quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A FÍSICA, A METAFÍSICA E A POESIA


Pré-publicação do meu prefácio ao livro “Metafísica [Poética]”, de Vicente Ferreira da Silva, que vai sair em breve na editora Papiro do Porto.

Pedem a um físico umas palavras sobre metafísica e poesia, ou melhor, sobre esta “Metafísica [Poética]” de Vicente Ferreira da Silva, doutorando na Universidade do Minho.

Que tem um físico a dizer sobre metafísica? De facto, Física e Metafísica têm “física” em comum. Mas Aristóteles (384-322 a.C.), o grande físico e metafísico de Estagira (Grécia), usou o termo física (que significa natureza), mas não metafísica (à qual chamou filosofia primeira). Os escritos de Física (ou filosofia natural) englobam os livros “Do Céu” e “Mecânica”. Os escritos de Metafísica vêm a seguir no “Corpus aristotelicum”: Metafísica significa não “para além da Física”, como pensaram alguns escolásticos medievais, mas sim “depois da Física”. Foi Andrónico de Rodes o organizador das obras de Aristóteles o responsável pela designação de Metafísica. A “Poética”, incluindo a tragédia e a poesia épica, aparece só por último.

A Metafísica procura tradicionalmente responder a questões perenes como: o que é o real? O que é o ser? O que são as coisas? O que é a mudança? Mas também procura responder à eterna questão: o que é Deus (no tempo de Aristóteles, era no plural: o que são os deuses)? E procura também, ao procurar saber tudo isso, saber como se pode saber. Hoje em dia a metafísica é uma parte fundamental da filosofia: trata a matéria e a mente, os objectos concretos e as suas propriedades, os objectos abstractos e a matemática, a identidade e a mudança, o espaço e o tempo, a necessidade e a possibilidade, o determinismo e o livre arbítrio, a cosmologia e a cosmogonia, além, evidentemente, das questões teológicas. A relação com a física é, como se pode ver pelos exemplos, múltipla e extensa. Pois não são, por exemplo, a matéria, o espaço e o tempo, a cosmologia assuntos da Física? Não foi o físico de origem alemã Albert Einstein quem juntou todos estes assuntos num só, mudando a nossa visão do mundo (a matéria curva o espaço e o tempo, permitindo explicar a cosmologia)? A distinção entre física e metafísica nem sempre é fácil, tendo, além de Einstein, vários físicos imitado Aristóteles ao tratar tanto uma como outra. Mas atente-se no “distinguo”: a metafísica vem depois da física e não antes.

E que tem um físico a dizer sobre a poética? Pois que gostou de ler esta “Metafísica [Poética]”. A “Poética” de Vicente Ferreira da Silva é Metafísica antes de ser Poética. Ou melhor é Metafísica-Poética. Reforçando essa ideia o autor invoca logo à porta do seu livro o poeta idealista alemão Novalis (1772-1801), o pseudónimo por que é conhecido Georg Philipp Friedrich, Freiherr (Barão) von Hardenberg: “A Filosofia é a teoria da poesia”. O idealismo da arte poética de Novalis é, evidentemente, uma posição metafísica: na já referida oposição mente-matéria, a escola do chamado “idealismo alemão”, onde pontificam os filósofos-poetas Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich von Schiller, dão clara preferência à mente. Nessa escola entroncam os filósofos também alemães Friedrich von Schelling e Georg Hegel, contemporâneos de Novalis, a cujo patrocínio Vicente Ferreira da Silva se alberga na portaria de dois dos seus poemas. Fica assim claro quais são as influências principais do autor destes poemas em verso branco, que são por vezes aforismos filosóficos. Os versos dele lêem-se quase como filosofia, embora o grafismo nos lembre que é poética.

Quase todos os temas da actual metafísica, separados ou poeticamente juntos, perpassam pelos poemas de Ferreira da Silva. Por exemplo, em “Evolução” é o tema heraclitiano da mudança no espaço e no tempo, que está de resto presente em quase todo o livro:

”E nenhuma existência é igual
Porque o tempo não se repete
Nem o espaço é o mesmo”.


Outro exemplo: os temas da matéria e do espírito surgem aliado ao das possibilidades, em “Limitações”:

“Ao Homem tudo é possível!
Excepto ultrapassar os limites da sua própria natureza.
Apenas o faz incompletamente,
Por ser matéria e espírito.”


No poemas “(I)Material” (repare-se na ambiguidade do título, que reflecte o facto de as grandes questões metafísicas não terem resposta), a escolha entre matéria e e espírito (não) é resolvida do seguinte modo poético:

“Matéria ou Espírito?
Que ténue dilema!”


Sobre o livre arbítrio, o poeta, em “Consciência (III)”, é menos ambíguo (e o meu eu, embora livre para discordar, concorda):

“O Eu é liberdade”.


O homem é parte do cosmos. Assim, o tema da possibilidade humana é integrado, em “Fluidez”, numa perspectiva mais vasta, onde assoma o determinismo darwinista:

”Nada é impossibilidade.
Tudo é possibilidade.
Tudo é evolução”
.

O poeta junta explicitamente o homem e o cosmos (o homem é em si mesmo um cosmos, que sempre se desejou imagem do cosmos!), ao falar, em “Meditação sobre a Morte (II)”, dos limites de um e de outro:

“O Universo não é infinito
O Homem também não”.


Mas o homem aspira ao infinito. E, num dos poemas de que mais gosto - “(Des) Conhecimento” (de novo a ambiguidade no título)– o poeta afirma uma atitude optimista face ao saber, que paradoxalmente está mais próxima do iluminismo do que do romantismo alemão:

“Então,
deveremos ousar
desvendar
os criptogramas
do infinitamente grande
e do infinitamente pequeno?”
(...)
Sem conhecer seremos infinito?”


Essa ideia de aspiração ao saber vem reforçada em “Ascensão”, outro poema de que gosto:

“Ascender!
Eis a essência.
Ou a necessidade!”


Se a metafísica está aqui intimamente associada à poética (uma tradição que em Portugal foi superiormente cultivada por Antero de Quental), a física também aparece. O poeta metafísico saberá que a física está antes da metafísica. E não deixa de ser curioso que ele, em “Estética”, coloque a ciência entre a arte e a religião:

“Arte,
ciência e religião
são grandezas numa dimensão superior”.


As relações entre ciência e religião levar-nos-iam longe e este prefácio já vai longo... O melhor é dar a palavra ao poeta, porque os poetas são os mestres das palavras.

Vicente Ferreira da Silva é, como o leitor já entendeu e estará desejoso por confirmar, um novo mestre das palavras, uma voz original na moderna poesia portuguesa. Diz-me quem citas, dir-te-ei quem és. Vicente Ferreira da Silva, num dos últimos poemas deste livro cita Ferreira da Silva. Mas não, não é auto-referência. O poeta é homónimo do filósofo brasileiro (1916-1963, faleceu precocemente num acidente rodoviário) a quem já chamaram “Sologaenger” dada a originalidade do seu percurso filosófico. O primeiro livro do filósofo brasileiro, escrito aos 22 anos, “Ensaios Filosóficos”, faz, curiosamente, referência a Novalis. Será só coincidência que o jovem Ferreira da Silva faça agora e aqui o mesmo?

9 comentários:

Arrebenta disse...

Faz-nos falta Poesia, sobretudo na Educação.
O Dia das Bruxas, de Maria de Lurdes Rodrigues...

http://asvicentinasdebraganza.blogspot.com/2007/11/noite-das-bruxas.html#links

Anónimo disse...

Que grande seca ó Fiolhais! E ciência, nada?

Anónimo disse...

Estou a ver que o Carlos Fiolhais tem uma espécie de "anti-groupies" aqui no Blog. Há meia dúzia de covardes anónimos (ou será apenas um sem nada para fazer?) que adoram deixar comentários semi-engraçados-sem-graça-nenhuma em cada post seu. Que divertido.

Bom texto, a unir três conceitos aparentemente distintos, mas com muito de semelhante.

Ricardo

Anónimo disse...

Tal como nos limites a física e a metafísica se confundem (não se chega àquela sem esta), nos textos citados prosa e poesia estão muito próximas. Mas a escrita vale pelo que foi pensado antes dela e pelo que faz pensar depois de lida. Como o poeta, Carlos Fiolhais pensou e fez pensar. Valeu a pena lê-los.

Anónimo disse...

Há muito boa gente que defende que a Filosofia é Literatura e, que a Física é um Poema.
A Física tem uma Linguagem e a Filosofia não; a Metafísica não tem linguagem própria, mas faz uma utilização filosófica da linguagem.
Talvez seja Metafísica, por não possuir nenhuma linguagem artificial e nisso se distingue da Física.
Quanto ao resto, julgo ser um Poema em duas versões.

Anónimo disse...

Cometa à vista!
Não tem nada que ver com o tema. Mas, há dias, um leitor pediu informação sobre um cometa que andará por aí. Acabo de vê-lo, com binóculos. Belo espectáculo.
Eis uma descrição que encontrei:
Comet Holmes is easily visible now. It is an unusual comet -- like a big white fuzzball -- in that it doesn't have much of a tail visible at the moment. You can see it with the unaided eye, but you'll need binoculars to see its big round fuzzy glory. It is in Perseus, which as you probably knew already, is between two of the easiest things to find in the night sky: Casseopeia and the Pleiades

Anónimo disse...

Que nojo!! Tanta ignorância. Salve-se quem puder, lendo, por exemplo, a introdução à Crítica da Razão Pura, aos princípio metafísicos da ciência da natureza. Ou então, leia um qualquer bom livro de metafísica. Carlos Fiolhais notoriamente nunca o fez, pois se o tivesse feito não diria as parvoeiras que aqui diz. Que nojo!!

Anónimo disse...

Precisamente porque o mundo físico teve um princípio necessita de uma causa não física. Daí a metafisica.

De onde veio a partícula primordial, a tal singularidade? O que é que a fez explodir? O que é que a inflacionou? Essas e outras questões remetem invariavelmente para a metafísica. Sempre foi assim.


Ora, se assim é, mais vale começar a raciocinar a partir de Deus e da sua revelação como Deus espiritual,omnipotente, infinito, eterno e omnisciente.

Um Deus assim é causa adequada a matéria, a energia, o espaço, o tempo e a informação.

Este argumento já é antigo. O mesmo tem adquirido redobrada actualidade.

A questão de saber quem é o autor deste post é irrelevante para o mérito ou demérito do argumento. Daí o anonimato.

Concentremo-nos nos argumentos.

Anónimo disse...

Caro anónimo, entre os antigos o "mundo" não teve princípio...sempre existiu!
Só se começa a pensar neste "imbróglio" quando se procura demonstrar a imortalidade da alma e como tal da espécie "sapiens".
Quando se começou a colocar o problema do fim, é que se iniciou a questão dos primórdios.
Do que sempre existiu, não se questiona nem o iníco, nem o fim...

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