sexta-feira, 23 de novembro de 2007
BERGSON, EINSTEIN, COIMBRA E O PROBLEMA DO TEMPO
A propósito do aniversário do livro principal de Bergson recupero um texto meu antigo que foi publicado num volume de actas de homenagem a Leonardo Coimbra. Assim fica acessível na Net. Não volto a colocar textos longos tão cedo, prometo.
No ano de 1922, na revista "Águia", Leonardo Coimbra publicava uma curta recensão de um livro, acabado de sair, da autoria de um filósofo que ele muito admirava, o francês Henri Bergson. A obra, intitulada "Durée et Simultaneité. À propos de la theorie d'Einstein", valia, tal como Coimbra reconheceu imediatamente, uma boa polémica, pois recusava a interpretação corrente da teoria da relatividade restrita, nomeadamente os aspectos relacionados com a descrição do tempo físico. A crítica de Bergson a Einstein estava e está, no essencial e do ponto de vista científico, errada, como sabem hoje todos os físicos. É notável que um filósofo, português no caso, se tenha logo apercebido, no essencial, do erro. Vejamos em súmula os argumentos esgrimidos.
Segundo o princípio da relatividade, na versão proposta por Einstein em 1905, todas as leis da física têm a mesma forma em todos os sistemas de inércia. São factos experimentais a existência de uma regulamentação no mundo físico, de referenciais - chamados de inércia - onde essa legislação é particularmente simples e da teoria da relatividade, que permite consistentemente passar de uns para os outros. Dado um sistema de inércia, é também de inércia qualquer outro com uma velocidade constante em relação ao primeiro.
Uma consequência do princípio da relatividade é que as leituras do tempo efectuadas por dois observadores, Henrique e Alberto digamos, em dois sistemas de inércia distintos são diferentes. O tempo decorre a ritmo diferente para Henrique e Alberto. Os relógios em movimento atrasam-se, isto é, o intervalo de tempo entre dois acontecimentos registados pelo observador em movimento, Alberto, suponhamos, é menor do que a correspondente quantidade lida por Henrique, que está parado. O tempo para Alberto corre mais lentamente. Trata-se do fenómeno da dilatação do tempo, suspeitado por Lorentz, colocado em bases sólidas por Einstein, confirmado nos anos 40 por experiências de detecção de muões da radiação cósmica e reconfirmado recentemente por meio de relógios de alta precisão a bordo de aviões a jacto. O efeito é pequeno mas observável e, portanto, real.
Bergson baseia-se na ideia da reciprocidade dos dois observadores para concluir que, se o tempo de Alberto está dilatado em relação a Henrique, o tempo de Henrique também deve estar dilatado em relação a Alberto. Para evitar a confusão, deveria existir um tempo igual para todos, o tempo das consciências, que está para além das aparências experimentais. Os dois observadores enganar-se-iam simplesmente quanto à duração do tempo do outro. O físico francês Paul Langevin propêos em 1913 um paradoxo, chamado "paradoxo dos gémeos" ou "dos relógios", aproveitado por Bergson para desenvolver uma discussão que sabemos hoje estar viciada. Suponhamos que Henrique e Alberto são irmãos gémeos. Se Alberto parte numa nave espacial com uma velocidade constante, muito próxima da velocidade da luz, em direcção a uma estrela distante, por exemplo Vega, inverte a marcha quando chega à estrela e regressa com a mesma velocidade da ida, vai no fim encontrar na Terra o seu irmão Henrique já morto, quer dizer, não o vai encontrar. Dois anos para Alberto correspondem a duzentos anos para Henrique. Até aqui o facto pode ser estranho mas ainda não é paradoxal. O paradoxo provém da aplicação do argumento da reciprocidade: o gémeo Henrique que ficou pode afirmar, pelo menos enquanto for vivo, que o irmão é que viaja, e o gémeo Alberto, por sua vez, pode retorquir que é ao contrário, porque ele está parado em relação à nave e vê a Terra afastar-se. Concluindo: cada um, em vida, pode reclamar que o outro é que está morto, sendo a situação perfeitamente caricata.
Leonardo Coimbra foi, além de filósofo, um divulgador de ciência prendado. Num texto de 1921 sobre "A ideia de tempo" substitui os irmãos por mãe e filha, escrevendo de forma pitoresca: "Seria a autêntica fonte da juventude, podendo a jovem mulher que partisse num sistema regressar ao fim de dois anos e encontrar na Terra, onde deixara um loiro bebé, bisnetos, que, desconhecendo-a, dela ainda se enamorassem." Coimbra devia estar a fazer uma adaptação em ficção científica da trama de "Os Maias"... De qualquer modo, o conhecido físico e divulgador George Gamow, a quem se reconhece um notável sentido de humor, não conseguiria ilustração melhor para expressar uma possível concretização da utopia da longevidade, que desde os tempos mais remotos tem perturbado alguns membros da espécie humana.
Vejamos como Coimbra reage às afirmações de Bergson sobre o tempo medido por dois observadores em movimento. Fornece duas razões para não acreditar em Bergson, a saber:
"1.o porque falando do tempo físico é ele que determina a consciência e não esta que o marca. De modo que Pedro e Paulo [os nomes de Alberto e Henrique no texto de Bergson] devem ser ambos a simples percepção dos registos dos contadores; 2.o porque Bergson se coloca no único caso dum sistema S e dum sistema S', que são em perfeita reciprocidade, desprezando as acelerações."
É, de facto, verdade. Quanto ao primeiro quesito, a questão entra no domínio da fronteira, quase sempre difusa e imprecisa, entre ciência e filosofia. O que é o tempo? Existe só um ou existe mais do que um tempo? Em que medida os tempos físico e psicológico diferem e, se diferem, qual é a respectiva relação? Parece que não há uma diferença fundamental de comportamento entre os relógios simples que são alguns sistemas naturais e esse relógio complexo que é o homem. O tempo físico que marca um sistema termodinâmico marca também o cérebro e a consciência. Se um sistema em movimento experimenta o fenómeno da dilatação do tempo, então também o ritmo dos processos biológicos, incluindo os que estão envolvidos no funcionamento da mente, se deve atrasar em conformidade. O tempo dos seres vivos será tão físico como outro qualquer porque a maquinaria de que a vida é tão física como outra qualquer.
Quanto ao segundo quesito, ele é apenas científico. O paradoxo dos gémeos fica mesmo eliminado quando se nota que não existe, no caso em apreço, a reciprocidade pretendida por Bergson. Os dois sistemas onde vivem Henrique e Alberto coincidem inicialmente. Para voltarem a coincidir, tem a nave espacial primeiro de acelerar, depois retroceder e, finalmente, travar à chegada. A Terra pode, em boa aproximação, ser considerada um sistema de inércia, mas a nave não o é de modo nenhum. As observações nos dois sistemas não têm de ser equivalentes. Não pode o viajante pretender que a Terra, o Sol, a estrela Alfa do Centauro, e todo o resto do Universo se moveram, enquanto ele esteve parado e quieto. Se só existisse a Terra e a nave, o argumento da reciprocidade valeria, mas o seu ponto fraco é que, quando se inverte a situação dinâmica, tem de se supor que, além da Terra, todo o Universo está a fugir da nave, o que é científica e filosoficamente desconfortável. Alberto experimenta de resto, no seu próprio corpo, as acelerações e as travagens. Henrique, que fica em Terra, envelhece mais rapidamente, acabando por morrer, enquanto o irmão gémeo lhe pode teoricamente sobreviver muitos anos (teoricamente porque viagens com a velocidade pretendida são impossíveis com a tecnologia actual). Não há, assim, paradoxo nenhum. Einstein e Coimbra têm razão e Bergson está errado ao pretender que a dilatação do tempo é inobservável.
Não é necessário, como por vezes se diz, invocar a teoria da relatividade geral, que trata de sistemas não inerciais, para esconjurar o paradoxo dos gémeos. A teoria da relatividade restrita pode tratar de todos os movimentos, mesmo acelerados, desde que observados a partir de sistemas inerciais, e o movimento do gémeo-astronauta, embora acelerado, pode ser analisado do interior do sistema inercial terrestre.
Vale a pena analisar com mais algum pormenor o desenrolar histórico da polémica entre Bergson e Einstein, para desembocar na decisão experimental recente, a qual, se o raciocínio não bastasse, serviu para mostrar que as asserções de Bergson sobre o tempo relativista devem ser tomadas como um "equívoco de um homem de génio" (a expressão é de Coimbra). Tal descrição servirá ainda para mostrar as relações de influência mútua, mas nem sempre directa e clara, entre ciência e filosofia.
As ideias relativistas de Einstein, nomeadamente o conceito de interligação do espaço e do tempo, provocaram ampla discussão tanto entre os físicos como entre os filósofos. Aliás, no início do século XX, a distinção entre uns e outros não era tão nítida como hoje, quando os espécimes de cada fauna se refugiam em nichos ecológicos bem específicos. Hoje a ciência é aquilo que um cientista faz, enquanto a filosofia é aquilo que um filósofo faz. No início do século, nem toda a gente era assim arrumada. Por exemplo, Poincaré e Russell tinham tanto de cientistas como de filósofos. Henri Poincaré quase chegou à relatividade antes de Einstein mas também dissertou sobre "O Valor da Ciência", e Bertrand Russell foi autor dos "Principia Mathematica" mas nunca achou estranho nenhum tema do conhecimento humano. Atente-se ainda, a meio do século, no caso paradigmático de Niels Bohr, cuja ciência e filosofia floresceram a par, com benefícios e malefícios mútuos.
As ideias de Einstein foram bem menos controversas entre os físicos, que rapidamente as aceitaram, do que entre os filósofos, em cujo seio se verificaram algumas reacções virulentas, como é ilustrado pela intervenção de Bergson. Em Portugal, por razões que os historiadores e sociólogos haverão de esclarecer melhor, quase não havia cientistas na época. (Um parêntesis para perguntar: tendo havido algum movimento literário e cultural no século XIX, por que razão ele não foi contemporêaneo de desenvolvimento científico?). A recepção inicial de Einstein foi efectuada entre nós quase exclusivamente por filósofos. David Gagean e Manuel Costa Leite já chamaram a atenção para esse facto, que tem algo de singular no panorama europeu. Por vezes, a dificuldade da compreensão da ciência reside na linguagem hieroglífica em que vem embrulhada, nomeadamente o quase sempre inevitável formalismo matemático. Mas a matemática da relatividade é tão simples que bastam conhecimentos de nível liceal para a manejar. Assim, o autor de "O Criacionismo" foi o primeiro em Portugal a escrever as equações da relatividade restrita, salvo erro em 1912. Haveria mais tarde de as repetir em várias ocasiões, enfatizando sempre a simplicidade e a elegância da matemática relativista e do pensamento que lhe está associado.
Bergson não pretendeu, honra lhe seja, mudar um símbolo sequer da matemática de Einstein. O que ele quis modificar, na boa tradição da filosofia, foi a interpretação. Aqui encontra-se uma diferença de âmbito entre a ciência experimental e a filosofia. A primeira trata de quantidades e relações entre quantidades, sendo tanto as quantidades como as respectivas relações passíveis de observação, e a segunda de ideias e relações entre ideias que se desenvolvem no intelecto. Note-se que também Einstein foi, à sua maneira, filósofo: também ele assumiu uma posição algo semelhante à de Bergson, quando não negou um sinal que fosse da matemática da mecânica quântica, mas recusou a interpretação operacional fornecida por Bohr e pela sua escola de Copenhaga, sobrepondo assim as obsessões do intelecto às simples constatações sobre o funcionamento do mundo. Até aqui, não há nada de errado nem em Bergson nem em Einstein. Contudo, Bergson, partindo de uma ideia sobre o mundo - a ideia metafísica de que o tempo existe ("dura") dentro de cada ser pensante - acabou por se colocar no lugar e papel do cientista exacto, ao não renunciar ao formalismo matemático e ao fazer nessa base previsões sobre o comportamento do mundo. Embrulhou-se, caindo implicitamente no tempo absoluto de Newton, um tempo único que corre de igual modo para todos os observadores, um tempo que nega a característica fundamental do tempo metafísico, que é o devir, a mudança, a irreversibilidade. Esqueceu à chegada o seu ponto de partida, o tempo psicológico, desigual conforme os observadores e até, em condições diferentes, desigual para o mesmo observador (por vezes o tempo voa, enquanto noutras ocasiões custa a passar). O esquecimento, a perda de informação, é, de resto, um dos sinais do tempo psicológico. Leonardo Coimbra não compreendeu o que se tinha passado na cabeça de Bergson e até afirmou, um pouco imaginativamente, que o tempo de cada observador da relatividade vinha em abono do tempo individual de Bergson. Conseguiu ser mais bergsoniano do que Bergson...
Convém referir que Einstein e os seus seguidores refutaram consistentemente as críticas de Bergson, impedindo qualquer regresso do tempo universal e absoluto. Um dos maiores defensores da teoria da relatividade foi o filósofo e matemático Bertrand Russell (tem até, traduzido em português, um livro intitulado "O ABC da Relatividade", que fez época). Russell chegou a atacar o intuicionista Bergson de modo galhofeiro quando disse que "a evolução culminou por um lado no intelecto, que encontrou o seu desenvolvimento completo nas matemáticas e, por outro lado, no instinto, que está particularmente desenvolvido nas abelhas, nas formigas e em Bergson" . Contam as más línguas que o dito se deveu à suspeição por Russell de que as ideias de Bergson estavam a atrair o seu colaborador dos "Principia", Alfred Whitehead.
Bergson interpelou Einstein criticamente quando, em 1921, o sábio alemão visitou Paris e proferiu conferências no Collège de France e na Sociedade Francesa de Física (a Academia dos Imortais não se dignou recebê-lo!). Um físico einsteiniano (hoje, claro, somos todos), d'Abro de seu nome, redigiu e publicou em 1927 uma resposta formal a Bergson. Mas, apesar disso, o Prémio Nobel da Física só foi atribuído tardiamente a Einstein, em 1921, 16 anos depois da relatividade, tendo a Comissão Nobel deixado claro que se tratava de recompensar a teorização do efeito fotoeléctrico, proposta também em 1905, e não a teoria da relatividade. Um cientista sueco, Arrhenius, julgou até conveniente referir em público, aquando da cerimónia de atribuição do prémio, em 1922, que a relatividade era matéria epistemológica, discutida nos círculos filosóficos, tendo destacado, para que constasse, o nome de Bergson. O prestígio filosófico teve, portanto, a sua influência na avaliação do mérito científico.
Einstein nunca tomou a discussão com Bergson como um caso pessoal. Chegou a integrar com ele um Comité de Intelectuais ligados à Sociedade das Nações, cujo programa almejava a construção da paz (a história haveria de mostrar que todos os esforços nesse sentido saíram baldados). Mas, sobre a compreensão que Bergson fazia da física, afirmou um dia simplesmente: "Gott verzeih Ihm!" ("Que Deus lhe perdoe!"). Como que a dar razão a Einstein, os modernos editores das obras completas de Bergson, nos anos 70, resolveram não incluir "Duração e Simultaneidade". As obras completas ficaram deste modo evidentemente incompletas...
O historiador de ciência e filósofo norte-americano Milic Capek tentou nos mesmos anos 70 reabilitar o pensamento de Bergson sobre a relatividade, naquilo que ele teria de reabilitável. Devotou por isso um capítulo do seu livro "Bergson and Modern Physics- A reinterpretation and reevaluation" a discutir o assunto, dizendo que Bergson, pesem embora as suas contradições, tinha muitas vezes razão e que d'Abro não o compreendeu bem. É a isso que se dedicam alguns historiadores de ciência obstinados: descobrir alguma claridade na obscuridade mais cerrada. Mas, com a preocupação de defender a sua dama, Capek esqueceu-se de que em física existem afirmações sem duas interpretações, nomeadamente as que prevêem categoricamente o resultado de uma experiência. As afirmações das ciências físicas, por definição, são falsas ou não conforme o juízo concludente da experiência. Segundo Popper (um realista admirador de Russell e Einstein, a cujo patronato científico muitos cientistas profissionais gostam de se acolher), as teorias podem ser dadas como falsas mas nunca como verdadeiras. A experiência dos relógios foi realizada na década de 70, quando um físico levou um relógio atómico a bordo dum avião a jacto numa viagem à volta do globo e depois o comparou com um relógio parado. Não se tratou de uma volta ao mundo em 80 dias, onde se ganhou tempo com os fusos, mas de uma volta ao mundo em algumas horas, onde se ganhou uma pequena fracção de segundo devido à relatividade. O fenómeno é real: o relógio em movimento atrasa mesmo. Reside aqui uma diferença de âmbito entre a ciência e a filosofia: as duas, embora companheiras, encontram delimitação no juízo da experiência aceite sem contestação pela primeira e não considerado muito limitativo das lucubrações da segunda. Ninguém espera, com efeito, que a experiência decida que um certo sistema filosófico deva ser eliminado, por falso, e substituído por outro. Ciência e filosofia estão ligadas, num casamento que nem sempre tem sido bem sucedido mas para o qual não existe possibilidade de divórcio.
O problema do tempo pode assim servir de pretexto para assinalar algumas fronteiras entre ciência e filosofia. No entanto, a forma como a discussão entre os bergsonianos e os einsteinianos foi conduzida esconde o essencial do problema do tempo. A questão fundamental envolve um paradoxo muito maior que o dos gémeos até porque não foi até agora resolvido com o agrado geral. Acontece que a mecânica relativista, assim como a mecânica newtoniana ou a quântica, não conseguem explicar a origem da irreversibilidade temporal que encontramos nos fenómenos naturais. As opiniões sobre o tempo dividem-se. De um lado podemos colocar Bergson com o seu "tempo-duração", ligado à intuição dos homens, e do outro Einstein com o seu "tempo - eternidade", ligado inextrincavelmente ao espaço e à matéria omnipresentes. O tempo de Bergson é, reconheçamos, bem mais temporal do que o de Einstein.
Para Bergson, o "tempo é invenção ou não é absolutamente nada" , querendo por invenção significar mudança, inovação, criação. Para Einstein, "o tempo é ilusão" , querendo significar que a distinção entre passado e futuro é espúria do ponto de vista da física dos processos fundamentais. Reside aqui o verdadeiro problema do tempo, problema que ainda hoje persiste e que é atacado, embora de prismas diferentes, tanto por físicos como filósofos. No quadro da relatividade, que é parte do nosso actual corpo de ciência, o tempo pode ser medido com resultados diversos por cada observador mas flui reversivelmente para todos. Quer dizer, não existe para ninguém diferença essencial entre o ontem e amanhã. Da vida quotidiana sabemos, porém, que existem um ontem e um amanhã e que estes são, costumam ser, radicalmente diferentes. Recordamo-nos do ontem mas não do amanhã (só o Padre António Vieira escreveu a "História do Futuro"). Esquecemo-nos do ontem mas não do amanhã. O que vem a ser afinal o tempo?
Da sua experiência pessoal concreta, sabe cada ser humano que o tempo é mais a diferença entre o ontem e o amanhã do que o pano de fundo da eternidade. Um tempo eterno é a ideia de S. Tomás de Aquino, mas já não de S. Agostinho para quem Deus não teria esperado um tempo infinito para a certa altura e de repente criar o mundo. Tê-lo-ia criado, de facto, mas antes do mundo haveria um Deus intemporal (a relatividade, com a ideia da indissociabilidade do espaço-tempo, teria vindo nos tempos modernos fornecer argumentos a favor de Santo Agostinho, se uma validação desse tipo e a essa distância fizesse algum sentido). Leonardo Coimbra conta uma história curiosa sobre a definição de tempo como aquilo que fica depois de se ter retirado tudo, matéria e espaço incluídos:
"Lembramos um velho professor de Mecânica que começava as suas lições universitárias por convidar o curso a imaginar um comboio deslizando na linha, dizendo depois solene: 'suprimam o comboio, a paisagem, a linha, o solo, etc., o que fica?' E o curso, perplexo, debalde tratava de pensar o que ficaria. Depois duma pausa misteriosa, era o professor que deste modo respondia: 'O Tempo!'."
A relatividade impede na prática o isolamento deste suposto tempo - cenário, remetendo-o para a história das ideias científicas.
Como se vê, a questão do tempo assume um papel central na discussão das fronteiras da física com a filosofia, mostrando como uma entra no território da outra. O astrónomo inglês Arthur Eddington fez notar: "Em qualquer tentativa para estabelecer uma ponte entre os domínios da experiência que pertencem aos lados espiritual e físico da nossa existência, o tempo ocupa a posição chave" .
Existem, como se disse, na história da filosofia e da ciência duas posições antagónicas sobre o tempo, que podemos associar às filosofias de Bergson e de Einstein, e que passamos a substanciar. A primeira procura legitimar o tempo irreversível, por a julgar a única macroscopicamente aceitável, e a segunda elimina a noção de tempo - mudança por a julgar ilusória. Bertrand Russell está definitivamente do lado de Einstein: "Num certo sentido - mais fácil de sentir do que de exprimir - o tempo é uma característica não importante e superficial da realidade. O passado e o futuro têm de ser reconhecidos como tão reais como o presente e uma certa emancipação da escravatura do tempo é essencial para o pensamento filosófico." Acrescentou Russell em 1921: "É um mero acidente que não tenhamos qualquer memória do futuro"(...) "Aperceber-se da irrelevância do tempo é o portão da sabedoria".
A formulação mais radical deste pensamento foi talvez aquela utilizada por Einstein, numa carta à família do seu grande amigo Michael Besso, com quem trocou ao longo de anos interessantíssima correspondência científico - filosófica: "Michael precedeu-me por pouco, ao deixar este mundo estranho. Isso não tem qualquer importância. Para nós físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma ilusão, ainda que persistente". Em várias cartas a Besso encontra-se a insistência de Einstein na reversibilidade dos fenómenos fundamentais e a ênfase na natureza acidental da irreversibilidade dos fenómenos complexos protagonizados por uma multidão de partículas.
Mas Bergson, por outro lado, é categórico: "Do tempo - invenção a física não consegue dar conta". E explanou em "A Evolução Criadora": "O Universo dura. Quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo, melhor compreendemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo". Porque é que a física não consegue dar conta do tempo, como "elaboração contínua do absolutamente novo"? Acontece que o tempo irreversível não aparece nas equações da física microscópica mas apenas na termodinâmica, que por sua própria natureza é macroscópica e, portanto, supostamente redutível. Muita boa gente defende ainda hoje a tese de Einstein de que a irreversibilidade é particular e casual, pois se deve a condições no início muito especiais e assimétricas. Por exemplo, de um frasco de perfume que seja aberto num canto duma sala libertam-se triliões e triliões de moléculas que fazem, ao afastar-se, com que o cheiro seja sentido ao fundo da sala (antes não havia cheiro e depois passa a haver: a história conta o aparecimento do odor). As moléculas não voltam, pelo menos em massa, à boca do frasco de onde saíram. Mas Einstein insiste que a concentração inicial de moléculas no frasco é artificial e forçada. Uma vez atingido o estado de equilíbrio - o cheiro do perfume espalhado por toda a sala - deixa, mesmo num sistema complexo como esse, de haver história e, portanto, de haver tempo. O começo do equilíbrio é o fim da história. O filósofo neo-positivista Reichenbach, nos anos 50, chamou a atenção para o facto de o devir, a irreversibilidade, ter necessariamente de aparecer nas equações da física matemática e não apenas ser uma intuição fluida, um pensamento vago ou uma interpretação discutível:
"Não existe nenhuma outra maneira para resolver o problema do tempo sem ser por meio da física. Mais do que qualquer outra ciência, a física tem-se preocupado com a natureza do tempo. Se o tempo é objectivo, a física devia ter descoberto esse facto. Se existe devir, o físico tem de o saber; mas se o tempo é apenas subjectivo e o Ser é intemporal, o físico deve ter sido capaz de ignorar o tempo na sua construção da realidade e de descrever o mundo sem a sua ajuda... Constitui um empreendimento sem esperança procurar a natureza do tempo sem estudar a física. Se existe uma solução para o problema filosófico do tempo, ela está escrito nas equações da física matemática".
Como resolver essa tensão entre uma filosofia que quer o tempo e uma ciência que o recusa ou, se o procura, não o encontra? Como ultrapassar a fronteira que essa diferença constitui? Como encontrar a moderna fronteira entre a ciência e a filosofia?
As fronteiras entre a ciência e a filosofia conheceram desde Bergson e Einstein (portanto, desde o tempo de Leonardo Coimbra) constantes rearranjos. A ciência ocupa lugares que anteriormente eram apenas metafísicos, tais como a discussão sobre a origem do cosmos. A filosofia trata de questões que conheceram importantes ilustrações na física, como o tema da harmonia platónica emergente na teoria das forças e partículas fundamentais.
A imagem de uma fronteira extraordinariamente recortada, fractal, em que um dos territórios cerca o outro e é cercado pelo outro em numerosos sítios afigura-se perfeitamente adequada. Há ainda, apesar da especialização desenfreada, cientistas que são ao mesmo tempo filósofos, e que encontram numa certa filosofia o motivo para a prática da sua ciência ou o conforto para algum insucesso prático. Como Reichenbach, acham que ciência e filosofia são inseparáveis.
Para dar um bom exemplo, refira-se o químico belga Ilya Prigogine, que está convencido de se encontrar na boa pista para descobrir a origem da irreversibilidade na atureza e, por conseguinte, alcançar uma nova visão científica do tempo, eventualmente extensível a outros domínios do saber humano. Esse pensador, que bebeu na filosofia de Bergson, entende que as posições do filósofo francês não são irreconciliáveis com as dos fundadores da ciência moderna, Einstein, Bohr e outros nomes ilustres. São até, na sua própria expressão, "articuláveis". Considera que há uma ponte a erguer, que até já está semi-erguida, entre a necessidade filosófica do tempo-mudança e as expressões empíricas da ciência positiva onde a variável tempo aparece. Deparam-se-lhe, porém, ainda alguns problemas de construção. Se é certo que os sistemas não lineares, nos quais existe sensibilidade extrema às condições iniciais, podem fornecer situações típicas de historicidade em mecêanica clássica e na sua continuação que é a mecânica estatística, a mecânica quântica parece ser um domínio, nesse aspecto, dissemelhante. As flutuações podem ser fonte de história em sistemas extensos mas, ao nível dos átomos e das partículas, o mundo revela-se demasiado coerente.
O tempo existe. Mas o tempo, a existir, deve, segundo Prigogine, ser só um. Tem de estar impregnado no cosmos por todo o lado e da mesma maneira, tanto no muito pequeno como no muito grande. O pensador belga, ao procurar o conhecimento do tempo, percorre como um equilibrista exímio a fronteira entre a física e metafísica. Fá-lo, por exemplo, quando avança uma explicação não convencional para a origem do universo. Num livrinho traduzido em português intitulado "O Nascimento do Yempo" fala de universos anteriores que, por um processo de transição de fase, teriam dado a vez ao nosso. Propõe deste modo uma química do universo todo, com um universo a suceder-se a outro por uma reacção violenta, tão violenta que não fica memória dos universos anteriores. Estamos decerto, porque surgem quantidades inobserváveis, na presença de uma travessia da fronteira entre ciência e filosofia. Trata-se de juntar S. Agostinho e a ideia de criação com S. Tomás e a ideia de eternidade.
Prigogine não teme correr esse risco. Já em "A Nova Aliança" o tinha assumido deliberadamente, miscigenando a história das ciências e das técnicas com a história das ideias metafísicas e conjecturando que o estudo dos sistemas complexos permitirá novas formas de um diálogo, que sempre existiu mais ou menos manifesto, entre as ciências do homem e as ciências naturais, entre o espírito e a matéria.
Por tudo isso, penso que Leonardo Coimbra consideraria estimulante ler Prigogine. Esta afirmação trata-se, devido à óbvia irreversibilidade da vida, de pura ficção e, na impossibilidade de tal aniquilação do tempo, resta-me sugerir aos meus contemporâneos que, além da biblioteca de Coimbra, onde se devem encontrar ao lado um do outro e tranquilamente Bergson e Einstein, consultem a biblioteca moderna que está a ser construída com as obras de Prigogine, Eigen, Jantsch, etc., sobre os processos naturais de auto-organização. Uma pequena flutuação pode ser a origem de um novo estado global do sistema, um estado que até pode ser de constante criação a partir de energia disponível do exterior. Os sistemas abertos são fonte permanente de inovação. Pode observar-se neles a construção do futuro. O paralelo com os processos criativos desenvolvidos na mente humana impõe-se por si próprio.
A concluir a sua análise do livro de Bergson, escreveu Coimbra: "E veremos, no próximo número, em mais demorada crítica, que pela sua inserção na matéria o espírito é tocado daquele tempo [o tempo de Einstein], embora pela memória dele se liberte e atinja a nova dimensão, que chamamos a dimensão espiritual."
Deduzo que, em última análise, Coimbra, embora deslumbrado pela física do real palpável, buscou sempre, com a sua galopante curiosidade, algo mais, algo a que se poderá chamar espírito e que para diferentes pessoas assume contornos diferentes. Coimbra, segundo Santanna Dionísio, gostaria não tanto de transformar a psicologia numa física mas, ao contrário, de transformar a física numa psicologia. Escreveu em "Do Amor e da Morte": "A mecânica não é mais que uma psicologia simplificada". Explica Dionísio: "A realidade, nem genética nem funcionalmente deve tentar explicar-se em função do degradado, mas do elevado: em vez de se cadaverizar o vivo para se salvar a universalidade da ordem 'mecânica', deveria proceder-se em sentido diferente: tentar, acima de tudo, salvar a universalidade da ordem 'espiritual' das coisas; e, portanto, não tomar como tipo modelar o inerte mas o espontâneo, não o reversível mas o irreversível".
É um programa recheado de dificuldades, de incongruências e impossibilidades, mas, apesar disso, prosseguido de alguma maneira nos dias de hoje pelos cientistas que colocam a ênfase no espontâneo e no irreversível ou por filósofos que acham que o pensamento metafísico não deve menosprezar os dados da ciência. é o programa da construção de novas fronteiras entre os domínios de uns e outros,um programa decerto temerário mas, por isso mesmo, extraordinariamente humano. É que sempre os homens, mesmo os mais dotados, procuraram as tarefas para as quais lhes faltavam as forças. Chamo a este o "paradoxo dos génios".
Alfred North Whitehead sumariou lapidarmente a dificuldade principal que o problema do tempo coloca: "É impossível meditar no tempo e no mistério do processo criativo da natureza sem se ter uma emoção esmagadora sobre as limitações da inteligência humana."
BIBLIOGRAFIA:
- H. Bergson, "Durée et Simultaneité. À propos de la theéorie d'Einstein",Paris, 1922.
- M. Capek, "Bergson and Modern Physics- A reintrepretation and reevaluation", Boston Studies ion the Philosophy of Science, Reidel, 1971.
- L. Coimbra, "Dispersos II - Filosofia e Cultura", Verbo, Lisboa, 1987.
- S. Dionísio, "Leonardo Coimbra", 2.a edição, Lello e Irmão, Porto, 1983.
- A. Pais, "O Senhor é Subtil", Gradiva, Lisboa, 1992.
- I. Prigogine, "O Nascimento do Tempo", Edições 70, Lisboa, 1990.
- I. Prigogine e I. Stengers, "A Nova Aliança", Gradiva, Lisboa, s.d.
- W. Rindler, "Special Relativity", 2.a edição, Oliver and Boyd, Edimburgo, 1966
- B. Russell, "ABC da Relatividade", Europa - América, Mem Martins, 1989.
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10 comentários:
A Bíblia fala da relatividade do tempo, quando afirma que um dia para Deus é como mil anos, e mil anos como um dia.
O tempo não é, efectivamente, constante.
A ideia de dilatação gravitacional de tempo é uma componente essencial das cosmologias criacionistas, nomeadamente da teoria dos "buracos brancos" de Russell Humphreys.
Prescindindo do princípio cosmológico, ou coperniciano, que postula um universo sem centro e sem bordas, esta cosmologia, inteiramente consistente com a relatividade geral, assenta na evidência que sugere que a nossa galáxia se encontra perto do centro do Universo.
A partir daí assume-se a existência de um posso gravitaciona e de um processo inicial de expansão do Universo que permitiu que, enquanto passavam 6 mil anos na Terra, biliões de anos transcorriam nas fronteiras do Universo.
Os pormenores técnicos encontram-se descritos no livro Starlight and Time, de Russell Humprheys. Os mesmos foram posteriormente ajustados por outros astrofísicos criacionistas norte-americanos e australianos.
Excelente post!
Venham mais.
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O Anónimo, que já não era, deixou, por força das circunstancias, de o ser. Bem escolhido o "nick".
Cumpts
caro carlos:
O post é bom mas looooongo, seria melhor nestes casos repartir o mal pelas aldeias e fazer a coisa em tres ou quatro posts menores, por razoes de conforto,claro. ler isto tudo de uma só penada é dificil (trabalho a quanto obrigas...) e quando volto já me perdi...
P.S. para os amantes de ficção (ainda com dois cês, mas até quando?)cientifica, acabou de sair um livro de um escritor portugues, o tio Barreiros e diz quem leu é muito giro e recomenda-se
P.S.2- Bem esgalhada a proibição do anonimato, não vai obviamente servir de nada mas pelo menos chama os bois pelos nomes. continuem
bom fds
Na questão do tempo já aqui referenciei a quadra lida numa brochura de cordel, na BNL, sobre o entendimento ou desentendimento do tempo, a sua continuidade ou descontinuidade:
O tempo perguntou ao tempo
Que tempo o tempo tem
O tempo disse ao tempo
Que o tempo, tmpo não tem.
é o que menos interessa mas aqui fica a sugestão quanto a textos muitos longos que quebram a fluidez que convém a um blog: depois de um numero razoável de parágrafos, utilizar a ferramenta que permite linkar uma outra página onde está a totalidade do post.
teste
Excelente post, aliás como é hábito.
rui baptista
Bom post, relembrei-me dos escritos do Prof. Dias Agudo, aquando da polémica sobre a relatividade, cerca de 1910.
O texto aqui faz muitas confusões, principalmente por demonstrar que não houve entendendimento por parte do autor do que Bergson tratou como duração heterogênea. Melhor que a visão de Einsntein é a de David Bohm, neste caso Bergson seria compreendido um pouco melhor.
Excelente post. O tema da minha dissertação de mestrado na UFPE foi sobre o problema do tempo em Henri Bergson e Agostinho de Hipona. Mais tarde publiquei esse trabalho. Poderíamos fazer intercâmbios quanto a textos de Bergson.
Convido a todos para uma visita em meu blog:
http://www.filosofiacalvinista.blogspot.com.br/
PS: Caso alguém se interesse por adquirir o livro "O problema do tempo no pensamento de Agostinho de Hipona e de Henri Bergson", é só pedir no site da livraria cultura, no link abaixo:
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=7036171&sid=00249251414323449966622853
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