domingo, 18 de novembro de 2007

Interferência arbitrária

No passado dia 15 comemorou-se o Dia Mundial da Filosofia. E eu não disse fosse o que fosse sobre isso! Pecado capital. Ou não?

Na verdade, preocupa-me que as pessoas estejam tão dispostas a cantar em coro quando uma pessoa ou instituição qualquer as manda cantar em coro. Seja o presidente, o primeiro-ministro, o papa, a UNESCO, ou outra coisa qualquer, as pessoas parecem fazer bicha para cumprir as mais incríveis arbitrariedades. Por que raio haveremos de obedecer a uma arbitrariedade? Que sentido tem esta história dos Dias Mundiais disto e daquilo? Vale a pena pensar nisto.

Um dos mecanismos centrais para aprofundar o poder sobre as pessoas é a interferência arbitrária nas suas vidas. As religiões vivem disto — que outra razão há para interferir nas suas práticas sexuais, ou no que comem ou deixam de comer, no que vestem ou deixam de vestir? A razão é para mostrar quem manda aqui. E quem manda aqui é quem é capaz de me obrigar a fazer uma idiotice qualquer sem qualquer razão de peso. O poder despótico vive em grande parte deste mecanismo de interferência arbitrária na vida das pessoas, interferência que não tem outro objectivo excepto reforçar o poder que o governante ou o estado tem sobre as pessoas.

O que é assustador é haver sempre demasiadas pessoas dispostas precisamente a fazer tais idiotices como se fossem as coisas mais interessantes do mundo, só porque alguém mandou fazê-las. Há algo de assustador em algumas democracias contemporâneas, e em algumas instituições e modos de agir, pois são claramente portas abertas ao pior pesadelo controlista, estatista e ditatorial. A UNESCO, com os seus Dias Mundiais, pode ser bem-intencionada mas é apenas mais um sintoma disto. Subitamente, alguém, que nem sequer foi eleito por votação directa, decide que o mundo deve todo em uníssono cantar hinos à filosofia ou à física, ou a seja o que for, num certo dia — e, infelizmente, há sempre quem esteja disposto a fazê-lo. Basta usar uma sigla, dar um nome a uma instituição e... ui, ai, temos de fazer assim porque tal instituição disse que é assim. Que raio de bovinice é esta?

Na verdade, a UNESCO faz este tipo de arbitrariedades por outro motivo também. É que, como muitas outras instituições nacionais e internacionais, a UNESCO resulta directamente do hábito que os burocratas e políticos têm de multiplicar instituições sem necessidade. Ockham ficou famoso por afirmar que não devemos, ao construir teorias científicas ou filosóficas, multiplicar entidades sem necessidade. Na verdade, ele nunca escreveu tal coisa, dizem os exegetas, mas toda a gente lhe atribui tal coisa. Em qualquer caso, se Maquiavel não escreveu que um dos segredos da política é multiplicar instituições burocráticas sem necessidade, devia tê-lo escrito. Pois estas instituições servem para dar emprego a políticos reformados, e aos seus amigos; servem para gastar inutilmente e a rodos muitos dinheiros públicos; e ainda têm a vantagem de dar a ilusão de se tratar de instituições bem-intencionadas e que contribuem para fazer um mundo melhor. Bom, fazem um mundo melhor para quem nelas trabalha e ganha milhares de dólares por mês — que saem directamente dos impostos dos contribuintes, mas em nada dá em troca aos contribuintes, além de interferir arbitrariamente nas suas vidas.

O que a UNESCO faz é contribuir decisivamente para a idiotia mundial que consiste na histeria de o mundo noticioso andar a reboque de frases feitas e lugares-comuns. E quando vem o dia de X ou de Y lá vem o ministro cortar mais uma fita e dizer mais umas idiotices — e o resto da malta aplaude. Ou seja: a UNESCO contribui para os políticos cimentarem o seu poder sobre as populações, interferindo arbitrariamente nas suas vidas. Hoje não me apetece nada pensar na filosofia — ah, mas tenho de o fazer porque... ui, ai, é o Dia Mundial da Filosofia.

Vejamos outro exemplo de interferência arbitrária na vida das pessoas: a língua. Na Alemanha, como em Portugal e no Brasil, faz-se como se fosse a coisa mais natural do mundo uma das grandes idiotices do género humano: legisla-se sobre a língua. Há leis sobre o uso da língua! Se eu dou um erro de ortografia, violo a lei, imagine-se. Quantos erros é preciso dar num jornal para se ser preso?

A coisa até tem uma certa graça porque hoje em dia há um debate entre dois tipos de linguistas. Há os "descritivos", mais novos e, pensam eles, politicamente mais atentos, e os "normativos", mais velhos e vistos como títeres dos mecanismos de poder social. Os normativos escrevem coisas sobre o estilo, dizem que é um erro escrever desta ou daquela maneira, e explicam porquê; é a gramática e o estilo no sentido mais tradicional dos termos. Os descritivos dizem que a língua não é posse de ninguém, sobretudo de uns velhotes que estão nas bibliotecas a dizer-nos como devemos usar a nossa própria língua. Os descritivos além disso pensam que são mais "científicos", porque lidam com juízos de facto e não com juízos de valor (porque têm uma crença positivista numa distinção que muitos filósofos hoje em dia não aceitam), e são também mais democráticos porque não usam a língua para impor normas de um certo registo cultural a outros registos culturais: o analfabeto fala um português tão "correcto", dizem, como um romancista, porque a ideia de que há um português "correcto" é ela própria ininteligível, constituindo apenas um mecanismo de controlo social e político.

E é então que vem a parte cómica da coisa. Os descritivos que estão próximos do poder convencem o ministro ou a comissão X ou Y de que é preciso reformar a ortografia, ou a gramática. E... faz-se uma lei sobre isso. Então, deixamos de escrever "óptimo" e passamos a escrever "ótimo"; e no Brasil deixamos de escrever "conseqüência" e passamos a escrever "consequência". Isto é cómico porque afinal os pretensos descritivos são... normativos. Pois, descritivamente, caraças, toda a gente escreve "óptimo" em Portugal, e não "ótimo". Tal como toda a gente escrevia, e bem, "Philosophia" e "Pharmácia", mas depois foram bovinamente obrigados a passar a escrever com F em vez de PH. Os linguistas, descritivos ou não, usam o poder político para impor as suas idiossincrasias às pessoas comuns — coisa que nunca teriam sido capazes de fazer escrevendo livros, gramáticas e dicionários influentes que, de maneira orgânica e natural, estabelecessem um determinado uso da língua em detrimento de outro.

E porquê? Porquê legislar sobre a língua? Para controlar os papalvos, para interferir arbitrariamente nas suas vidas. Os políticos, claro, ficam todos satisfeitos com a ideia de mandar as pessoas escrever de uma maneira em vez de outra. É mais uma maneira de cimentar o controlo dos outros porque é uma interferência arbitrária na vida das pessoas. E o inquietante é as pessoas fazerem bicha para obedecer a estas arbitrariedades.

Só que tudo isto é inaceitável numa sociedade livre. Numa sociedade livre o estado não deve interferir na vida dos cidadãos, a menos que seja realmente necessário. E não é realmente necessário fazer leis sobre a maneira como escrevemos. Nem é necessário fazer Dias Mundiais do Chichi. Só se fazem tais coisas para controlar as pessoas, nada mais. É o que acontece quando se dá uma ordem a uma criança, e ela resiste e pede uma razão. E nós respondemos "Porque sou eu que mando". Era bom que a humanidade crescesse e ultrapassasse a fase em que obedece a tolices institucionais que existem só para cimentar o poder. "Sapere aude!", lembra Kant, "Ousai saber!". Pois. E, já agora, "Ousai ser livres!" — e não aceitem interferências arbitrárias do poder, político ou outro, nas vossas vidas. É que hoje, por boa vontade, damos um chouriço, como diz o povo, e amanhã damos connosco a ser presos porque não queremos dar um porco. Fenómenos como o nazismo ou o salazarismo não teriam sido possíveis se não houvesse hordas de gentes dispostas a fazer quaisquer arbitrariedades que lhes mandavam fazer, só porque sim. Vale a pena pensar nisso.

18 comentários:

Gisele Secco disse...

Caro Desidério!
Obrigada por, mais uma vez, escrever um texto que merece total divulgação!
Gisele

Anónimo disse...

Caro Desidério
Conheci o Rerum natura hoje, dei uma olhada superficial, mas já gostei. Tenho 18 anos e comecei o curso de biologia esse ano.
Gostei do seu texto, não sei se concordo com tudo, penso que os dias de tal coisa são importantes para pensarmos sobre elas. Até mesmo para pensarmos se realmente precisamos dos dias de tal coisa, como você fez. Aliás, concorde, se não fosse o dia mundial da filosofia você não teria parado pra pensar na nossa mania de por dias para tudo ou na interferência arbitrária em nossas vidas...
Gostei da parte em que você começou a falar da língua. Me lembrou um livro de Monteiro Lobato que li inúmeras vezes na minha infância: Emília no país da gramática.É engraçado pois no livro Emília, a bonequinha de Lobato, inicia uma refoma na língua...
O legal é que Lobato faz uma crítica parecida com a sua quando coloca Emília a reformar todas as palavras que segundo a boneca não mais atendiam ao povo que as usa. E no final do livro, quando a academia de letras realiza a reforma ortográfica, a bonequinha se zanga por conta dos numeroso acentos ortográficos "injustificáveis", segundo ela.
A lingüa, como tudo, muda,seja na escrita ou na fala. A lingüa pertence ao povo que a fala e muda conforme o povo mude.Não acho necessário haver leis para reger algo mutável, pois essas leis deveriam ser alteradas constantemente para se adequar ao momento.
Um abraço.

Pedro Galvão disse...

Olá, Desidério!

Partilho em absoluto a falta de entusiasmo com os dias disto e daquilo, mas não parece que a existência desses dias seja assim tão criticável. Participa quem quer. De um modo geral, esses dias não proíbem nem obrigam a nada. (O Natal é bem pior, pois aí há uma enorme pressão para se fazer uma série de coisas...) E haver dias disto e daquilo pode ser um bom pretexto para se fazer coisas interessantes, para avivar a memória das pessoas, etc. Sugerir que a participação nesses dias é bovinice é levar a coisa demasiado a sério.

PG

Freire de Andrade disse...

Já há muito tempo que embirro também com os dias disto ou daquilo e, como há mais de 365 assuntos que merecem ter dia próprio (como os santos católicos), parece-me que cada dia é já de mais do que um assunto. Realmente no dia do não fumador, que decorreu anteontem, eu não fumei um único cigarro; mas nos restantes dias também não fumo. Mas achei ridículo ver o ministro Rui Pereira pôr uma coros de flores num monumento qualquer por ser ontem o dia das vítimas da estrada.
Já quanto às normas ortográficas. embora me recuse a passar a escrever óptimo, estou muito feliz por no meu tempo já não se escrever philosofia e pharmácia mas sim filosofia e farmácia. E sobre o dia da filosofia, só me resta dizer que o dia não faz falta e nem dei por ele, mas o ensino da filosofia deveria continuar a ser obrigatório no secundário e até desde o básico. Felizmente a escola do minha neta, de 8 anos, resolveu introduzir sessões de filosofia para crianças.

Anónimo disse...

Desculpe lá, Desidério, mas que texto mais populista! Deixando de lado os seus estados de alma sobre as datas comemorativas (na verdade, um pouco artificiais, o que é um lugar comum) comento só o que diz da ortografia (coisa diferente da língua, se não se importa): você, que não perde uma oportunidade de bater no ceguinho do "eduquês" (e às vezes bem), agora acha que a ortografia de uma língua deve ser uma questão pessoal, de "feeling", se calhar, ou seja, na prática, que as criancinhas deveriam escrever cada uma como lhe apetecesse (e que "os políticos" são, como sempre, os "maus da fita" ao obrigá-las a seguir normas, ainda por cima legisladas)? Então aqui há tempos não estava indignado por aparentemente não se terem contados os erros ortográficos num exame qualquer? Quer dizer, a gente fica sem saber o que pensar...
O que vale para os acordos ortográficos, sempre polémicos, claro, mas que aqui me parecem tratados com uma ligeireza estonteante. Na verdade, se acha que o que fizeram à Phylosophya é puro despotismo político, por que é que não se informa um bocadinho sobre a história (e os fundamentos) da mudança do Ph para o F (e do assassinato à má fila dos y's em português)? Se calhar ia ter algumas surpresas... (dou uma dica: começar talvez pelo "Verdadeiro método de estudar", do saudoso Luís António Verney - saudoso até porque iluministas tivemos poucos por cá)

Anónimo disse...

Nos jardins de infância quase todos os dias se comemora o Dia Mundial de alguma coisa e já há algum tempo que dei pela falta da comemoração do Dia Mundial do Homem, que nem sei se existe. Não se percebe que existam dias mundiais para tudo e mais alguma coisa e que os homens que são quase metade da humanidade, não tenham o seu devidamente comemorado...

guida martins

Anónimo disse...

os dias mundiais disto e daquilo fazem sentido quando há esforço por detrás que mereça esse dia. imagine-se que eu decretava o dia mundial de mim próprio. Isto não fazia sentido algum. Mas nós, tugas, somos muito sensíveis à festa e gabarolice (uma das principais causas de sinistralidade nas estradas tuas, segundo a boa fonte que é o Gato Fedorento) e comomerar o dia Mundial da Filosofia em Portugal, mais parece que estamos a fazer uma grande festa só porque perdemos 1-0 com a selecção do Arzebeijão. Não faz sentido comemorar o dia mundial de uma coisa que não temos e não nos esforçamos por ter. Mas confesso que vou sair e fazer festa no dia mundial da imbecilidade!
abraços
Rolando Almeida

Desidério Murcho disse...

Caros leitores
Obrigado a todos pelos comentários. Eis alguns esclarecimentos, que talvez sejam úteis:
1. Claro que há problemas bem mais graves no mundo do que as idiotices da UNESCO. Mas estas e outras idiotices contribuem decisivamente para um clima de bovinice que não é nada bom. Isto faz-me lembrar as famosas experiências psicológicas em que se colocam pessoas com uma bata de cientistas a dar ordens a pessoas e elas obedecem cegamente, mesmo que essas ordens sejam para provocar choques eléctricos a outras pessoas. Se um de vocês declarar que amanhã é o dia mundial dos sapatos azuis, ninguém liga; mas qualquer um de vocês tem tanta legitimidade para fazer isso como a UNESCO. A UNESCO e outras instituições deste género só existem enquanto conseguirem interferir arbitrariamente na vida das pessoas. É um pouco como dizia o Woody Allen: “E se eles fizerem uma guerra e ninguém aparecer?” Se instituições idiotas como a UNESCO fizessem tolices e ninguém ligasse, estas instituições desapareciam. E não deixariam saudades.
2. Quanto à língua, acho muitíssimo significativo que se pense “Se o Desidério é contra a legislação sobre a língua, então cada qual escreve como quer”. Isto significa que se tem precisamente a mentalidade que estou a criticar e por isso não se concebe a coordenação da língua de outro modo que não através da lei. Ora bem, não há qualquer lei ortográfica em muitos países, como o Reino Unido, que no entanto tem uma ortografia estabelecida. E também não é verdade que a ortografia nesse caso não evolua. O que se passa é que não evolui artificialmente, por via de uns linguistas mal amanhados que são incapazes de mudar os padrões da língua sem ser por via coerciva da lei. Se mudar de PH para F, por exemplo, era assim tão bom e havia assim tão boas razões, não teria sido necessário fazer leis para isso — a evolução natural da ortografia conduziria a isso porque naturalmente cada vez mais pessoas adoptariam uma determinada gramática que propusesse precisamente tal coisa. Mas a palavra-chave aqui é “livremente”, e não por via da lei.

Anónimo disse...

Este post fez-me lembrar algo que se passou num dos governos de Cavaco Silva: a mudança nas matrículas, quando apareceram as letras no fim e as matrículas reflectoras.
Houve muitas pessoas que logo se apressaram a trocar as matrículas antigas por matrículas novas, mesmo não sendo obrigatório. Apareceram inclusivamente matrículas de veículos antigos, modernizadas ilegalmente com a posição das letras trocada.
Outro sinal: nesses anos também se alterou a maneira de abreviar a data nos documentos relacionados com assuntos estrangeiros, sendo esta medida opcional para uso interno. Como é evidente, logo muito boa gente começou a escrever a data à americana. Apareceram também documentos em que era obrigatória a nova grafia.
Realmente somos uns bimbos muito completos, tal como aliás na adopção acéfala de qualquer obrigação (leia-se, dever para os subordinados) que a CE se lembre de pesadelar.
Mas voltando ao tema do post... aqui há uns anos foi muito aplaudida a iniciativa de aportuguesar certas palavras como por exemplo "dossier".

Anónimo disse...

Eu aprecio o espírito deste texto, porque é sempre saudável levantar questões sobre a liberdade e os riscos do controleirismo de uns quantos iluminados.

Mas cingindo-me à questão da ortografia (distinta da questão da língua como já aqui foi dito e bem) julgo que o Desidério se deixou levar pelo entusiasmo da contestação.
Se as pessoas são livres de pronunciar as palavras à sua maneira, sendo o limite a dificuldade de serem entendidas pelos outros, já no que respeita à ortografia não é difícil aceitar que tem de haver regras e que não pode ser permitido que cada um escreva como bem lhe apeteça. Julgo que se trata de uma evidência que nem vale a pena procurar demonstrar.

O que se pode e deve abordar é se as regras ortográficas são as mais adequadas e as mais aceitáveis para os utilizadores da língua.

Talvez não seja uma verdade absoluta a ideia de que a língua é um instrumento evolutivo por natureza. Numa sociedade em que as pessoas são instruídas, a língua mantem-se relativamente estável, tanto na fonética como na ortografia.

O problema aparece nas sociedades em que as pessoas são predominantemente analfabetas e apenas sabem falar, mas pouco ou nada sabem escrever. Um analfabeto não só não sabe escrever, como, pelo de facto de não ter uma referência escrita, tem tendência a alterar a fonética. E quando os analfabetos dão os primeiros passos na escrita, é irresistível a tendência a adaptar cegamente a ortografia à fonética. Foi às mãos dos analfabetos que o latim desapareceu, transformado nas várias línguas ditas latinas, com semelhanças óbvias, mas com distinções drásticas.

Veja-se também o que se passou no Brasil com a língua portuguesa. Um exército de analfabetos pegou na nossa língua e desatou a escrever da forma que lhe parecia corresponder melhor ao som com que pronunciava as palavras. O resultado não podia ser pior. Uma língua que se diz falada por duzentos milhões de pessoas não tem uma regra ortográfica única que lhe dê credibilidade. É elucidativo ver alguns dicionários de inglês na internet, em que, para algumas palavras, é incluída a tradução em várias línguas. A única, repito, a única, que tem duas entradas é a língua portuguesa. Uma para o Brasil, outra para Portugal. Que figura triste.

E não se vê remédio no horizonte. O tristemente célebre acordo ortográfico, defendido em Portugal por personalidades tão iluminadas como Santana Lopes e no Brasil por académicos que queriam à força eliminar consoantes mudas quando eles próprios tinham no nome várias consontes dobradas, deu com os burrinhos na água. Felizmente, porque o resultado seria um desastre ainda maior. Seria, para todos os efeitos, uma espécie de “triunfo dos analfabetos”.

Anónimo disse...

Os que acusam o Desidério de não querer uma norma culta para a língua portuguesa e de querer pôr cada um a escrever como entende estão, a meu ver, a ler mal. O que o Desidério não quer, e eu concordo com ele a 100%, é que a norma culta da ortografia portuguesa não seja imposta por via legislativa.
Por que outra vis pode ela ser imposta, então?
Pois, pela autoridade científica de gramáticos e lexicógrafos, como acontece nos países de língua inglesa. Em Portugal nunca tivemos, infelizmente, lexicógrafos com a autoridade de um Dr. Johnson, na Grã-Bretanha, ou de um Daniel Webster, na América; nem nunca tivemos nada de equivalente ao Oxford Dictionary of the English Language. As academias, por falta de autoridade própria para fixar a ortografia, chamaram e chamam em seu auxílio a autoridade política.
Daí a Philosophia com "F" representar um empobrecimento da língua, que com cada reforma ortográfica vai perdendo densidade etimológica e, a fortiori, profundidade semântica.

Desidério Murcho disse...

Caro Sarmento

Obrigado pela leitura atenta.

Penso que concorda que a falta de autoridade dos lexicógrafos, que por isso recorrem à autoridade legislativa, resulta do centralismo estatizante típico em Portugal, e ao mesmo tempo reforça-o.

Não admira que numa cultura como a portuguesa a interferência arbitrária dos burocratas seja vista como a coisa mais natural do mundo. Mas, na verdade, é um dos mais poderosos instrumentos de dominação política.

O mesmo acontece noutros sectores. Por exemplo, na educação quem está próximo do poder é que manda, porque tem atrás de si a força da legislação; mas não tem atrás de si a força do trabalho académico de qualidade amplamente reconhecido.

Anónimo disse...

O senhor Desidério é corajoso. Foi capaz de um discurso emotivo. Seria menos poético e verdadeiro se se tivesse protegido mais. Parabéns e obrigada. Continue a tratar-nos bem.

Anónimo disse...

A interferência na vida das pessoas não é só uma questão de ditadura. Nas democracias, em nome dos direitos dos outros, também se restringe o tabaco, as bebidas alcoólicas, as drogas, o excesso de velocidade, a sexualidade descontrolada, o abuso de crianças, a violência doméstica, etc., etc.

Anónimo disse...

E essa moda que anda agora por aí de escrever as datas "à americana", ou "à computador" ou lá o que é, tipo 2007-11-20, em vez do habitual 20-11-2007, que é velho e bafiento e provavelmente fascista?
Ica, que há coisas que me tiram do sério. Só morto hei-de escrever isso (descontando atitudes exemplificadoras, claro...), ou já agora "ótimo" (duplo ica).

Anónimo disse...

Ainda me lembro de um livrinho de "boas práticas", saído no tempo de Guterres, em que o gabinete de Maria de Belém apostava e apelava ao "empoderamento" (sic)!

Nunca consegui usar tal termo (mesmo em inglês no contexto português), ou sequer ouvir, falar ou ler, sem sentir um frémito de pulsão de morte. Uma espécie de choque traumático pós estupidez.

tiago disse...

ent�o mas vamos l� a ver se percebi bem... a legisla�o sobre a l�ngua n�o decorrer� de pareceres de t�cnicos creditados e experientes, tipo... lexic�grafos? e, se agora, a nossa l�ngua est� fixa, como poder� ocorrer uma evolu�o natural? s� se um grupo cada vez maior de pessoas come�ar a escrever "mal" at� um ponto em que esse "mal" passa a ser "bem" pela propor�o de pessoas que j� escreve assim. certo?

Pedro Machado disse...

Parabéns por este excelente post! Concordo com cada vírgula. É engraçado e triste ler alguns comentários. No outro dia, num jantar entre amigos, todos licenciados, eu era o único que achava inaceitável a ideia do governo de impor um limite máximo de sal no pão. Todos eles achavam bem, que era uma medida para nosso bem, que a intenção é boa, que a gente habitua-se, que o Estado gasta muito em saúde, etc. A mentalidade estatista e centralista em Portugal é quase senso-comum. Triste povo...

(Só mais uma coisa. Concordo sempre, ou quase, com o Desidério Murcho, excepto quando se põe a defender o mostruoso Peter Singer... Mas isso é outra conversa... Continue a escrever excelentes textos!)

Um abraço.
Pedro

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