Não é nosso hábito reproduzir artigos publicados alhures -- e ainda mais quando o são em jornais nacionais, como o caso do Público ao qual este blog está associado. Todavia, o artigo de hoje do director do serviço de ciência da Gulbenkian, João Caraça, que aborda, tal como Luís Alcácer o fez no De Rerum Natura, a cobertura mediática da Conferência Gulbenkian 2007 que se realizou a 25 e 26 de Outubro no Auditório 2 da Fundação, merece divulgação e análise.
Em termos cognitivos não se vê como se podem esgotar as interacções e a nossa apreensão da natureza.
Se a ciência tem ou não limites e, tendo, se estará porventura a aproximar-se deles ou a esgotar-se, foi o tema, legítimo, da conferência internacional que decorreu com enorme sucesso e participação do público na semana passada na Fundação Gulbenkian. A questão, proposta por George Steiner para debate, foi assumida com entusiasmo por uma plêiade de conhecidas personalidades, da ciência e das ciências sociais às humanidades e aos media.
Curiosamente, ou talvez não, a mensagem transmitida pelos cientistas foi a de que o progresso científico não está limitado na actualidade nem no futuro previsível. Isto é, observadas de dentro, a ciência e a investigação científica não têm limites. Em termos cognitivos não se vê como se podem esgotar as interacções e a nossa apreensão da natureza. Pois não vivemos nela? Mais, mesmo que houvesse uma hipotética barreira (constante, como gostam os filósofos, ou então uma curva em expansão no tempo) a convergência assimptótica implicaria saltos crescentes até ao infinito. Isto é o que dizem os cientistas.
O PÚBLICO, na sua edição de domingo de 28 de Outubro, bem poderia, pois, ter contrastado a opinião de John Horgan sobre o fim da ciência com o conteúdo da inspirada apresentação de Gerald Edelman (Prémio Nobel da Medicina), cujo título era significativamente Da dinâmica do cérebro à consciência: nenhum limite à vista. Ou ter dado realce à bela intervenção final de Freeman Dyson (que muitos dizem dever ter partilhado o Nobel da Física em 1965, mas sabemos bem quanto revelam e escondem estes prémios) denominada A ciência perto dos seus limites: nem pensar! Mas não o fez e foi pena.
É que os limites, barreiras, fronteiras, demarcações, condicionantes e condições aparecem quando se olha de fora para a ciência. Estão ligados com o facto de a ciência ser, como todas as outras, uma actividade social que é praticada numa sociedade altamente mediatizada. É que a investigação científica não é uma actividade especial praticada por sábios encastrados nas suas torres de marfim. A ciência, hoje, é um conjunto larguíssimo que envolve a investigação, a aplicação, a gestão, a aprendizagem e a divulgação de conhecimentos, atitudes e expectativas científicas.
Naturalmente, a perspectiva social da ciência (que data dos anos 1970), mais recente do que a cognitiva, que nasce no século XVII, revela condicionamentos à prática alargada da ciência, exactamente provenientes da própria existência de comunidades científicas e da sua relação com as sociedades em que estão inseridas. A percepção societal do valor da ciência e o modo como na cultura de cada nação se incorporam a atitude e o pensamento científicos são factores externos, reais, condicionantes do desenvolvimento científico nesses países. Por exemplo, através dos níveis de financiamento público e privado que lhes são afectados anualmente. E, last but not least, pela invenção de regimes mais ou menos predadores da propriedade intelectual.
Finalmente, uma perspectiva comunicacional da ciência, relacionada com a problemática da existência de inúmeras linguagens especializadas correspondentes à diversidade de disciplinas e subdisciplinas (ainda mais recente, pois data do fim dos anos 1980) mostra como as barreiras à comunicação, à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade podem afectar as trajectórias e a conectividade das redes científicas. Tudo isto é real e merece ser debatido, o que pressupõe uma discussão alargada que não exclua, evidentemente, os cientistas.
Uma questão central que se põe à ciência hoje é a da existência de duas modalidades de investigar, a da motivada pela curiosidade ou curiosity-driven (a ciência que vem desde Galileu e Newton e que procura compreender as leis da natureza) e a impulsionada pela necessidade de produzir tecnologia de alta intensidade ou technology-driven (mais conhecida por "tecnociência" e que nasceu por alturas da Segunda Guerra Mundial). O balanço entre ciência e tecnociência está longe de estar resolvido e é causa de interrogações pertinentes sobre a capacidade de atrair os cérebros jovens mais aptos para resolver problemas intrincados, quando o isco de sucesso garantido e de segurança financeira é lançado do lado "tecnocientífico", guiado pelo mercado.
Penso que é o peso excessivo desta tecnociência nos Estados Unidos da América que motiva a percepção errada do fim da ciência. Realmente, o que há para reportar sobre os avanços tecnocientíficos pelos media não é espectacular, e o que tem foros de espectacular não é científico. É a pressão da mediatização - com que os cientistas têm de se habituar a conviver - que interpreta a falta de escândalos ou de situações dramáticas como um fim da ciência. Só os que acreditam no mito da criatividade sem mestre (a exemplo dos nossos antepassados do paleolítico quanto à fertilidade da terra) afirmam que a imaginação dos cientistas se esgotou.
No livro que publiquei em 2001 (na Quimera) sobre o que é ciência, defendo que a ciência é um elemento essencial do diálogo interminável entre o homem e o seu mundo. Não se vê, no século XXI nem nos próximos, como se conseguirá manter este diálogo de modo razoável e sustentável sem a participação da ciência. Não, a ciência não está perto do fim: e é a continuação do estímulo ao gosto pela sua prática pelos mais jovens, como vemos ano após ano, que constitui a melhor aposta face às incertezas do futuro.
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
AS FÉRIAS ESCOLARES DOS ALUNOS SERÃO PARA... APRENDER IA!
Quando, em Agosto deste ano, o actual Ministério da Educação anunciou que ia avaliar o impacto dos manuais digitais suspendendo, entretanto,...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à in...
6 comentários:
Concordo com João Caraça. A ciência tal como o universo não têm limites. Ambos são infinitos. A ciência faz parte do conhecimento, este está embebido na consciência, e esta está embebida no universo do qual faz parte. Sem dúvida que o conhecimento não passa de interacções do próprio universo. E também concordo que a ciência é apenas um entre muitos outros meios de diálogo com o mundo.
O diferendo entre ciência e tecnociência, ainda só agora começou. Temos que ter paciência para esperar, e não nos deitarmos a adivinhar. Nada podemos fazer quanto ao fluxo do tempo que tem que passar por nós.
Relativamente à carta enviada ao Director do Expresso, informo que ela não foi publicada, mas a cópia enviada ao jornalista Virgílio Azevedo, que tinha feito a entrevista a John Horgan, mereceu a seguinte resposta:
Caro Luís Alcácer, Tem toda a razão nas suas críticas. Em todo o caso, entrevistei também Freeman Dyson e a sua entrevista será publicada em breve na revista Única. Quanto a George Steiner, apesar da enorme ignorância sobre os assuntos científicos que lhe atribui, foi o coordenador geral da conferência escolhido pela Fundação Gulbenkian (João Caraça). Aliás, no desdobrável com o programa da conferência, o único texto publicado e assinado é o dele. Um abraço, Virgílio Azevedo
A entrevista a Freeman Dyson ainda não foi publicada.
Luis Alcacer
Um tema bem mais importante, actual e decorrente do aqui abordado é este:
"Convite
Apresentação do Livro
"Que Futuro? – Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente", de Filipe Duarte Santos
dia 26 de Novembro, segunda-feira, às 18 horas, no El Corte Inglês, em Lisboa
Sala de Âmbito Cultural (piso 7).
Resumo da Obra:
Que Futuro? - Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente aborda os principais desafios enfrentados actualmente pelo desenvolvimento social e económico, no contexto das mudanças globais no século XXI. Assim, apresenta uma análise pormenorizada das questões relacionadas com as alterações climáticas, a dependência dos combustíveis fósseis, a desflorestação, a perda de biodiversidade, a desertificação, a poluição do ar, da água, dos solos e dos oceanos, ao mesmo tempo que trata aspectos relativos aos problemas de superpovoamento, pobreza, injustiças sociais e económicas e conflitualidade.
A ênfase é colocada nas incertezas e nos riscos do futuro a curto prazo, nos próximos cinquenta a cem anos, no que respeita à degradação ambiental e à sustentabilidade do actual paradigma de crescimento.
Depois de analisados os discursos sobre o desenvolvimento e o ambiente – desde o prometaico e o da modernização ecológica aos mais radicais – defende-se que o discurso mais promissor para o futuro é o do desenvolvimento sustentável, embora a sua implementação nos últimos trinta anos esteja ainda muito longe do desejável.
Um grande livro escrito por um cientista português, reconhecido internacionalmente como um dos mais reputados especialistas mundiais nas matérias.
Biografia:
Filipe Duarte Santos é professor catedrático de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Desde a década de 1980 dedica-se sobretudo à investigação nas Ciências do Ambiente e em especial às Mudanças Globais e Alterações Climáticas. É professor convidado de várias universidades prestigiadas dos Estados Unidos da América e da Europa. Com cerca de cento e vinte artigos científicos publicados, coordenou a redacção do primeiro e único Livro Branco sobre o Estado do Ambiente em Portugal, publicado em 1991. Integra desde 1998 o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e é membro efectivo da Academia das Ciências de Lisboa. É gestor da área de Desenvolvimento Sustentável do Programa Ibero-Americano CYTED – Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento."
Gostei da forma "arrumada" como as ideias centrais sobre ciência são explanadas neste post, e cumprimento os responsáveis pelo blog pela publicação.
Agradeço tb a divulgação feita pela Joana, e caso ela apareça por aqui novamente, gostaria de retribuir com uma sugestão de um blog recente no qual encalhei por acaso e que se chama "Bolinas", em www.manuelrrocha.blogspot.com ( acho eue não me enganei ). Contém algumas escritos de elevado valor eurístico.
Uma última palavra para os autores deste blog em geral: acham aceitável que um de entre vós se permita apagar os comentários que ousam ir mais longe na análise do substracto dos seus escritos ?!
Obrigada José Arnault pela sua sugestão. Já dei uma vista de olhos e parece-me interessante.
Cumprimentos
Joana
Lol...
Aproveitei a boleia e tb fui espreitar o Bolinas. É uma boa alternativa para variar das desavenças entre o Dério e o Jonatas !
Enviar um comentário