessário recuar à raiz do problema, refazer o percurso do problema e encontrar um âmbito de justificação mais adequado, sem estes reducionismos ilegítimos. Sobre isto deixo a seguir uma referência bibliográfica.

9. Possíveis pistas alternativas. Os vários textos do Desidério bem como vários dos autores citados soam-me a uma certa «manualística» algo desligada de desenvolvimentos recentes na filosofia. Tais desenvolvimentos não são, claro, a palavra definitiva, mas podem e devem ser tidos em conta. Por exemplo, a propósito dos argumentos de tipo ético, estou a pensar no importante contributo de Adela Cortina. Não se trata propriamente de «renovar o arsenal» de «argumentos» da existência de Deus (estaria a cair no erro que critiquei), mas de uma nova atitude. Estou também a pensar nos livros de pendor filosófico-teológico de Karl Rahner, especialmente «Spirit in the World» e «Hearers of the Word». Podemos não concordar com a argumentação, mas parece-me importante ver como qualquer destes exemplos dá um importante contributo no sentido de mostrar que o problema de Deus tem que ser colocado de outra forma, que não o apresentado aqui.

Contudo, o melhor autor que conheço para tratar esta questão é Zubiri, sobretudo no seu livro «El hombre y Dios». Este é um grande livro de estudo (para ler e reler), que permite «rever» este «post» de cima a baixo. Zubiri é um filósofo bastante difícil e bastante desconhecido, mas fundamental nestes (e noutros) temas. Não só porque aí ficam claras as insuficiências das argumentações habituais à volta da questão da existência de Deus, como permite ver e «desconstruir» os pressupostos com que a filosofia ocidental nos habituou a funcionar, muitas vezes sem a devida justificação. Depois de apresentar o problema de Deus de uma forma muito inovadora, «refrescante» e desafiadora, analisa criticamente muitos dos argumentos «clássicos» da existência de Deus o oferece uma interessante «justificação», aquilo a que podemos chamar a via da «religação», ou da «fundamentalidade», a que já me referi alguma vez. Daquilo que tenho lido, é certamente do melhor que há. Também me apetece dizer: «Bom estudo!».

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

O exemplo da Stein é bom. E o que se passa é somente isto: será a atitude dela justificável? É isto que está em causa. Nada tem a ver com todas as palavras caras que usou.

As concepções dos deuses dependem das religiões, e pode-se até ser religioso sem acreditar em divindades. Em algumas os deuses são pessoas, são agentes cognitivos; noutras, os deuses são forças da natureza; noutras, são sabe-se lá o quê.

Mas seja lá o que é, a pergunta crucial é se temos alguma razão para pensar que há tal coisa -- seja um objecto como uma árvore, seja um não-objecto, tanto faz. Pode usar as palavras caras que quiser, mas a questão permanece.

Podemos distinguir entre crer que Deus existe e crer em Deus. A segunda, crer em Deus, é ter confiança em Deus. Só que isto é irrelevante, pois tanto podemos perguntar se há boas justificações para crer que Deus existe como para crer em Deus. E acresce que não se pode crer em Deus sem crer que Deus existe, apesar de os demónios fazerem o contrário (crêem que Deus existe mas não crêem nele, tal como alguns de nós cremos que o Cavaco Silva existe mas não cremos nele).

Finalmente, é pura e simplesmente falso que na filosofia da religião actual se considere que os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus são irrelevantes porque [inserir aqui a gíria preferida]. É verdade que há uma tradição religiosa, ou certos sectores de certas seitas ou denominações religiosas, que têm uma atitude de desprezo perante a discussão filosófica da religião. Ou que procuram transfigurar essa discussão para a tornar em apologética. Mas não é isso que se faz em filosofia da religião. O papel da filosofia é discutir criticamente ideias, e não dar-lhes uma espécie de cobertura intelectual, permitindo-nos usar muitas vezes palavras caras como “ontologia”, “ser”, “epistemologia” e outras ameaças deste jaez. Isso é prostituir a filosofia e o pensamento. Nada mais. Nada menos.

João Vasco disse...

daniel de sá:

O meu nome é João Vasco, mas o google tem dificuldade com o "ã" e escreve "ã" em seu lugar. Só desta maneira é que é possível assinar os artigos que escrevo nos blogues onde contribuo como "João Vasco".


« Ou seja, eu digo que tudo tem uma causa, que pode ter efeitos distintos conforme as ocasiões ou os elementos envolvidos.»

Eu digo que isso não é necessariamente assim.
Existem efeitos com causa, e existe "acaso" (sem causa) a um nível fundamental.

Assim, tanto quanto sabemos podem existir efeitos sem causa.
Um exemplo é o decaimento nuclear. Tem dois átomos completamente iguais em duas caixas distintas. Espera um ano. Um decai e outro não. Qual é a causa de um ter decaído e outro não, se as condições eram totalmente iguais? Tanto quanto se sabe, não existe.

Isto suou incómodo aos mais insuspeitos (o próprio Einstein não se sentia confortável com a ideia que o acaso tivesse um papel fundamental nas leis da natureza), os quais propuseram que talvez uma teoria física mais avança pudesse mostrar que aquilo que a MQ pensa ser acaso, não o é. As teorias chamadas "de variáveis escondidas" tentavam compatibilizar os resultados da MQ com uma formulação determinística.

Mas, ironia das ironias, as experiências relacionadas com o paradoxo de Bell vieram mostrar que é impossível compatibilizar uma teoria de variáveis escondidas com os princípios da relatividade restrita de acordo com os quais a informação não pode viajar mais depressa que a luz. Assim sendo, a própria relatividade de Einstein, juntamente com as experiências relacionadas com o paradoxo de Bell dá-nos uma importante razão para acreditar que Einstein estava errado ao acreditar num universo determinista.

Assim sendo, tanto quanto se sabe (na ciência nada é definitivo), o acaso desempenha um papel fundamental nas leis da natureza. Há efeitos sem causa.

Claro que muitos ficam equivocados com o significado disto. Continuam a haver causas e leis, lá porque o acaso tem um papel, não quer dizer que tudo o que acontece é por acaso, ou que os nossos comportamentos sejam aleatórios.

Desidério Murcho disse...

Olá, Parente

A hipótese de haver um deus do género do teísta é que me parece incompatível com as leis da natureza. Porquê? Porque as tornam produtos de uma vontade. Agora temos um problema. Ou essa vontade obedece a leis e não é por isso aleatória, ou não obedece a leis e é por isso aleatória. Não podemos aceitar o primeiro caso se não aceitarmos que as leis do universo podem subsistir por si; e por isso temos de aceitar o segundo caso, o que torna as leis aleatórias. E por isso ficamos na mesma: Deus amanhã acorda com azia e muda as leis todas e o Parente faz explodir o universo ao comer um pãozinho de leite com geleia de morango.

A ideia de que Deus fez as leis da natureza, ou que pode fazê-las, é um resquício da ideia de lei como um decreto-lei, uma coisa que se legisla. Claro que o termo "lei" em ciência tem essa origem infeliz e já falei disso num post, mas uma lei da natureza não é realmente nada desse género e por isso não é nada que possa ser legislado seja por quem for, incluindo Apolo ou Xiva ou Júpiter ou Rá. Essa ideia é pura e simplesmente absurda. Seria como dizer que Xiva é que decidiu que 200 mais 20 dá 220.

Quanto a sentir-se perdido, compreendo. Mas isso é wishful thinking: era bom que Deus existisse, pois assim eu não me sintiria perdido; então 'bora acreditar que existe!

Como?? Diz-me o Daniel que estou a caricaturar quando falo em whishful thinking...

Claro que este tipo de crença religiosa não é o tipo de crença religiosa que têm os filósofos. Mas, estranhamente, há até um desprezo pelos filósofos crentes -- como se os argumentos fossem irrelevantes, ou não captassem a verdadeira dimensão da religião. Ou será que este desprezo pelos argumentos "epistémicos" e "lógicos" só acontece quando os argumentos não vão na direcção que gostaríamos?

Daniel de Sá disse...

Desidério
Eu simplesmente penso que tem dado demasiada importância a esse desejo "criador".
João Vasco
Desculpe ter ironizado com o nome com que aparece. Mas claro que não houve nisso qualquer maldade, como decerto percebeu. Suponho que não seja o sogro da minha filha Sara. E, se fosse, seria uma boa pessoa, como de certeza é, mesmo sendo outrA.

João Vasco disse...

daniel de sá:

Não tem problema nenhum, apenas aproveitei para esclarecer o nome :)

De resto, não sou sogro de ninguém.

E obrigado pelo elogio.

Alef disse...

Caro Desidério:

Como saberá, em filosofia, a etiqueta de uso de palavras caras não é argumento do que quer que seja (supondo que não se trata de uma forma de argumento «ad hominem»), desde que o seu uso seja justificável, evidentemente. O que importa é ver se as palavras correntes nos permitem dizer tudo ou se precisamos de palavras que «digam» melhor o que temos em mente. Por outro lado, estamos a lidar com um património que não podemos ignorar. O mesmo se diga da dificuldade em compreender um determinado autor: não é critério filosófico. Heidegger não é mais ou menos filósofo por ser mais obscuro que Descartes.

Mas se são palavras caras «epistemologia», «ontologia» e «ser», usei a primeira por ser de uso comum em filosofia. Não nutro de especial gosto por ela, não por ser «cara», mas por se prestar a enormes equívocos que tento combater; e o mesmo se diga das duas restantes. Manifestei-me precisamente contra aquilo a que chamei uma redução de uma questão ampla e «radical» (de «raiz») a um mero problema epistemológico.

Clarificada esta «nota», vamos a alguns pontos do seu muito veloz comentário. No exemplo de Edith Stein diz que o problema é simplesmente o de averiguar se a atitude dela é justificável. Pois bem, não concordo com essa «limitação», porque ali o problema de Deus e da fé não se reduz ao da justificação da sua atitude. A justificação é sempre algo derivado. Importante, sem dúvida, mas derivado. Também fica patente ali que a fé não se reduz a um «momento» discursivo. O problema dos argumentos da existência de Deus também é derivado do problema de Deus. Ter isto em conta é importante, não para dizer que não se podem discutir argumentos, ou que são irrelevantes, mas para ter presente que temos de ter por referente primeiro o que está primeiro e não tentarmos enjaular «tudo» em meia dúzia de proposições a discutir mais ou menos dialecticamente. A lógica e a linguagem não são o modo de acesso primordial ao real nem o «lugar» exclusivo da verdade.

Depois, creio que o Desidério «salta» demasiado depressa do problema de Deus para o problema dos deuses. Eu tenho falado do problema de Deus, não do problema dos deuses, salvo indicação explícita do contrário. Este salto indevido tem acontecido em muitos lados e acontece de novo no seu comentário; só assim se compreende a advertência que me faz, que nem tem muito sentido no contexto daquilo que eu penso sobre a questão. Tenho sempre presentes algumas das distinções válidas que faz. Diz assim: «As concepções dos deuses dependem das religiões, e pode-se até ser religioso sem acreditar em divindades. Em algumas os deuses são pessoas, são agentes cognitivos; noutras, os deuses são forças da natureza; noutras, são sabe-se lá o quê.» Respondo então: mas eu não falei nas concepções dos deuses, mas no problema de Deus, que é algo muito diferente e prévio. O problema de Deus pode e deve ser colocado antes de qualquer «categorização», seja ela animista, politeísta, teísta, etc. Por isso, aqui tenho presente aquilo que é prévio mesmo a «categorizações» de tipo «menor» como a «moira» grega ou a força do destino («fatum»). Obviamente, o problema de Deus não é primariamente o problema de acreditar em Zeus, em Thor ou em Alá.

Escreve depois: «Podemos distinguir entre crer que Deus existe e crer em Deus. A segunda, crer em Deus, é ter confiança em Deus. Só que isto é irrelevante, pois tanto podemos perguntar se há boas justificações para crer que Deus existe como para crer em Deus.» Ora bem, isto não é bem assim. Mesmo aceitando metodologicamente a distinção oferecida, o facto de tanto haver boas justificações para crer que Deus existe como para crer em Deus não significa que elas se identifiquem absoluta e formalmente. Na verdade, só no segundo caso nos situamos no contexto daquilo em que consiste formalmente a fé, de que o primeiro caso é derivado. Esta pequena diferença no ponto de partida tem depois enormes consequências, precisamente porque ao pegar nas primeiras pelas segundas se leva a reduzir o problema de Deus a uma questão gnoseológica. Assim se mutila a questão. Note-se ainda que embora se aceite o exemplo do Cavaco Silva como analogia, quando se trata de fé em Deus há uma diferença de «género» e não apenas de «grau». E porquê? Pela «simples» noção de absoluto. Insisto na importância deste conceito fundamental.

Alef

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

Afirma “No exemplo de Edith Stein diz que o problema é simplesmente o de averiguar se a atitude dela é justificável. Pois bem, não concordo com essa «limitação», porque ali o problema de Deus e da fé não se reduz ao da justificação da sua atitude.” Claro que há muitos outros aspectos na conversão da Stein: aspectos psicológicos, históricos, sociológicos, económicos, etc. Mas também há aspectos filosóficos. E um desses aspectos filosóficos é saber se tal conversão é justificável.

O que não se pode fazer é sub-repticiamente sugerir que a questão de saber se Deus existe não é importante, ao mesmo tempo que, como é óbvio, aceitamos a conversão da Stein como legítima — o que pressupõe que Deus existe, e nem sequer é um deus qualquer: é o Deus de Abraão. Por que não se converteu ela a Rá ou a Júpiter ou a Apolo? Ou por que não aprofundou a sua descrença, vendo que, na situação em que estava, a fé é claramente wishful thinking: “Era tão bom que houvesse uma vida depois desta para eu poder consolar esta pobre viúva! Então vamos acreditar!” Isto é fazer da religião uma crendice do género do livro O Segredo. A menos que se entenda a religião como crendice, o que é muito português aliás — veja-se a Titi da Relíquia do Eça, retrato fiel da religião à portuguesa — toda esta conversa da redução ao gnosiológico e ao epistemológico é só atirar pó para o ar. Uma questão fundamental na conversão da Stein é saber se é justificável. Há outras; mas também há esta.

Afirma “A lógica e a linguagem não são o modo de acesso primordial ao real nem o «lugar» exclusivo da verdade.” Isto não quer dizer nada, Alef. É apenas um “conversation stopper”, nada mais. Ninguém está a dizer que a lógica e a linguagem são o modo de acesso primordial ao real; estamos apenas a pedir razões, que é a coisa mais natural do mundo. Se alguém lhe disser que foi ao supermercado e sentiu lá que havia um extraterrestre escondido numa lata de feijão, você não vem com essa conversa da lógica e da linguagem se uma terceira pessoa fizer a pergunta simples “Como sabes que está lá um extraterrestre? Como sabes que não é uma ilusão? Como sabes que não é pura cedência ao wishful thinking?” Estas perguntas não são “redutoras”, nem pressupõem coisa alguma; são apenas a nossa maneira natural de pensar seriamente, em vez de manipularmos a conversa pressupondo sub-repticiamente o que devia estar a ser discutido.

Afirma: “Note-se ainda que embora se aceite o exemplo do Cavaco Silva como analogia, quando se trata de fé em Deus há uma diferença de «género» e não apenas de «grau». E porquê? Pela «simples» noção de absoluto. Insisto na importância deste conceito fundamental.” Isto só significa uma coisa: quer a crença em Deus, quer a crença na existência de Deus, requer justificações ainda mais fortes do que qualquer outra crença.

Finalmente: “O problema de Deus pode e deve ser colocado antes de qualquer «categorização», seja ela animista, politeísta, teísta, etc.” Mas o que é o problema de Deus? Está a ser redutor! Há vários problemas sobre a divindade: se existe; que propriedades tem; se há uma ou várias; se as diferentes religiões são compatíveis entre si; se há justificação para a fé numa divindade em particular em detrimento de outras. Não seja redutor! :-)

Fátima Lopes disse...

Desidério eu gosto de arte, vou fazer um desenho:

Deus é o oceano nós somos os peixes. O oceanos existe para os peixes? Não, a não ser que saiam do oceano e o observem a partir de fora. Curiosamente o oceano não está fora dos peixes, pois é através dele que respiram. A analogia é esta, há os que "sentem" Deus em si e há os que o buscam fora de si que é o seu caso. Acha que as células do seu dedo do pé sabem que você existe? Elas existem numa diminuta àrea do seu corpo, a célula teria de sair do seu pé para poder dizer "olha, afinal faço parte deste corpo imenso, sou parte dele e é ele que me dá vida" mas claro que nessa altura a célula estaria morta, não é por acaso que a morte é considerada o momento chave da Revelação.

Desidério Murcho disse...

Pink, o seu desenho está todo borrado:

“Deus é o oceano nós somos os peixes. O oceano existe para os peixes? Não, a não ser que saiam do oceano e o observem a partir de fora.”

Portanto, Deus não existe para nós. Mas ao mesmo tempo você está a querer dizer que, apesar de Deus não existir para nós, existe. Mas como raio sabe você que existe? O que afirma é pura e simplesmente arbitrário — o que é aliás comum no pensamento religioso popular. Com igual arbitrariedade posso eu dizer que todos vivemos no seio da Abóbora Gigante, mas que por isso mesmo não podemos saber que existe. Ah, mas você afirma também:

“há os que "sentem" Deus em si”.

Afinal, sempre se pode assobiar que Deus existe, apesar de não podermos dizer que existe porque andamos todos a flutuar na sua urina. Isto faz-me lembrar o finíssimo comentário de Ramsey às tolices místicas de Wittgenstein acerca dos limites da linguagem:

“O que não podemos dizer, não podemos dizer, e não podemos também assobiá-lo”.

Você quer dizer que não podemos conhecer Deus porque flutuamos na sua urina, mas quer dizer ao mesmo tempo que podemos senti-lo. Pois. Mas quem lhe garante que está a sentir a urina de Deus e não uma mera ilusão?

E quem lhe disse que realmente Deus está em todo o lado? Ainda hoje não estava na minha casa de banho, pois vi com muita atenção e até estive lá vários minutos em meditação concentrada e esforçada, para ver se o sentia. E senti várias coisas, uma boas e outras menos boas, mas nada que se parecesse com um deus. Hum, e depois há questão: qual deus? Zeus? Rá? Júpiter? Apolo? O Esparguete Voador?

Desculpe, mas a religiosidade popular é pura crendice tola e só merece ironia.

Anónimo disse...

"Desculpe, mas a religiosidade popular é pura crendice tola e só merece ironia."
Meu caro Desidério, e quem lhe garante que a religiosidade é uma crendice tola?
Já aqui disse que a filosofia pode ajudar a resolver os nossos problemas pessoais, mas não os dos outros. Com a filosofia, eu posso arranjar mil argumentos contra a existências das pedras, mas só um a seu favor. O de que elas existem.
A questão de Deus está viciada à partida. Honestamente, temos andado por aqui a esgrimir razões. Porque o Alef, o António Parente ou eu partimos do pressuposto de que Ele existe. O Desidério, de que não. Espinoza imaginou um Deus presente em tudo, antes de construir a argumentação que sustentasse a sua ideia. John Stuart Mill não acreditou num Deus criado pelo seu pensamento filosófico, mas “provou” esse Deus depois o ter pensado.
Trazer Zeus, ou Xiva, ou Odin, ou Rá, seja lá o que for, para a discussão de Deus ao mesmo nível que o Deus das religiões monoteístas é distorcer a História e a Filosofia. Porque esses estão marcados em rigor pela criação humana. O Deus único, que até pode ser uma alucinação humana, não vem na mesma linha. Nunca foi definido. Nunca foi sequer nomeado. “Javé” é uma fórmula que pode dizer-se filosófica e que resiste à passagem dos séculos. “Aquele que é” ou “Aquele que existe”. Não é um deus disto ou daquilo. É o Agnoto Theo que os gregos intuíram, e do qual procederiam todas as coisas.
Definir Deus? Não. Pô-lo ao nível dos ídolos ou das mitologias, também não. Fugir da questão por estas vias é repetir os bules ou os esparguetes voadores. Ainda que na versão da abóbora gigante. Que podem valer como ironia ou desprezo para com uma autêntica procura da verdade. Mas nada mais.

Desidério Murcho disse...

Olá, Daniel

Eu não disse que a religiosidade é uma crendice tola; disse que a religiosidade *popular* é uma crendice tola. A religiosidade que me aparece surpreendentemente neste blog.

“Com a filosofia, eu posso arranjar mil argumentos contra a existências das pedras, mas só um a seu favor. O de que elas existem.”

Isto é falso; há muitos argumentos a favor da existência das pedras, e os únicos argumentos contra são mais fracos do que os outros. E, na verdade, faz parte integrante da filosofia discutir precisamente esse tipo de pressupostos: o de que existem realmente pedras, por oposição a todo o mundo exterior ser uma fantasia (caso em que não se percebe por que razão inventámos o mau-hálito, para não falar em primeiros-ministros como Sócrates).

“o Alef, o António Parente ou eu partimos do pressuposto de que Ele existe. O Desidério, de que não.”

E você o que quer é fazer parar a discussão — a que chama “esgrimir argumentos”. Mas não se trata de esgrimir argumentos — trata-se de pensar cuidadosamente para tentar descobrir a verdade. Não há outra maneira de o fazer porque nenhum de nós é infalível.

O papel da filosofia não é partir de pressupostos: é examinar pressupostos. O meu papel é examinar o pressuposto de que Rá ou Xiva ou qualquer outra divindade existe. E também podemos examinar o pressuposto de que não existem.

“Trazer Zeus, ou Xiva, ou Odin, ou Rá, seja lá o que for, para a discussão de Deus ao mesmo nível que o Deus das religiões monoteístas é distorcer a História e a Filosofia. Porque esses estão marcados em rigor pela criação humana. O Deus único, que até pode ser uma alucinação humana, não vem na mesma linha. Nunca foi definido. Nunca foi sequer nomeado.”

Isto é falso. Qualquer bom livro de filosofia da religião começa por definir o deus teísta. Claro que você quer dizer que a única divindade real é a sua, mas qualquer outra pessoa de qualquer outra religião pode dizer exactamente o mesmo. Curiosamente, a melhor razão para pensar que o deus teísta é o mais plausível, é rechaçada por si: é que a concepção do deus teísta foi desenvolvida por séculos de filosofia e raciocínio cuidadoso, apresentando uma sofisticação que as divindades das outras religiões não têm.

É arbitrário recusar o raciocínio filosófico ou científico quando não produz os resultados que queremos e aceitá-lo quando produzem resultados que nos interessam.

Alef disse...

Caro Desidério:

Começo pela sua última frase, onde de alguma forma me devolve com «smiley» a crítica que fiz ao seu «post», a de ser redutor. Creio que uma leitura atenta do que tenho escrito de modo nenhum pode sustentar a ideia de que eu seja redutor. Muito pelo contrário. A minha tese fundamental é a de que o que há a fazer é precisamente situar as questões no seu justo contexto, evitar afunilamentos injustificados, sobretudo quando se mutilam as questões. Em várias das trocas de ideias que tivemos tratei de vincar esta ideia. Assim aconteceu para o tema da fé, pela Primavera, assim tem vindo a acontecer nos comentários aos mais recentes «posts» do Desidério, como aconteceu noutros casos de «posts» de outros autores deste «blogue».

No caso concreto do problema de Deus, sempre chamei a atenção para a questão de que este problema não se identifica nem se reduz ao das provas da existência de Deus. Já apresentei alguns elementos que justificam esta minha posição. Mas isto não significa, ao contrário do que sugere o Desidério que a minha proposta pretende dizer sub-repticiamente que a questão da existência de Deus não é importante. O que digo é que é importante, mas é derivada. Começar por ela e reduzir o problema de Deus (relembro que não falo ainda de divindades, quaisquer que elas sejam) ao da sua existência é que é um reducionismo. Nas suas formulações mais habituais, o problema da existência de Deus trata Deus como um «objecto» e objecto de conhecimento. Mas poderá ser Deus «objecto» como um outro ente qualquer? Se partirmos da questão das provas, torna-se complicado compreender a razão por que o problema da existência de Deus não tem nada a ver com o bule de Russell ou com o monstro do spaghetti voador. E neste caso, passa-se ao lado do problema. Ao fazer a distinção entre «realidades-objecto» e «realidades-fundamento», o livro de que falei aprofunda este problema de um modo incontornável. Sugiro mais uma vez que o leia.

Voltando de novo ao exemplo da conversão da Edith Stein, situei-o no problema geral de Deus e da fé e não no contexto desta ou daquela confissão de fé. Por isso, quando o Desidério «salta» de novo para a questão das «categorizações» (por que se converteu a esta divindade e não àquela, etc.), eu apenas apelo de novo à «disciplina» que sempre propus: a menos quando isso seja estritamente necessário, o problema de Deus situa-se em primeiro lugar num patamar prévio a qualquer divindade concreta.

À minha repetida frase de que ali o problema de Deus e da fé não se reduz ao da justificação, o Desidério concede que há mais aspectos para lá do da justificação (psicológicos, históricos, etc.), para dizer que «também há aspectos filosóficos», acrescentando que «um desses aspectos filosóficos é saber se tal conversão é justificável». Ora bem, eu concordo com esta formulação, até porque o Desidério colocou a justificação como «um desses aspectos filosóficos». Estou de acordo. Aquilo em que não estou de acordo é que o tratamento filosófico da questão de Deus se reduza ao da justificação. Naturalmente isto levanta problemas muito mais vastos, como o da inteligência humana e o papel da razão em tudo isto. Uma das consequências de tudo isto é a própria noção de justificação. Será que todos os filósofos entendem a «justificação» da mesma forma?

À minha frase «A lógica e a linguagem não são o modo de acesso primordial ao real nem o «lugar» exclusivo da verdade», o Desidério responde que isto é um «conversation stopper», «nada mais», que isto não diz nada. Por um lado, isto não me parece um modo muito filosófico de responder; por outro lado, não é verdade que seja um «conversation stopper» ou que nada diga.

a) De uma forma bastante simples a minha chamada de atenção corresponde ao problema da distância entre a justificação e a nossa captação da realidade.

b) De uma forma medianamente complicada, corresponde ao problema identificado por Husserl e vários filósofos de inspiração fenomenológica da distância entre a captação/apreensão da realidade e a sua descrição e desta e a sua explicação. Isto significa que quando «justificamos» já de alguma forma nos afastamos do momento inicial. Isto não nos deve coibir de justificar, mas de fazê-lo com a consciência dos limites implicados. Desta forma as justificações podem e devem ser revistas.

c) De uma forma bastante mais complicada, o problema tem a ver com um problema vastíssimo de toda a filosofia ocidental a que Zubiri chama a logificação da inteligência (e da linguagem) e da entificação da realidade. Um dos pontos-chave da logificação da inteligência (ou da intelecção) está no confinar da verdade ao domínio do juízo, sobretudo o proposicional. Não conheço muito bem C. S. Peirce, mas no que li dele encontro alguns curiosos pontos de coincidência nesta magna crítica.

Portanto, quando o Desidério diz que «estamos apenas a pedir razões, que é a coisa mais natural do mundo», o facto de ser natural não significa que seja «inocente». Quando se pretende reduzir o problema de Deus a uma mera dialéctica de razões a favor ou contra a existência de Deus, de modo nenhum essa opção é «inocente». Aqui «(não) inocente» não tem qualquer conotação moral, como se houvesse uma segunda intenção; o que quero dizer é que a escolha de um ponto de partida pode condicionar em muito o ponto de chegada.

De outra forma, se o Desidério diz, e bem, que a filosofia analisa os pressupostos, a minha chamada de atenção vai para os próprios pressupostos da necessidade de justificação e de averiguar em que contexto e como se pretende justificar.

Quando apelo de novo à noção de absoluto, o Desidério diz: «Isto só significa uma coisa: quer a crença em Deus, quer a crença na existência de Deus, requer justificações ainda mais fortes do que qualquer outra crença.» Talvez sim, mas tudo depende do que se entenda por justificação. No contexto de uma logificação da inteligência isso terá um significado; no contexto de uma inteligência de outro tipo, isso será bastante diferente.

No final, quando mais uma vez digo que «o problema de Deus pode e deve ser colocado antes de qualquer categorização, seja ela animista, politeísta, teísta, etc.», pergunta: «Mas o que é o problema de Deus?» Falta-me ainda o engenho e a arte para responder cabalmente a este problema e uma caixa de comentários perdida não é o espaço mais estimulante para tratar disto com princípio, meio e fim. Por enquanto parece-me importante identificar alguns problemas e apontar algumas vias alternativas que parecem tratar melhor os problemas. Das minhas leituras sobre este tema, parece-me que a obra mais rigorosa e estimulante é o livro que já citei («El hombre y Dios»), que coloca o problema de Deus em relação com o da realidade e com o do fundamento do real (só isto resolve de vez o pseudo-problema do bule de Russell e do «esparguete voador»). Longe de fazer qualquer reducionismo, esta abordagem é ampla, profunda e iluminadora, mesmo que naturalmente aberta a críticas posteriores, coom é natural em filosofia. No que diz respeito às «provas» não elimina o problema, antes as coloca num âmbito menos «absolutista» ou redutor e até propõe uma teoria alternativa a todas as conhecidas. Curiosamente, o mesmo autor tem um segundo livro a que chama «El problema filosófico de la historia de las religiones».

Enquanto termino estas notas vejo, em comentários e diálogo com outros leitores, que no contexto destas temáticas o Desidério vai discutindo reiteradamente problemas como o da variedade de deuses ou «encontrar» ou não encontrar este ou aquele «deus», religiosidade popular e afins. Embora o que digo agora não seja argumento filosófico, confesso que me causa alguma «surpresa» aquilo que para mim corresponde a um «fugir» ao problema. Renovo o meu desafio a ler «El hombre y Dios». Verá que encontrará questões muito interessantes.

Alef

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

“Ao fazer a distinção entre «realidades-objecto» e «realidades-fundamento», o livro de que falei aprofunda este problema de um modo incontornável.”

Esta distinção é apenas uma maneira sub-reptícia de colocar a divindade para lá de qualquer discussão. Isto é mera retórica oca. Seja o que for que lhe chame, realidade-objecto, realidade-fundamento ou realidade-geleia, queremos saber se há boas justificações para crer em tal realidade. Há? Quais?

Ora, você está convencido que essas boas justificações se baseiam na experiência religiosa das pessoas religiosas — que é um dos tipos de argumentos tradicionais a favor da existência de Deus, muito discutidos em filosofia, e sem entrar na retórica das realidades-geleia, que só servem para deitar areia para os olhos.

“Será que todos os filósofos entendem a «justificação» da mesma forma?”

Não, não entendem. Plantinga desenvolveu um interessante argumento sobre a justificação da fé com base num tratamento aprofundado da noção de justificação. Mas isto é parte normal da discussão filosófica, que é sobre a justificação ainda. Não é uma maneira de tentar fugir à discussão e dizer que a justificação é irrelevante porque o que conta é que alguém torceu um pé, aterrou numa bosta de vaca e teve uma experiência religiosa profunda que o levou a passar a dormir num galinheiro com patos selvagens. Desculpe a ironia, mas isto é risível.

“De uma forma bastante simples a minha chamada de atenção corresponde ao problema da distância entre a justificação e a nossa captação da realidade.”

Vejamos: imagine que o Deus teísta existe mesmo. Segue-se daí que estamos automaticamente justificados em crer nele? Não. Temos de ter razões para isso. E essas razões têm de estar conectadas com a captação da realidade divina. Não conta acertar na verdade por sorte. Isto devia ser óbvio. É por isso que essas coisas da conversão quando se pisa uma bosta de vaca são irrelevantes, a menos que tenhamos uma história mais elaborada para contar. Teríamos de ter razões para pensar, por exemplo, que um deus que se não faz qualquer intervenção quando morrem milhares de pessoas num terramoto, está interessado em dar-se a conhecer quando alguém pisa uma bosta de vaca e suja os sapatos novos. Mas tudo isto é discussão da mesma coisa: justificação. Em particular, é a discussão de um dos tipos de argumentos a favor da existência de Deus: o argumento da experiência religiosa.

“b) De uma forma medianamente complicada, corresponde ao problema identificado por Husserl e vários filósofos de inspiração fenomenológica da distância entre a captação/apreensão da realidade e a sua descrição e desta e a sua explicação. Isto significa que quando «justificamos» já de alguma forma nos afastamos do momento inicial. Isto não nos deve coibir de justificar, mas de fazê-lo com a consciência dos limites implicados. Desta forma as justificações podem e devem ser revistas.”

Claro que as justificações devem ser revistas. Mas os filósofos como Husserl inventaram a fenomenologia porque não sabiam reagir ao desafio cartesiano de provar que há um mundo exterior para lá das nossas sensações dele -- e não por pensarem que a nossa captação da realidade era mais rica ou importante do que as nossas justificações. O que eles não sabiam era justificar a nossa crença natural de que as nossas representações da realidade têm origem numa realidade independente da mente (influenciados por Kant). E portanto decidiram fazer filosofia pondo entre parêntesis a questão de saber se às nossas representações corresponde de facto uma realidade ou não.

Mas isto não é nada vantajoso para fazer filosofia da religião porque o que lhe importa a si não é com certeza a banalidade de reconhecer que há pessoas que têm toda a fenomenologia da fé; caraças, o que realmente importa é saber se a essa fenomenologia corresponde realmente um deus. Ou quer concordar com os ateus como Freud que defendem que Deus é uma impressão subjectiva apenas, inteiramente explicável em termos naturalistas?

“c) De uma forma bastante mais complicada, o problema tem a ver com um problema vastíssimo de toda a filosofia ocidental a que Zubiri chama a logificação da inteligência (e da linguagem) e da entificação da realidade. Um dos pontos-chave da logificação da inteligência (ou da intelecção) está no confinar da verdade ao domínio do juízo, sobretudo o proposicional. Não conheço muito bem C. S. Peirce, mas no que li dele encontro alguns curiosos pontos de coincidência nesta magna crítica.”

E por que razão havemos de aceitar o diagnóstico do Zubiri? Só porque dá jeito? Quão plausível é este diagnóstico? E por que razão é plausível? O que ele quer dizer é que é preferível abandonar esta chatice de estarmos a tentar descobrir a verdade pensando. Pois é. Só que não há outra maneira de o fazer — a menos que *pensemos* que o pensamento é uma espécie de jogo do galo e por isso vamos lá mudar as regras que estas são muito limitadas. Só que não podemos sair para fora do pensamento para mudar as regras do pensamento: temos de continuar a pensar e não há outra maneira de pensar a não ser pôr um pensamento a seguir a outro e tentar ver o que se segue do quê. O resto é manipulação retórica.

“De outra forma, se o Desidério diz, e bem, que a filosofia analisa os pressupostos, a minha chamada de atenção vai para os próprios pressupostos da necessidade de justificação e de averiguar em que contexto e como se pretende justificar.”

Pois é, e eu agora posso questionar esse seu pressuposto. Temos de pensar uma coisa de cada vez. Tudo o que o Alef quer é fugir de uma discussão. Acho isso inaceitável. Vejamos: se eu vejo três pessoas a discutir quem é a maior besta, se o primeiro-ministro se o presidente da República, afasto-me porque é uma discussão que não me interessa. Não me meto na discussão para dizer que deviam antes estar a discutir se as cuecas do Cavaco andam devidamente limpas e cheirosas.

Por que raio hei-de eu discutir o que você quer discutir, que é a fenomenologia da experiência religiosa? Por que raio havemos de abandonar uma discussão filosófica central e tradicional sobre a existência de deus? Discussão que tem atravessado toda a história da filosofia desde Santo Agostinho até aos dias de hoje e que continua viva, actual e actuante, e na qual participam os grandes filósofos crentes actuais, como os do passado?

Resposta: porque o Alef prefere outra. Ora, pomba, Alef! Está a ver bem o que está a fazer?

“mas tudo depende do que se entenda por justificação. No contexto de uma logificação da inteligência isso terá um significado; no contexto de uma inteligência de outro tipo, isso será bastante diferente.”

Oiça, podemos discutir o que é a justificação. Isso é um debate filosófico imenso. Mas não podemos ter a ingenuidade de pensar que primeiro fazemos esse debate para depois fazer este; temos de fazer este mesmo sem resolver o outro porque o outro não se resolve depressa.

O que você quer evitar é toda a noção de justificação segundo a qual o resultado seja que a fé em deus não é justificável. Isto é duplicidade mental. Se eu tivesse apresentado um conjunto de argumentos altamente persuasivos para justificar a fé, o Alef já acharia que não havia qualquer logificação.

A única razão para você gostar tanto do Zubiri é que ele... justifica a sua fé. Afinal, a justificação é ou não importante? Está a ver a duplicidade intelectual?

Anónimo disse...

Excelente post e muito interessantes os diálogos da caixa de comentários. Subsistem-me algumas dúvidas ou discordâncias que aqui deixo: não será tanto forçado como arriscado pretender-se uma abordagem para a questão da fé num deus semelhante às utilizadas na ética e na estética para as questões do bem e do belo? Tratar deus como conceito abstracto do domínio do sensível não será demasiado redutor?

Se bem que a ética e a estética abordam a questão da perfeição, tal como deus, tanto o bem como o belo são conceitos referentes a qualidades independentes de um suporte e, daí poderem ser tratados sem a existência dos seres ou dos objectos. Não percebo como se possa abordar a questão de deus sem uma entidade, uma criatura, um algo, ou, pelo menos não é assim que as religiões normalmente o tratam. Repare-se que em nome do bem pode-se fazer tudo e do belo também (como as artes do feio).

De uma forma inteligente o Alef apela ao conceito de absoluto (equivalência ao bem e ao belo?) para a discussão de deus e das duas uma: se estamos a falar de uma existência que se auto justifica, que existe por si só, concordo inteiramente com o Professor Desidério que devemos ser ainda mais exigentes na argumentação da sua existência, se nos referimos ao absoluto da totalidade das coisas tornamos deus completamente abstracto, subjectivo e sem qualquer importância.

As minhas desculpas pela linguagem de eterno aprendiz de filosofia.

Artur Figueiredo

João Vasco disse...

O Desidério acredita que a crendice popular se distingue da teologia, considerando que «a concepção do deus teísta foi desenvolvida por séculos de filosofia e raciocínio cuidadoso, apresentando uma sofisticação que as divindades das outras religiões não têm.»

Sem necessariamente discordar, encontrei um texto curioso que apresenta um ponto de vista diferente, que dá muito menos crédito à teologia. Cito parte:

«(...) philosophy is a very different business from either religious studies or theology. Philosophy is enquiry, critical and open-ended enquiry, in which examination of evidence, assumptions, claims, methods and motivations is conducted according to the public and challengeable discipline of reason. As a subject of study "religion" admits of historical and sociological investigation, both empirical enquiries. "Theology" turns on the assumption that there is something for it to be about (god or gods), rather as "astrology" turns on the assumption that distant stars and galaxies influence whether you are impatient or sexy or keen on travel. These two -ologies have as much credibility as each other, but the latter usually does less harm than the former. Neither merits bracketing with philosophy, any more than the study of demon possession as a source of disease is bracketable with medicine. (...) But the key point is that ethics is a matter for everyone. The question of how one should live, what one's values should be, what is worthwhile and what is unacceptable in our relationships with each other, and what matters most in our conduct and our aims, is a vital matter on which everyone should reflect. The various religions have their various (and often competing) views on these matters, and are entitled to put them; but they do not own them or even have particularly interesting, still less plausible or constructive, things to say about them - often rather far from it. The reflex running together of the words "religion and morality" as if religion has some sort of special lien, or even monopoly, on the subject of morality is part of the problem, not part of the solution, in our contemporary world. Once we disjoin the words in this unreflectively reflex conjunction, we will make better progress with thinking about what is required for the living of good individual lives in good societies.»

Está tudo aqui: http://commentisfree.guardian.co.uk/ac_grayling/2007/11/compounding_the_issue.html

Anónimo disse...

Nota prévia: escrevi este comentário no "Word", pelo que não lera ainda a resposta do Desidério e as que se seguiram. Anoto que apreciei as intervenções do João Vaso e do Artur Figueiredo.
Meu Caro Desidério
Esta será a minha última intervenção nesta troca de ideias, pois não quero tornar-me, ou continuar a ser, maçador.
Sem premeditação, acabei por lhe lançar uma pequena armadilha com a questão das pedras. O Desidério rejeita liminarmente a necessidade de provar que elas existem. Isto é óbvio, por se estar no plano do meramente empírico, que dispensa filosofias. Ora, a filosofia não pode alhear-se de outros tipos de conhecimento, seja o empírico, seja o antropológico, seja o social, o histórico etc.. Quando a filosofia trata da ética, por exemplo, tem de contar com essas noções, o que terão feito Kant ou Kirkegaard, mas John Stuart Mill algo menos, e daí talvez que durante pouco tempo tenha sido tomado como referência de interesse. Uma vítima filosófica do evolucionismo, não terá sido?
A questão de Deus não pode começar por considerar no mesmo plano Javé, Zeus ou Júpiter, Rá ou Ré. Aliás, não tem de começar por considerar nenhum desses deuses. Partir para uma argumentação sobre o divino tem de acontecer no pressuposto abstracto de ser a ideia de Deus aceitável ou não. Se esta ideia for rejeitada, estará resolvido o problema de todos os deuses. Se o não for, então é que poderá avançar-se para a análise filosófica de cada um deles.

João Vasco disse...

Daniel de Sá:

Creio que o Desidério não rejeitou a discussão a respeito das pedras. Pelo contrário, disse que os argumentos a favor da existência eram muito mais fortes do que os argumentos contra a existência.

De resto, acho que Stuart Mill ainda tem bastante interesse, pelo menos para mim :)

Quanto à questão de Deus, podemos pegar nela de vários ângulos. E um deles pode ser considerar um deus particular. Claro que se a "ideia" geral de Deus for rejeitada, não existe necessidade disso. Mas se isso for difícil, e não formos tão ambiciosos, não há razão para rejeitarmos conclusões (ou discussão) a respeito de alguns deuses em particular.

Anónimo disse...

João Vasco
Plenamente de acordo com o que disse, que tomo como uma espécie de ratificação do que escrevi, oque agradeço. Incluindo a questão das pedras, cuja discussão se torna muito mais fácil por a sua existência ser evidente. Ainda tenho a marca de uma na cabeça, resultado de uma brincadeira infantil, porque, à falta de bola verdaderia, eu e um amigo resolvemos usar pedras. E agora mesmo me ocorre uma analogia simples. Perante esta cicatriz, poderá quem não saiba a sua origem discutir o que a terá provocado. Uma pedra seria a solução talvez mais natural. É um pouco isso que me acontece quanto à responsabilidade pela existência do Universo.

Alef disse...

Caro Desidério:

A meu ver, no seu comentário anterior «lançou-se» a «adivinhar», caindo em «conclusões» que não têm muito sentido, para além de alguma violência despropositada. Que não tenha compreendido ou que eu não me tenha explicado bem é uma coisa; atribuir conclusões absurdas ao interlocutor sem as ter averiguado parece-me já outra, bem diferente.

Se a sua interpretação fosse correcta teria razão para falar em duplicidade intelectual, mas a sua interpretação não é correcta, pelo que lamento que se tenha precipitado em intempestivas catalogações.

Por exemplo, onde se vê o Desidério que eu digo que «a justificação é irrelevante»?

E ainda, onde vê o Desidério que para mim as «boas justificações se baseiam na experiência religiosa das pessoas religiosas»? Isto não é verdade e não tem qualquer sentido no contexto do que escrevi.

[Nem mesmo o exemplo que dei da Edith Stein pretendeu suportar tal ideia. Apenas usei o exemplo para mostrar que a forma como o Desidério expôs aqui o tema e fala da fé não «compreende» um fenómeno como este.]

O Desidério parece apostado em vender a ideia de que eu quero evitar o debate, mas isso não é verdade. O que eu quero é que o debate comece pelo início. E uma das formas de colocar o problema desde o início pode ser partir de uma questão colocada por outro leitor: é pensável a ideia de Deus? Que significa o problema de Deus enquanto diferente de todos os outros? Escrevi também que neste problema um dos caracteres fundamentais do problema de Deus é o carácter absoluto. Também disse que me parece muito pertinente a via do fundamento. Ora, isto, longe de fechar o debate, abre-o e impede becos sem saída desnecessários como a história do esparguete voador.

O que diz a propósito de Husserl parece-me insuficiente. O problema de Husserl não era simplesmente o «desafio cartesiano de provar que há um mundo exterior», mas o beco sem saída e descrédito em que tinha caído a filosofia com as discussões entre idealistas e realistas (com outras contendas pelo meio), problema que aumentava com o historicismo e com o psicologismo de Wundt.

Esta nota sobre Husserl é útil para o que o Desidério diz a seguir, depois de citar a epochê fenomenológica:

«Mas isto não é nada vantajoso para fazer filosofia da religião porque o que lhe importa a si não é com certeza a banalidade de reconhecer que há pessoas que têm toda a fenomenologia da fé; caraças, o que realmente importa é saber se a essa fenomenologia corresponde realmente um deus. Ou quer concordar com os ateus como Freud que defendem que Deus é uma impressão subjectiva apenas, inteiramente explicável em termos naturalistas?»

Este é precisamente um dos problemas com que se defrontou Husserl, não «apenas» em relação a Deus, mas a todo o «mundo exterior». Enquanto idealistas e «realistas ingénuos» discutiam como os velhos Marretas, Husserl e vários dos seus «discípulos» trataram de averiguar um ponto de partida que servisse de base para todos. Tratava-se de alguma forma de um novo «cogito», mas num contexto de «ideal socrático», da busca de uma filosofia livre dos pressupostos habituais. Encontrou na consciência intencional uma via de reconstrução da própria filosofia. Se o conseguiu ou não, isso é outra questão e a verdade é que caiu também em algum idealismo. O que é certo é que foi o inspirador de um considerável número de filósofos que se dispuseram a refazer este caminho. No que diz respeito à questão do mundo exterior, poderíamos simplificar desta forma: se as polémicas entre realistas e idealistas deixam patente as aporias da «justificação» do mundo exterior, de algo temos evidência segura: das nossas próprias apreensões. Se são ilusões ou correspondem a algo para lá da apreensão, essa é outra questão que importa ver a seguir e com cautela, sob pena de cair na velha discussão realismo-idealismo.

E fica sem resposta o que está para lá da apreensão, que o Desidério diz ser o que realmente importa? Não, longe disso. Aqui vale a pena considerar a proposta filosófica de Zubiri, a da sua trilogia sobre a inteligência humana. Enquanto constata que a filosofia ocidental desde Parménides tem funcionado com um dualismo nunca justificado, a saber, o dualismo entre sentir e inteligir, propõe a tese fundamental de uma «inteligência sentinte» (diferente de sensível), pela qual temos uma «apreensão primordial de realidade», modalizada ulteriormente no que ele chama logos e razão. Captadas as «coisas» como «reais», tentaremos dizer o que são (logos) e explicá-las (razão). Quando eu digo que eu chamo «branco» à cor de fundo deste écran estou já a aplicar um conceito a algo que captei «previamente» como real, que é real na minha apreensão. Contudo, este branco do écran é um entre inumeráveis brancos. No momento em que digo que «este écran é branco» ganho em «conhecimento» (por exemplo, distingo-o de outras cores), mas perco em «imediatez». Mas posso tentar explicar o fenómeno da cor e isso faz-se ao nível da razão, através das mais variadas teorias científicas, onde posso falar de ondas electromagnéticas, de um determinado processo que inclui o cérebro e os olhos, etc. Portanto, é possível tratar do que está para lá da apreensão, com um ganho importante: temos consciência dos ganhos e perdas sempre que apresentamos uma teoria, uma explicação, uma justificação. Há sempre um carácter provisório daquilo que se diga da apreensão primordial. Obviamente, ao «resumir» mil páginas nisto estou a simplificar muito.

Como «fica» o problema de Deus neste contexto? O problema de Deus não se coloca enquanto do domínio das coisas, mas no contexto do fundamento do real (que me inclui). Passo aqui por alto outras questões como a «do poder do real». Estamos ao nível da razão. Antes de se tratar de um qualquer «deus» concreto, «Deus» aqui refere-se ao problema de uma «necessidade» de fundamento do real. Se esse fundamento é uma realidade divina revelada, isso é algo que não entra aqui. Que caracteres há-de ter esta realidade-fundamento? Para simplificar, digamos que para que essa realidade não necessite de ser por sua vez fundamentada, terá que ser absoluta (ainda não estamos no problema se existe ou não!). O carácter absoluto (ab-soluto, não solto) é determinante aqui. Ora, haverá que pensar bem no que implica esse carácter absoluto e «fundamentante» dessa realidade «divina». Neste nível não se coloca ainda o problema da fé, nem da religião, mas apenas aquilo a que Zubiri chamou o problema da «religação»: estamos religados ao poder do real. Este filósofo expõe o seu pensamento de tal modo que agnósticos, ateus e crentes estejam de acordo neste fenómeno primário da fundamentalidade.

Posto isto, vem então o problema da determinação concreta dessa realidade-fundamento e aqui entra também o problema da existência de Deus, da sua justificação… Mas com a consciência que, tal como antes, qualquer «justificação» é sempre provisória.

Que importância tem este aparente desvio para depois se entrar na questão das provas? Muita. Longe de fugir ao debate ou à busca da verdade, esta exposição do problema tem a enorme vantagem de não misturar o problema de Deus com outros pseudo-problemas de Deus, como o do esparguete voador, que é um mero fugir ao problema. Assim não se cai na ratoeira da «entificação» mais ou menos arbitrária de «Deus».

Contudo, há ainda outra vantagem, que é a de situar o próprio ateísmo de uma forma mais radical: aqui o ateísmo pode-se afirmar pela positiva no sentido de dizer que a fundamentalidade das coisas está nelas mesmas: delas não podemos ir mais «além». O agnosticismo afirma-se suspensivamente na determinação dessa fundamentalidade. O «teísmo» afirma a fundamentalidade das coisas numa transcendência, não necessariamente transcendente às coisas, mas transcendente nas coisas (a noção de fundamentalidade ajuda a equacionar esta distinção).

Aqui há então lugar a todos os modos de justificação que considerarmos adequados.

No meu comentário anterior referi ainda outro problema que poderia ter integrado nos parágrafos anteriores: o problema da «logificação da inteligência (e da linguagem) e da entificação da realidade». O Desidério pergunta por que razão havemos de aceitar tal diagnóstico. Respondo: aceitamos na medida em que o pudermos verificar. Podemos rejeitá-lo se não encontrarmos consistência na sua exposição. Ou justificação. O Desidério deita-se a adivinhar quando diz que «O que ele quer dizer é que é preferível abandonar esta chatice de estarmos a tentar descobrir a verdade pensando». Isto vai completamente ao lado. O tema da verdade e da sua procura é uma constante na sua obra e também traz notáveis contributos.

Depois o Desidério toca um tema bem interessante: «Só que não podemos sair para fora do pensamento para mudar as regras do pensamento: temos de continuar a pensar e não há outra maneira de pensar a não ser pôr um pensamento a seguir a outro e tentar ver o que se segue do quê».

Não podemos sair para fora do nosso pensamento e linguagem, mas podemos analisar alguns pressupostos e tentar escapar de algumas dificuldades. Um desses pressupostos tem precisamente a ver com o juízo proposicional e com o juízo como âmbito exclusivo da verdade. As nossas línguas ocidentais vivem muito da forma copulativa «é» e isso marcou a nossa forma de pensar; mas esta forma nem sequer é universal e trouxe importantes consequências no desenrolar da filosofia. Mas línguas semitas não têm este tipo de construção e é possível pensar com elas e com a ajuda delas. De resto, parece que é possível identificar juízos «antepredicativos» nas nossas línguas. Não se trata de querer sair do pensamento (impossível), mas de estarmos atentos aos próprios limites da nossa linguagem. Ao chamar a atenção para alguns dos pressupostos do nosso pensamento, estamos, evidentemente, a pensar.

O Desidério também diz que o que eu quero discutir é a fenomenologia da experiência religiosa. Uma acusação completamente sem sentido.

Diz ainda que gosto de tal filósofo por ele justificar a minha fé. Isto é mera barata arma de arremesso. Biograficamente isso nem é verdade. O meu interesse por Zubiri começou pelo problema da inteligência. No que diz respeito ao problema de Deus é tremendamente desafiador e algo desmontador de ideias feitas, fundamentando a sua complicada exposição, mas nem o tenho como referência última para justificar a minha fé. [Mas nisto de justificar a minha fé talvez eu seja mais semita que grego (ora cá está um grande problema!), mas isso é outro tema em que não quero entrar agora.] Zubiri não é palavra última sobre o assunto. Se tem razão ou não, isso é outra questão, mas para averiguar isso é melhor estudá-lo. Citando o mesmo Desidério, em «post» mais recente, «Procurar a verdade é estudar quem discorda de nós […]».

Alef

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

Ou seja, depois de dar voltas e voltas, podemos finalmente começar a discutir o argumento de Leibniz da contingência do mundo, por exemplo, que é equivalente ao argumento do "fundamento" a que você alude.

E depois de muito palavreado, temos esta pérola da filosofia: primeiro vê-se e sente-se e contacta-se com o mundo, depois pensa-se. Isto é verdade, mas nada muda. Queremos continuar a saber se o argumento de Leibniz é bom ou não. Queremos continuar a saber se a justificação da crença religiosa de Plantinga é plausível ou não.

Quanto à ideia do limite da linguagem, realmente parece muito limitada quando se pensa que temos vivemos da forma copulativa "é" — só que não vivemos. Isso é uma ilusão da lógica escolástica, que está errada, mas aparentemente é a única que os filósofos da Europa continental conhecem. A ideia de que a estrutura fundamental do juízo é algo do género "S é P" é pura e simplesmente falsa e temos uma lógica que não se baseia nisso desde o tempo dos estóicos, a quem ninguém ligou, e que depois foi recuperada por Frege e Russell. E hoje temos uma multiplicidade de lógicas que exploram muitas vertentes diferentes. Que tem isto a ver com o meu post? Nada. Usemos ou não o "é", temos de nos perguntar se um determinado pensamento justifica ou não outro, e porquê.

Para si, as coisas são assim: ou bem que formulamos os problemas centrais da filosofia da religião como você os conhece, ou estão mal formulados. Acontece que o modo como você vê as coisas nada tem a ver com a filosofia da religião tal como se faz hoje, e tal como se fez no passado. O que se discute na bibliografia contemporânea e nas revistas académicas da especialidade são as mesmas velhas ideias e argumentos, refinados e tornados mais sofisticados, que Leibniz ou Tomás de Aquino ou Agostinho discutiam. E era isso que eu queria dar a conhecer aos leitores. Mas já devia estar habituado a esta surpresa: os crentes não gostam que o grande público conheça a filosofia da religião, nem discuta os argumentos de Anselmo ou de Leibniz. Bizarro, hã?

Alef disse...

Caro Desidério:

Embora fosse de alguma forma previsível o seu comentário, não deixa de ser curioso a similitude com as reacções de muitos não filósofos a tudo quanto é filosofia. Aqui a reacção não é contra a filosofia, mas contra a filosofia que não entre nos seus «cânones». Curiosamente, isso nem me surpreende, pois somos todos mais ou menos assim. Tenho visto sumidades de filosofia a dizer barbaridades sobre autores que não conhecem ou que simplesmente detestam. Aqui, «voltas e voltas», «palavreado», etc., foram alguns dos «mimos», sem aparentemente compreender que as questões que coloquei, mesmo implicando uma mudança de perspectiva, permitem um tratamento mais rigoroso das mesmas questões que colocou.

No que diz respeito a conteúdos, diz o Desidério que «o argumento do “fundamento”» é equivalente ao argumento de Leibniz, mas isso não é verdade. Sirva como referência a terceira via de S. Tomás. Uma das preocupações de Zubiri é partir de um «facto» constatável e esta é uma das razões pelas quais rejeita todas as cinco vias de S. Tomás de Aquino: o ponto de partida do filósofo medieval são teorias ou interpretações da realidade, não factos constatáveis. (Outra crítica é que o ponto de chegada não é formalmente Deus: no final teríamos que mostrar que «aquilo» é Deus.) No caso da terceira via, considera que a experiência não nos dá nem a necessidade, nem a contingência, nem a possibilidade (parece que o Desidério se interessa particularmente por estes temas). Ora, a propósito da terceira via de S. Tomás, escreve Zubiri:

«La tercera vía se funda en la consideración de lo posible y de lo necesario. Para santo Tomás, nos lo dice explícitamente, el hecho de que haya cosas que se producen y que se destruyen es eo ipso el hecho de la no-necesidad de su realidad. Pero ¿es así? Lo sería tan sólo si la generación y la corrupción no fueran en sí mismas algo necesario en la naturaleza. Ahora bien, esta necesidad ciertamente no nos está dada en la experiencia. Pero la experiencia tampoco nos da lo contingente. La experiencia muestra tan sólo y formalmente «lo que es», muestra que las cosas «son así» y nada más. Lo posible y lo necesario no son un hecho dado en la experiencia.» (El hombre y Dios, p. 120).

O Desidério prossegue a sua «leitura» desacreditadora, alegadamente encontrando aquilo a que chama «esta pérola da filosofia»: «primeiro vê-se e sente-se e contacta-se com o mundo, depois pensa-se». Em primeiro lugar, não é isso que eu digo, muito embora o limitado do resumo possa permitir esse erro de interpretação. Em segundo lugar, diz que «isto é verdade, mas nada muda». Bem, agora fica com a pérola para si. Acontece que eu não falei em termos de sucessão temporal com algo necessário (daria algum trabalho explicar o porquê, mesmo que possam existir e existam processos que se desenrolam temporalmente). Mas também não é verdade que esta proposta de análise da estrutura intelectiva não mude nada. Muda muita coisa. Podemos, claro ver se o argumento de Leibniz é bom ou não. Mas temos até instrumentos que nos permitem analisar os seus pressupostos.

O que referi a propósito do juízo foi uma exemplificação dos pressupostos da nossa própria linguagem e pensamento e relacionava-se com o que disse sobre a logificação da intelecção e entificação da realidade.

Quanto ao conteúdo do seu último parágrafo, o que fiz foi uma crítica àquilo que me parecem ser os limites da abordagem do «post», abordagem que conheço; não a critiquei por me ser estranha. Por outro lado, a alternativa que apontei parece-me consistente e capaz de dar luz a alguns dos problemas que a sua abordagem apresenta.

O ter invocado a bibliografia contra as minhas intervenções não deve ser intimidatório. A bibliografia filosófica sobre o problema de Deus não está encerrada nem é ponto assente que não possa ser tratada de outra forma. Cabe-nos ir vendo as alternativas, estudá-las, dar também o nosso contributo.

Finalmente, pela parte que me toca não é verdade que não goste que o grande público conheça a filosofia da religião. Mas parece-me, isso, sim, que vale a pena tentar perceber por que razão muitos filósofos crentes não prestam grande importância a esta discussão. Não tenho uma teoria definitiva sobre o assunto, mas tenho as minhas suspeitas. Uma delas tem a ver com o seguinte: o reducionismo da sua abordagem deixa de fora o fundamental da fé, de modo que quem tem fé não encontra neste exercício um espaço que lhe diga respeito. E nada disto tem a ver com a às vezes chamada «irracionalidade da fé». O Desidério insiste em reduzir tudo à justificação, ao medir de razões para as crenças. Algo me diz que nisto a vida fica de fora. Fica quando se trata de problemas estéticos ou éticos e fica também e talvez muito mais aqui, no problema de Deus. Outra, relacionada, tem a ver com o problema da racionalidade e/ou dos modelos de racionalidade. Creio que nesta temática é importante o contributo de autores como Leonard Lonergan, que neste ponto concreto conheço muito por alto. Uma terceira tem a ver com as relações e papel da inteligência, sentimento e vontade na apreensão do real. São apenas «suspeitas» de um tema certamente importante que agendarei para pesquisas futuras.

Alef

PS.: Se a alguém interessar, alguns artigos sobre Zubiri e o problema de Deus, ver em The Xavier Zubiri Review, vol. 8, 2006.

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

“O Desidério insiste em reduzir tudo à justificação, ao medir de razões para as crenças. Algo me diz que nisto a vida fica de fora. Fica quando se trata de problemas estéticos ou éticos e fica também e talvez muito mais aqui, no problema de Deus.”

Para si, a ética, a arte, a religião, pertencem à vida a nada têm a ver com a justificação. Claro. Os positivistas pensavam a mesma coisa. Cada qual com a sua. Só que isto é um disparate do tamanho do mundo. A justificação é a coisa mais natural do mundo e aplica-se a tudo. Será razoável acreditar em Deus? Porquê? Será razoável ser anti-racista? Porquê? Será razoável persistir numa relação amorosa que me tortura? Porquê? A justificação não está fora da vida, nem deixa a vida de fora. É a vida irreflectida que deixa de fora o que nos faz humanos. Como Platão pôs na boca de Sócrates, “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Examine-se a vida, em todas as suas dimensões: é tudo o que qualquer filósofo digno desse nome defende. A filosofia não serve para pôr uma cobertura de chocolate em cima das nossas convicções mais queridas. Serve para retirar a hipocrisia da cobertura de chocolate e estudar as nossas convicções mais queridas para ver se são aceitáveis ou não e porquê.

Repare que não me espanta que os crentes em geral não tenham qualquer interesse pela filosofia da religião — a maior parte dos crentes são crentes sem saber muito bem porquê, e não vejo mal nenhum nisso. Como eu disse, eu acredito que a água é H2O, por exemplo, mas se quisesse justificar adequadamente esta crença, não o conseguiria. Portanto, a minha surpresa não é essa. A minha surpresa é a ausência de interesse pelo debate entre os intelectuais crentes. Isso está bem patente no livro “O Regresso do Sagrado” (leia-se a minha recensão na revista Philosophica).

Quanto ao Zubiri, o que está em causa não é tanto desacreditar um filósofo ou outro, mas antes fazer esta pergunta simples: por que razão o debate em filosofia da religião tem de ser feito nos termos de um filósofo em particular? Por que razão temos de aceitar que as cinco vias de Tomás de Aquino são argumentos errados, como Zubiri pensa? Os argumentos de Zubiri são bons? São aceitáveis? Porquê? Não basta que sejam consistentes — a consistência não é garantia alguma de verdade, e nada tem a ver com a validade dos argumentos.

A bibliografia sobre filosofia da religião existe, nela discutem-se os aspectos que apresentei brevemente no meu post e quem estiver genuinamente interessado na área não pode deixar de ler essa bibliografia. E o meu objectivo foi ajudar as pessoas a dar os primeiros passos nesta área — o que não se conseguiria se eu citasse livros de mil páginas. Chama-se a isto terrorismo intelectual e eu conheço-o bem dos meus tempos de estudante em Lisboa. Pelo contrário, o que eu procuro é dar às pessoas as bibliografias introdutórias que lhes permitam pensar por si mesmas e, se quiserem, avançar depois para as bibliografias sofisticadas. Não atiro as pessoas para calhamaços que cumprem o único efeito de as impedir de pensar.

Alef disse...

Caro Desidério:

I.

Diz-me: «Para si, a ética, a arte, a religião, pertencem à vida a nada têm a ver com a justificação.»

Ora bem, não é isto o que eu penso. O que digo é algo «ligeiramente» diferente: a vida não se reduz à justificação nos termos que o Desidério apresentou. A justificação é normalmente algo ulterior aos nossos próprios actos, sendo que ulterior não significa necessariamente «posterior» no tempo. No caso da fé, isso parece-me bastante verdade. Por isso apontava algumas razões possíveis para este «desinteresse» pelos intelectuais crentes em entrar na discussão das provas da existência de Deus. Claro que me parece importante que cada um seja capaz de justificar as suas opções e crenças (e da sua fé ou falta dela), mas isso não significa que apenas quem souber fazê-lo tenha o tal «direito cognitivo» que aludiu. Direi ainda mais alguma coisa sobre a justificação da fé no final.

Quanto a seguir um filósofo particular, já o disse antes: não se trata de seguir este ou aquele, mas de ver se as várias propostas têm sentido. Mais que a pessoa dos filósofos em filosofia contam os seus contributos.

Quanto ao «post», eu não ponho em causa a boa intenção de divulgar para o público um tema a que poucas pessoas ligam ou desconhecem. Mas as minhas críticas não anulam essa boa intenção; apenas chamam a atenção para algumas dificuldades que podem ser resolvidas se o problema for tratado de uma forma que me parece mais adequada. Citei um autor, mas não é o único que chama a atenção para estes problemas.

Uma pequenina nota, a propósito da etiqueta depreciativa do «calhamaço». Quando disse que resumia de mil páginas, dizia antes que se tratava de uma «trilogia sobre a inteligência humana». O primeiro livro da trilogia, «Inteligencia y realidad» tem 285 páginas e máximo de 320 palavras por página (mancha bem pequena). Os restantes («Inteligencia y logos» e «Inteligencia y razón») têm mais de 350 páginas. É a totalidade destes três títulos que perfaz umas mil páginas. Evidentemente, os filósofos não se medem a metro ou a peso, embora haja alguns mais «coelhas» que outros.

II.

Nesta segunda parte deixo mais umas notas soltas e ainda por sistematizar, sobre este tema.

Volto ao tema da justificação no contexto da fé e ao problema da ausência de filósofos crentes na discussão. Como já disse antes, creio que o problema está na forma como o Desidério pretende ver feita a justificação. Quando o Desidério pretende que se justifique a fé em Deus pela mera discussão dos argumentos a favor e contra a existência de Deus, isso parece-me uma caricatura. Já expliquei as razões, quando falei dos sucessivos reducionismos a que se procedeu. Embora na fé seja identificável uma crença (ou mais), a fé não se reduz a uma crença ou uma proposição. Que a fé implique ou suponha a existência de Deus, não se reduz à afirmação da existência de Deus. O Desidério replica pedindo razões ou uma justificação. Mas será que a justificação aqui significa simplesmente trocar razões dialecticamente sobre a existência de Deus? Não me parece. De resto, o que significaria uma razão «satisfatória» ou «boa» para a existência de Deus? Que implicações teria para a fé e para a experiência religiosa? Não será necessário ter em conta modos próprios de expressão da fé que lhe são próprios? Há cientismo, mas não há filosofismo? Enfim, «apenas» questões.

Façamos um pequeno excurso por alguns elementos de teologia cristã, já dentro de uma fé explícita e confessional. Talvez ele ajude a concretizar alguns elementos que ainda não tenho completamente claros quanto ao modo de sistematizar. Nas «Theological Investigations» de Karl Rahner aparece um artigo muito curto (4 páginas) e muito famoso, que leva por título «Reflections on the experience of grace»; curiosamente, até é um artigo de leitura muito simples, ao contrário da média dos escritos deste teólogo. Aí trata do clássico tema de como podemos falar da experiência de Deus e como podemos experimentar a sua acção, aquilo que em teologia cristã habitualmente se chama «graça». Como ponto de partida, Rahner coloca uma série de questões bem interessantes. Eis um extracto:

«Have we ever kept quiet, even though we wanted to defend ourselves when we had been unfairly treated? Have we ever forgiven someone even though we got no thanks for it and our silent forgiveness was taken for granted? Have we ever obeyed, not because we had to and because otherwise things would have become unpleasant for us, but simply on account of that mysterious, silent, incomprehensible being we call God and his will? Have we ever sacrificed something without receiving any thanks or recognition for it, and even without a feeling of inner satisfaction? […] Have we ever fulfilled a duty when it seemed that it could be done only with a consuming sense of really betraying and obliterating oneself, when it could apparently be done only by doing something terribly stupid for which no one would thank us? Have we ever been good to someone who did not show the slightest sign of gratitude or comprehension and when we also were not rewarded by the feeling of having been ‘selfless’, decent, etc.?»

À experiência de perdoar se pode juntar também a experiência do perdão de Deus. No seu livro «Jesus. An Experiment in Christology», Edward Schillebeeckx desenvolve, a propósito da Ressurreição de Jesus um argumento curioso, que, não provando a Ressurreição, é bastante «engenhoso». No particular método de Schillebeeckx, são válidos historicamente os elementos dos evangelhos que sejam «embaraçosos» para a «fama» de Jesus e dos discípulos. É uma espécie de método histórico da desconfiança. Assim, um desses elementos «embaraçosos» é a traição e abandono por parte dos discípulos, isto é, seria pouco verosímil «fabricar» tal elemento se ele não tivesse sido real. Pois bem, prossegue, é evidente que os discípulos abandonaram Jesus e que a morte deste foi para eles motivo de abatimento, remorso, medo, etc. Contudo, pouco depois estes mesmos que antes estavam remordidos, abatidos, pela traição, experimentam-se perdoados, de tal maneira que a sua atitude muda completamente: dão testemunho da experiência de Cristo ressuscitado. Seria possível que tal perdão fosse dado por um morto? Pode alguém dar-se a si mesmo o perdão por uma traição?

Embora algo simplificado, este argumento de Schillebeeckx faz pensar. Como se justifica esta experiência nos moldes que o Desidério exige da discussão dos argumentos da existência de Deus?

E, contudo, há outras modalidades que, sendo ou não «justificação» (haveria que ver), expressam, comunicam e dão «razões» da fé (que não é mera crença). Uma dessas modalidades chama-se «testemunho». Aqui encontramos o «kerygma» ou «primeiro anúncio» apostólico: dão testemunho de ter experimentado que Jesus Cristo está vivo e actua nas suas vidas. Alguns aderem a este anúncio e repetem a mesma experiência de graça e assim sucessivamente, até aos dias de hoje. Facilmente um cristão se reconhece nesta linguagem e outros cristãos sabem do que se fala quando outros o mencionam nestes termos, não apenas de ouvir falar, mas de ter experimentado. Ora bem, aqui coloca-se um problema: há aqui algum tipo de justificação? Eu creio que sim, embora haja o perigo de nos desentendermos sobre o significado desta palavra. Mas será que esta «justificação» é compreensível por quem diz não ter fé ou não aceitar a existência de Deus? Pode a filosofia falar da densidade desta experiência sem a «desmembrar»? Quando alguns filósofos se referem a isto como crença estão de facto a falar do que é essencial?

Possivelmente o Desidério responde-me: «mas a mim o que me interessa é saber se a atitude dos discípulos é justificável». Ora bem, mas suponhamos que um deles dissesse: «Eu vi, experimentei, este é o meu testemunho!». Suponhamos que nada mais acrescentasse que um enumerar das mudanças que esta experiência operou na sua vida. Diante deste testemunho uma pessoa pode dar crédito e «acreditar» (=dar crédito), enquanto outra pode não aceitar tal testemunho. Será o testemunho uma forma de justificação? Um testemunho não provado não tem direito cognitivo? (Tenha-se presente que quem tem fé testemunha fazer a mesma experiência de quem recebeu o testemunho).

Peguemos agora noutro pequeno exemplo. Álvaro de Campos tem um pequeno poema curioso que começa assim: «Todas as cartas de amor são / Ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas. […] As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas». Comento um pouco para a analogia que me interessa: muito embora existam «razões» no amor, para quem não está «por dentro» de uma relação de amor toda aquela linguagem é ridícula, injustificada. É no interior mesmo do amor que se compreende que possa haver sentido naquilo que desde fora não tem grande sentido.

Não será válida a analogia para o campo da fé? Significa isto reduzir a fé ao sentimento, excluir a racionalidade? Não, de modo nenhum. O que me parece é que há que ter em conta também outros elementos que não os puramente «lógicos». A nossa inlelecção não se reduz aos aspectos lógicos e «somos» também sentimento e volição. Há então lugar para razões e para a justificação, mas não se pode reduzir a justificação ao interior de uma única parte de uma «faculdade».

Por outro lado, haveria que ver também o papel da metáfora, da criação artística religiosa. Enfim, notas soltas para futuros concertos…

Alef

Desidério Murcho disse...

Caro Alef

A sua posição é incoerente. Porque ou bem que faz como está agora a fazer: defende a sua posição; ou bem que não a defende. Se a defende, é incoerente porque está precisamente a fazer o que eu digo que é preciso fazer: justificar as nossas opções, ideias, comprometimentos, escolhas. São não a defende, é pura e simplesmente arbitrário.

A sua posição é historicamente inaceitável, pois ignora mais de mil anos de sofisticada reflexão filosófica sobre Deus. Filósofos crentes, do passado e do presente, reflectiram sobre os fundamentos metafísicos e epistemológicos da fé. Você pode não ter qualquer interesse nisso, mas é absurdo declarar que toda essa reflexão é redutora só porque não é o género de reflexão que lhe interessa.

E que género de reflexão lhe interessa? Os autores que tem citado mostram claramente que você está interessado apenas no discurso apologético e exortativo. Tem todo o direito a isso e não digo que isso não é interessante. Só que não é filosofia e não vejo qualquer razão para abandonar a reflexão filosófica tradicional a favor da apologética. A apologética tem o seu lugar, a filosofia tem outro. Pretender reduzir a reflexão filosófica à apologética é inaceitável — e verdadeiramente redutor.

A analogia, a metáfora, e outros recursos linguísticos são efectivamente estudados na filosofia da linguagem. Mas é claro que este estudo nada tem a ver com a apologética. Aposto que não lhe interessa. Porque é óbvio que lhe interessa apenas isto: um discurso que seja uma espécie de música de fundo para as suas convicções e comprometimentos existenciais; quer basicamente afagar a sua alma com hinos bonitos. Só que isso não é filosofia. Claro que não tem de ter qualquer interesse em filosofia — a maior parte das pessoas não tem. Mas acho o cúmulo do desplante declarar que a reflexão filosófica é redutora, só porque não é o tipo de coisa que lhe interessa. Neste aspecto faz-me lembrar algumas pessoas com formação científica, que têm precisamente a mesma mentalidade. Ora bem, eu não tenho problema algum em dizer que me estou nas tintas para isto ou aquilo, mas não me passaria pela cabeça tentar justificar tal escolha dizendo que tal actividade é redutora ou falseadora ou qualquer outro epíteto com que você e alguns cientistas mimam a tradição filosófica.

A sua atitude inscreve-se numa cultura que tem aversão à discussão; que se baseia exclusivamente na erudição oca e na adoração das autoridades e dos “testemunhos”. É uma cultura incapaz de produzir pensamento aberto, crítico, fundamentado; uma cultura incapaz de dialogar com a própria tradição filosófica, que despreza a argumentação por ser opressora, mas aceita sem pensar argumentos falaciosos de autoridade, como se não fossem estes verdadeiramente opressores. É uma cultura incapaz de dialogar com a diferença: você nada tem a dizer a um ateu, porque todo o seu discurso consiste em cantar hinos às suas convicções e comprometimentos religiosos. Pois dialogar com a diferença é ser capaz de discutir argumentos claramente, sem chamar a isso “esgrimir argumentos”. Quem chama à actividade humana de trocar ideias “esgrimir argumentos” é porque tem uma incapacidade radical para dialogar com a diferença. Argumentar é encontrar um terreno que todos podemos aceitar e tentar descobrir que género de compromissos, crenças, atitudes e valores podemos justificar partindo daí — ou seja, partindo do que todos nós aceitamos.

Anónimo disse...

DM, começo por concordar consigo quando refere (28.11.07 17:59): 'Há vários problemas sobre a divindade: se existe; que propriedades tem; (…)’

E quando afirma (30.11.07 1:26): 'O que se discute (...) são as mesmas velhas ideias e argumentos, (...) que Leibniz ou Tomás de Aquino ou Agostinho discutiam.’

E também nisto (30.11.07 18:42): ‘A justificação não está fora da vida, nem deixa a vida de fora. É a vida irreflectida que deixa de fora o que nos faz humanos.’

Mas discordo disto (1.12.07 12:19): ‘Argumentar é encontrar um terreno que todos podemos aceitar e tentar descobrir que género de compromissos, crenças, atitudes e valores podemos justificar partindo daí — ou seja, partindo do que todos nós aceitamos.’

Sobre este ‘todos nós aceitamos’, permita-me que lhe contraponha o que consegui extrair das contingências da minha existência:

- A necessidade de deuses, assim como a aceitação de qualquer revelação oral ou escrita - que nos são transmitidas e se aprendem na infância – não subsistem sem ser alimentadas por novas ou reiteradas necessidades e revelações, em suma, por reconfigurações das crenças primitivas;

- Embora as teologias e as filosofias da crença tentem alimentar as necessidades filosóficas dos crentes e perseguir a inteligibilidade dos enigmas, não têm conseguido atingir uma comunicabilidade argumentativa que os resolva de um modo incontestavelmente aceite e transmissível;

- Parece inútil invectivar quem vive com a crença e o consolo de qualquer sistema da lógica para acreditar em deuses, aceitando a lógica e a necessidade dos argumentos por analogia, ou a dos argumentos dedutivos, ou a da contingência do mundo;

- E igualmente inútil será rejeitar quem, não aceitando essas lógicas e essas necessidades, vai alimentando a crença e o consolo de, ainda assim, tentar entender a sua própria existência. E de se deixar ficar por aí. Até desaparecer. Sem deuses.

Aceitando o que L. Witgenstein afirmou sobre a eficácia de uma explicação (‘uma explicação serve para ser entendida, senão não é uma explicação’) e deixando-me influenciar pelos argumentos de G. Agamben na sua ‘Improbabilidade da comunicação’, resta-me sempre a contemplação das diversas visões do mundo como defende N. Goodman no seu ‘Modos de fazer mundos’.

A favor de um ateísmo, nada melhor, então, do que estas exemplificações: http://www.youtube.com/watch?v=fdVucvo-kDU&mode=related&search=

Anónimo disse...

Corrijo o erro do texto anterior:

Aceitando o que L. Witgenstein afirmou sobre a eficácia de uma explicação (‘uma explicação serve para ser entendida, senão não é uma explicação’) e deixando-me influenciar pelos argumentos de Niklas Luhmann na sua ‘Improbabilidade da comunicação’, resta-me sempre a contemplação das diversas visões do mundo como defende N. Goodman no seu ‘Modos de fazer mundos’ e a apreciação da linguagem, como o faz Giorgio Agamben (1990): ‘Em toda a lamentação, o que se lamenta é a linguagem, assim como todo o louvor é, antes de mais, louvor do nome’ - ’A comunidade que vem’, Presença, 1993, p 48.

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