domingo, 11 de novembro de 2007

As três irmãs górgones

Começo por lançar um desafio ao leitor, que se traduz em duas perguntas:
- Quem escreveu o texto que a seguir se transcreve?
- A que realidade educativa se reporta?

“O ensino transformou-se no reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objectivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma. Em vez disso pontificam as suas duas irmãs – a grande insegurança e a grande confusão.

Experimentam-se continuadamente modelos novos. A escola regressou ao princípio da economia directa. O desconhecimento da língua e da literatura nacionais pode ser compensado por educação física, e as lacunas em matemática por religião e moral (…). Tudo isto fez da escola um mercado, onde se negoceiam notas e onde os alunos regateiam com os professores pontos decimais. O facto de tudo poder ser combinado com tudo, de tudo ser permutável e passível de ser compensado, conduziu à consagração da terceira irmã górgone: a grande aleatoriedade.
O seu domínio fez com que se esfumasse a ideia do valor cultural impermutável a cada disciplina, dependente do respectivo conteúdo. O princípio fundamental de qualquer ordenamento hierárquico dos diversos conteúdos do saber foi posto de parte: a distinção entre o acessório e o fundamental (…)

(…) as escolas padecem de uma contradição atormentadora: é suposto os alunos aprenderem o mesmo em todo o lado para assegurar que as habilitações escolares – com destaque para as de acesso ao ensino superior – tenham um nível ao menos aproximadamente homogéneo. No entanto, cada (…) define a sua própria política escolar (…)

Perante estes deprimentes resultados, os representantes da burocracia cultural recorrem a um meio de eficácia comprovada (…) na manutenção de ficções, na negação da realidade e no esforço de ignorar as evidências. Os ministros foram, neste caso, ao ponto de manter em segredo investigações científicas que comparavam entre si o aproveitamento escolar dos vários tipos de escola (…) em poucas áreas se mente tanto na política educacional e escolar.
Para mais, o problema de toda esta concepção reside num erro simples que qualquer criança saberia apontar com a mesma facilidade que a nudez do rei: a igualdade de oportunidades no início da competição escolar é confundida com a desejada igualdade dos resultados no seu final (…)

Nesta situação os ministros (…), cujos representantes mal devem conhecer a situação nas escolas por experiência própria retiraram aos professores a maior parte dos meios disciplinares, de modo que agora existe uma desigualdade de armas absoluta. Castigos, como repreensões, admoestações, notificação aos pais e – no caso de faltas graves – a ameaça de exclusão ou a exclusão efectiva da escola encontram-se tão cerceadas por regulamentos, requerimentos, votações e reuniões escolares que qualquer professor prefere prescindir delas: com todo este aparato, ele castigar-se-ia sobretudo a si próprio. Como os alunos estão a par disso, ainda fazem troça dele.
Ora, como os professores são oficialmente culpados pelos seus próprios problemas, são empurrados para a via da mentira; fazem segredo das suas próprias dificuldades. Um discurso público (troca de pensamentos e opiniões) em que os seus problemas pudessem ser descritos não existe. Deste modo quebra-se a solidariedade entre os professores, que passam a concorrer uns com os outros com uma mentirosa política de imagem pública. Fingem-se bem sucedidos e fazem de conta que não têm problemas. Na realidade, muitos de entre eles encontram-se profundamente desmoralizados (…).

Em resumo, as escolas estão num estado tão lastimável que a miséria permanece completamente desconhecida, visto a sua dimensão ser inconcebível.
Isto não significa que não existam, aqui e acolá, escolas funcionais, directores empenhados e professores bem sucedidos, assim como alunos medianamente felizes. Talvez até existam bastantes. Mas escolas assim já não são a regra, passando as outras por excepções (…)”.

Voltando às perguntas que dirigi ao leitor no início do texto, dou, agora, as respostas.
- Não, não é português o autor destas palavras. É o alemão Dietrich Schwanitz (1940-2004) (na fotografia ao lado).
- Não, não é Portugal a realidade educativa em causa. É a alemã, de finais do passado século XX, da actualidade, portanto.

Com este exercício quererei eu fazer passar a ideia de que a realidade educativa portuguesa não está, afinal, tão debilitada quanto algumas vozes fazer crer? Que está, digamos assim, de acordo com outras realidades educativas que nos superam em estudos credenciados de avaliação internacional (por exemplo, no Trends in International Mathematics and Science Study, 2003; no Programme for International Student Assessment, 2000, 2003 e 2006; e no Progress in International Reading Literacy Study, 2001, 2006)?

Não, não quero dizer isso. O que quero dizer é que, no presente, existem problemas que, com maior ou menor incidência, afectam diversos sistemas de ensino ocidentais. E alguns desses problemas nem sequer são novos, atravessam os tempos desde a Antiguidade. Mas não justifica o que acabei de escrever, que nada se faça para os resolver ou minimizar.

Termino, pois, com um toque de optimismo que a História da Educação autoriza e que antevejo nas palavras, que alguns dirão pessimistas, de Schwanitz: “O mito e a cosmologia ensinam-nos: quando o desenvolvimento bate no fundo, é tempo de arrepiarmos caminho. A noite mais longa é, ao mesmo tempo, o solstício; após a descida ao inferno segue-se a ressurreição. Por isso são horas de acabarmos com as três irmãs que são a grande insegurança, a grande confusão e a grande aleatoriedade. Uma das górgones mitológicas é a Medusa, cujo olhar é mortífero; se a confrontarmos com um espelho, ela mata-se a si própria. Comecemos, pois, por aí.”

Referência da obra citada:
- Schwanitz, D. (2004). Cultura: Tudo o que é preciso saber. Lisboa: Dom Quixote, páginas 25-30.

Imagens:
Medusa - http://www.internenes.com/sorpresa/silver/imsilv/medusa2.gif
Dietrich Schwanitz - http://estaticos01.cache.el-mundo.net/elmundolibro/imagenes

7 comentários:

Anónimo disse...

É lixado quando se entra pela História da Educação adentro e se percebe que os novos problemas são velhos problemas. Ajuda a relativizar, né?
Talvez seja mais conveniente começarmos a melhorar o nosso próprio desempenho em vez de andarmos a atirar culpas para cima dos professores...sobre problemas que são estruturais.

Anónimo disse...

Ja toda a gente sabe isso, mas nunca e' demais frisa-lo, porque ha muitos cabecas de atum! Em Inglaterra a percentagem de alunos com 11 anos que nao sabe ler ja e' maior do que na India. E ninguem quer dar aulas porque e' super dificil aturar os alunos. Voces proprios ja puseram aqui posts sobre aquilo que se ensina na disciplina de fisica no Uk, e sobre os exames, que sao completamente ridiculos! Alias, nos ultimos 10 anos o numero de alunos a estudar fisica decresceu 40%! Houve varios departamentso de fisica e quimica a fechar, no outro ano tentaram fechar o de Sussex que ate tinha tido para la uns premios nobelzecos...
Eu nao me parece que Portugal esteja assim tao mal quando comparado com outros paises, e ate conheco alunos de doutoramento que vao la para fora e que dizem que se sentem bem preparados quando comparados com alunos que se formaram em escolas estranjeiras de prestigio.
Claro que podiamos melhorar muita coisa e se calhar estamos a piorar...
luis

Anónimo disse...

É por estas e por outras que o pessoal se mete a perguntar o porque da supremacia académica americana, o porquê da evolução da india, andamos na europa a discutir tretas que já deviam estar resolvidas à decadas.
È mais que tempo de resolver estes problemas estruturais, o primeiro passo é extinguir o actual ministério da educação e criar uma alternativa com pessoas novas e capazes, dar ao ensino aquilo que ele precisa, um rumo, sem demagogias, sem brucracias sem pseudo-pedagogias.
Tem que se criar nesta juventude o conceito de saber, responsabilidade e empreendimento, não sabe, não passa, não é competente não termina o curso, não passou nos exames, temos paciencia não entra na universidade, e estas estão cheias de crianças adultas, que nem mentalidade nem conhecimento básico têm para estar lá, muitas vezes porque marraram para 1 exame de 2 horas que fez média com 1 nota interna quase sempre adulterada em relação aos conhecimentos.
Menos teologia e mais ciencia, menos projectos de turma ou como se chama, no meu tempo era area escola e mais portugues e mais matemática, a cidadania é em casa que se deve dar e se os país não a dão que sejam obrigados a frequentar aulas da mesma.
Quanto ao abandono escolar:
Avaliação rigorosa e atribuição de cartão de contribuinte apenas aos finalistas do 9 ano, sem o qual não se poderia arranjar trabalho, comprar casa, carro, empréstimos, etc..
E por ultimo, atenção às escolas de provincia, muitas vezes boas em condições mas péssimas em pedagogia onde abundam as amizades suspeitas entre docentes por cargos e lugares nas escolas e onde professores repartem horarios como leoes repartem comida entre si e ienas.
Mais autonomia nas escolas com o modelo vigente deve ser gozarem com o contribuinte..

Anónimo disse...

Talvez abrindo muitas escolas de futebol, em que também se ensinaria a lêr e uma matemática básica, seja a solução.Se em simultâneo também se abrirem escolas para actores (e actrizes) de telenovela seria um sucesso garantido.
Quem quiser estudar outras matérias (mais avançadas?)pode sempre ir para o estrangeiro (muitos já o fizeram e muitos mais o farâo)ou se não tiverem posses podem ingressar num seminário da ICAR.
Temos que ser coerentes com a nossa tradição, pois portugal foi (talvez) o único país (o 1º Globalizador) Colonialista que não Tem escolas Portuguesas em lado algum.
O Fado é que Induca e o futbol Instroi!
Quanto aos professores que não quiserem aprender artes marciais, recomendo Tranquilizantes e coletes à prova de bala, mas a melhor opção será sempre baixas muito prolongadas.

Anónimo disse...

Podia-se exportar para lá o Dério. Com uma cabeça daquelas...

D. Abastado Flato

Anónimo disse...

chiça!

Anónimo disse...

Este post e muitas das polémicas que se têm instalado neste blog são bem o retrato da nossa sociedade: anda meio mundo a inventar estratégias para fazer gato sapato da outra metade. Desde que nascemos. Somos uma sociedade marsupial que saltita entre o mais bacoco primitivismo e o mais engalanado futurismo. E, nestas trajectórias aleatórias, só muito poucos de nós temos direito ao conforto dos marsúpios. Desde que este mundo nos pariu que nos incutem o respeito, a educação, as boas maneiras e a moral e a ética. Mas o que pretendem é manter-nos domésticos. E mansinhos!

Está tudo farto disto. Podemos juntar a maior razoabilidade, a maior ponderação, racionalidade e o mais que o género humano tenha como plausível que o outro lado tem sempre a escapatória: AH! Mas eu... É justo que cada um tenha direito à sua opinião, mas como dizia acertadamente um outro comentador: quem não gosta põe na beira do prato, mas no seu prato! Injusto é empilharem os restos no nosso prato e, como se não bastasse, dizerem que nos alimentam. Não há pachorra. Já não há cauda que chegue para estendal de tanta roupa que precisa de ser lavada.

São de tão mau gosto as bandeirinhas da república na varanda, como uma revolução tecnológica que só inclua os portáteis e os acessos à net. É bonito o enraizamento cultural, tanto ou mais que trazer o mundo no bolso. Mas é curto definir patriotismo com futebol e novas tecnologias com a potenciação da expressão individual num universo de novas oportunidades. Para o que temos de palmilhar, essas, são cenouras muito raquíticas.

Os SENHOURES que podem, aqueles que trauteiam concertos para o violino de quem lhes apetece e perguntam: não são lindas as minhas bolas de sabão? os que gostam de adormecer decorando Schopenhaur como se fosse tabuada ou, aqueloutros que só sabem cuspir coisas do género, "se as risquinhas fossem escarlate... isso sim, isto era ALTA ARTE", esses senhoures têm que fazer mais. Muito mais, por eles e pelos outros, senão, bardacoisa para os SENHOURES que nós já estamos enjoados deste buffet.

Realmente parece haver muita gente para quem o tempo não existe. Esquecem-se que o povão diz que tempo é dinheiro e nós estamos no século XXI. VINTE E UM. O tempo das macacadas já lá vai e quando queremos palhaçadas procuramos o circo. A maioria de nós não quer cascatas de ouro, ou paraísos além... queremos um século XXI que calcine definitivamente a manipulação e a injustiça. Para atingir esses objectivos é necessária uma cultura de mérito e responsabilidade. Promova-se a justiça que logo teremos a igualdade de oportunidades e o empenhamento e solidariedade de todos.

Se amanhã, nestas caixas de comentários, ler coisas do tipo "Ai que me doem tanto as minhas costas" também me vou sentir culpado disso, mas é que, há tantas gerações que andamos a engolir sapos, que um dia destes já não falamos com o manejo da língua, falamos com as membranas interdigitais dos ditos cujos.

Artur Figueiredo

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