terça-feira, 20 de novembro de 2007

Correspondências correspondentes

Post convidado de João Boavida, onde se apresenta um livro que vale a pena ler.

Só agora li a Correspondência - Sophia de Mello Breyner/Jorge de Sena , entre 1959 e 1978 (2006, Lisboa: Guerra e Paz).

A primeira ideia é que não se deviam publicar cartas escritas sob a pressão dos dias e dos problemas, sem cuidado literário nem acabamento, de duas personalidades tão importantes da cultura portuguesa do século XX. Habituados à tensão literária das obras de Sena, à sua força, à sua riqueza imagética e lexical, à sua truculência crítica, e, por outro lado, ao universo onírico, à sublimação estética que a obra de Sophia corporiza, estas cartas apressadas mostram o lado das vidas que não costumamos contabilizar nas obras, mas que livros como este nos obrigam a considerar.

Na sua simplicidade e espontaneidade, na proximidade das palavras, não tanto «rente ao dizer», como diria Eugénio de Andrade, mas mais rente ao sofrer ao amar e ao odiar (que também precisam de se dizer) vemos as candidaturas ao Nobel, de Torga e de Aquilino, em 59, e a divisão entre os intelectuais que enfraqueceu as nossas possibilidades, e nova candidatura em 78, entre Torga e o próprio Sena, vemos, ou adivinhamos, os jogos políticos, nem sempre claros e honestos, as tricas e invejas entre escritores, a PIDE e a sua aviltante função, e depois a Revolução e os oportunistas que gerou, os inúmeros tolos que se puseram em bicos de pés, enfim, a cultura inculta, de que ambos se queixam, e que é a nossa grande desgraça.

Jorge de Sena tinha a capacidade de fazer inimigos, por culpa de um espírito de águia que atacava sem dó os que ele considerava medíocres, mas, mesmo excessivo, como ela era, ou “ausente”, como era Sophia, sentimos, no que se diz e sugere, o Portugal cinzento e mesquinho a que a política dava o mote (antes e depois do 25 de Abril) mas que se pegava às pessoas e às instituições, pouco sensíveis à cultura em geral e ao estético em particular. Realidades, afinal, responsáveis pelas emigrações de Sena, com a numerosa prole atrás, primeiro pelo Brasil e depois pela América do Norte, com todas as canseiras que imaginamos de mudanças de casa, transporte e instalações repetidas de bagagens, livros, filhos, numa vida de professor universitário sem vínculos, sem segurança de emprego, mas fazendo, no meio de todas estas dificuldades, uma investigação sobre Camões e a cultura portuguesa do século XVI (e divulgando-os no estrangeiro) que nos espanta pela riqueza imensa da erudição, pela profundidade e arrojo das interpretações, e pela extraordinária capacidade de trabalho que exige. Ao lado de uma obra poética de uma envergadura, originalidade e qualidade extraordinárias, e de uma obra em prosa, talvez menor, mas onde está, por exemplo, entre outras coisas, O físico prodigioso, que é um prodígio.

As cartas de Sophia são mais comedidas, menos dramáticas, mas nem por isso menos pungentes. Imaginamo-la, também com um rancho de filhos, (Sophia teve cinco, Sena, nove, heróicas criaturas!) e as correspondentes dificuldades que as posições políticas não favoreciam, sonhando países, intuindo imagens, pronunciando palavras poéticas no meio de uma burguesia nada propensa às artes, vivendo algarves ainda limpos de turismo rude, outonos “deslumbrantes” grécias “mágicas”, ao lado da morte de familiares, de acidentes, de dificuldades económicas, etc.

Em suma, estas cartas não são a obra de cada um, mas acompanham-nas durante alguns anos, sentimo-las caminhando ao lado e levantando a cabeça de vez em quando. De certo modo tanto em Sena como em Sophia as vidas correspondem às obras, mesmo quando parece o contrário, e estas cartas dão para perceber isso.

5 comentários:

Anónimo disse...

"A primeira ideia é que não se deviam publicar cartas escritas sob a pressão dos dias e dos problemas, sem cuidado literário nem acabamento, de duas personalidades tão importantes da cultura portuguesa do século XX."???????
Que se devia fazer ás cartas, queima-las? Deviam ser guardadas num cofre e estarem acessíveis apenas à elite?
Qual é o mal de mostrar todas as perspectivas de um ser humano?!
Eu acho que as cartas só podem ser muito interessantes.
Este blogue é composto por pessoas com uma grande propensão para a censura, não é?
Apaguem lá mais este comentário, já agora, é só mais um!
luis

Anónimo disse...

Parabenizo os Professores José Boavida e Helena Damião: O primeiro pela excelente análise que faz ao livro "Correspondência: Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena". A segunda pela publicação do texto. Da leitura que fiz do livro, retenho a seguinte passagem: "Acho que não se pode criar em nome do anti-fascismo um novo fascismo", subscreve-a Sophia de Mello Breyner.

Anónimo disse...

Por lapso escrevi José em vez de João. Ao Professor João Boavida, as minhas desculpas pelo "lapsus calami".

Anónimo disse...

Hoje senti dois enormes prazeres,que ah muito nâo tinha,estàva lendo sobre um artigo d'um prof physcien na Univercidade de Sherbrooke.Quando vi o nome d'um Portugues que estudava justamente com ele; depois foi ler ésta linda homenagem,a quem a merecia.Parabens

aviador disse...

Sem ser especialista afoito-me a escrever a minha opinião.

Fiuei tal modo chocado ao ler as cartas ue preferi não acabar a sua leitura.

Prefiro tê-los no "pedestal" que vê-los presos a mesquinhices.

De qualquer modo as cartas não foram queimadas.

Aí estão! Façam delas bom proveito.

Calculo que deve ter sido uma decisão difícil a sua publicação.

Presumo que não interesseira.

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