A ficção científica é tão antiga como a ciência. Assim, não é de admirar que um dos primeiros escritores de ficção científica tenha sido o inglês Sir Francis Bacon, o teorizador do método científico que foi contemporâneo de Galileu e Kepler e, portanto, antecessor por pouco de Sir Isaac Newton. O seu pequeno conto de ficção científica “A Nova Atlântida” (de 1627) relata-nos uma ilha prodigiosa perdida no meio dos mares cujos habitantes dominavam as ciências e, por causa disso, as tecnologias. Vários inventos que, na altura, não existiam são descritos de forma literária e fantasiosa mas com uma premonição que hoje nos impressiona.
A “Nova Atlântida” de Bacon estava situada no planeta Terra, mas em breve a ficção científica levantou voo. E os cenários foram colocados mais acima. É bem conhecida a história da ida à Lua de Cyrano de Bergerac (“Viagem à Lua e História Cómica dos Estados e Impérios do Sol”, de 1662), a primeira descrição de uma viagem espacial. A Lua ficou ao alcance da ciência com a descrição do seu movimento que foi feito pela mecânica de Newton. Mas a imaginação literária não se poderia contentar com a Lua e subiu bastante mais acima, a Saturno e à estrela Sirius. O filósofo francês Voltaire, grande divulgador das ideias de Newton, escreveu por volta de 1732 um conto de ficção científica que só publicou em 1752, onde relata a “viagem de um habitante do mundo da estrela Sirius até ao planeta Saturno”. O livro existe em português numa edição belamente ilustrada por Vera Tavares (um dos valores da moderna banda desenhada portuguesa). Intitula-se “Micromegas” e subintitula-se “História Filosófica”. É curto, está bem escrito (a escrita de Voltaire tem a suprema virtude da claridade) e lê-se, por isso, rapida e gostosamente. Micromegas é um gigante à maneira de Gulliver que empreende viagens pelo espaço, contrastando os usos e costumes de cada canto do cosmos.
Apesar de se tratar de ficção científica (o tema chegou aos dias de hoje e é o do choque de civilizações que povoam sítios distantes do universo), a ciência e a filosofia atravessam o livro. O principal que se sabia de astronomia e física no século XVIII está dito ou subeentendido. A astronomia e física tinham ficado estabelecidas no século anterior por Newton, que Voltaire tanto admirava. O filósofo francês tinha contactado com as ideias newtonianas nas suas viagens a Inglaterra. Em 8 de Abril de 1727, poucos antes de ter escrito o livro, tinha mesmo assistido na abadia de Westminster, em Londres, às exéquias solenes de Newton (ainda hoje o túmulo do grande físico pode aí ser visitado). Em 1737 publicaria os “Elementos da Filosofia de Newton”, obra que tão importante foi para a importação das ideias de Newton para o continente europeu. Para Voltaire, “o Senhor Newton é um grande homem, de que aparece um exemplo um exemplo de dez em dez séculos.”
Nas suas “Cartas Filosóficas”, de 1734, subintituladas “Cartas de Londres sobre os Ingleses”, a 12ª carta é dedicada a Francis Bacon (“um grande filósofo, um bom historiador e um escritor elegante” e, mais adiante “o pai da filosofia experimental”), a 13ª a John Locke (“Talvez não tenha existido espírito mais sábio, mais metódico, um lógico mais exacto do que o Senhor Locke; contudo não era grande matemático”; no final do conto “Micromegas” Voltaire arrasa muitos filósofos, como Leibniz, o grande rival de Newton, mas poupa evidentemente Locke), a 14ª à comparação entre Descartes e Newton (o primeiro é colocado no devido lugar: “não creio que se ouse comparar, em nada, a sua filosofia à de Newton: a primeira é um ensaio, a segunda uma obra-prima”), e a 15ª, 16ª e 17ª às ideias de Newton (“o sistema do mundo, a luz, o infinito em geometria e à cronologia”, que são sumariadas de modo assaz cativante: “vou contar-vos o pouco que pude perceber de todas essas ideias sublimes”).
Foi Voltaire quem se interrogou, pela voz de um dos sus personagens de “Cândido” (um livro de 1759, inspirado pelo menos em parte pelo terramoto de Lisboa), se vivemos no melhor dos mundos. Para poder responder a esta questão temos de conhecer o nosso mundo e imaginar outros. É o que faz Voltaire em “Micromegas”. O gigante Micromegas anda a passear pelo grande universo, o universo de que Newton tinha descoberto os segredos matemáticos. Mas será a matemática toda a filosofia? No final da ficção, Micromegas oferece aos pequenos humanos, nomeadamente ao secretário da Academia de Paris, um livro de filosofia onde diz estar contido o sentido de todas coisas. Mas esse livro encontra-se inteiramente em branco...
LIVROS PARA SABER MAIS
- Voltaire, “Micromegas. História Filosófica”, Col. Livros de Oz. Íman Edições, 2001.
O livro, com tradução a partir da versão londrina de 1752 e posfácio de Rui Tavares, faz parte de uma colecção com cuidada apresentação gráfica, onde surgem outros títulos interessantes, como “A Metamorfose”, de Kafka, com desenhos de Pedro Nora, e “Cosmologia Essencial”, de Rafael Alvarez Estrada. Além do posfácio esclarecedor sobre o contexto em que o livro foi escrito, é fornecido no final aos leitores um conjunto de notas que os ajudarão a compreender melhor as alusões, por vezes de fina ironia, no melhor estilo de Voltaire.
- Voltaire, “Cartas Filosóficas (ou Cartas de Londres sobre os Ingleses)”, Colecção Problemas, Editorial Fragmentos, 1992.
Este livro valeu ao seu autor a perseguição em França. Voltaire foi mesmo obrigado a refugiar-se no castelo da sua amiga (ou melhor, amante) Mme. Châtelet. O caso não era para menos no tempo do “Ancien Regime” quando do outro lado do canal da Mancha algumas ideias surgiam como uma ameaça. Vale a pena trancrever o texto sobre tolerância religiosa que João Carlos Espada, director da colecção “Problemas” (onde surgem também Popper, Tocqueville e Russel) escolheu para a contracapa:
“Entrai na bolsa de Londres, esse local mais respeitável que muitas cortes; aí vereis delegados de todas as nacionalidades para utilidade dos homens. Aí o judeu, o maometano e o cristão tratam-se uns aos outros como se fossem da mesma religião e não chamam infiéis senão aqueles que fazem bancarrota; aí o presbiteriano fia-se no anabaptista, o anglicano aceita a promessa do quaker. Ao sair destas assembleias, pacíficas e livres, uns vão à sinagoga, outros beber; este vai baptizar-se, numa grande pia baptismal em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; o outro vai cortar o prepúcio ao filho e mandar dizer alguma algavariada em hebreu, de que não perceberá uma palavra; aqueles vão à igreja esperar a inspiração divina com o chapéu na cabeça e todos estão contentes. Se não existisse, em Inglaterra, senão uma religião, o despotismo seria de recear; se só existissem duas degolar-se-iam reciprocamente; mas, como existem trinta, vivem em paz e felizes.”
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9 comentários:
Caro Carlos Fiolhais,
Acha que a Ficção Científica teve um papel importante na ciência, no sentido que a ciência de hoje deve à FC. Pois eu acho que é ao contrário, e que em muitos casos, a FC desinforma. E que a maioria de os autores de FC, diz que "ela" tem muita influência na ciência, simplesmente porque adoram a FC.
Mas o facto é que ainda não vi estudos sobre o assunto, e o que me parece é que contrariamente do que se pode pensar, é que a FC, não tem tanto impacto na ciência como os amantes da FC dizem. Até porque se fosse assim, havendo tantos adeptos de FC, teriam que haver necessariamente mais cientistas dos que há.
Gostaria de ter a sua opinião, que usufrui de uma visão e experiencia privilegiada neste campo.
Cara Maria,
Desculpe meter-me na conversa entre você e o Carlos, mas parece-me que a FC tem tido considerável influência, se não na Ciência, pelo menos nas tecnologias. Três exemplos, de três tempos muito diferentes: Júlio Verne e a sua previsão de que as primeiras viagens a outros planetas obedeceriam às regras da balística; Arthur C. Clarke e a sua sugestão (feita nos anos 40 do século passado, salvo erro) do satélite de telecomunicações em órbita geo-estacionária; e Neal Stephenson, que no seu romance «Snow Crash» antecipou pela margem de 14 anos o programa «Second Life».
Quase que aposto, de resto, que cada um dos autores deste blogue tem razões (de várias ordens) para gostar do Stephenson. Estarei errado?
Caro José Luís Sarmento,
Meta-se na conversa, aqui é de todos.
O Caro Luís afirmou que
«Júlio Verne e a sua previsão de que as primeiras viagens a outros planetas obedeceriam às regras da balística;»
Pois bem, ele fez a previsão, só isso... Essa previsão não contribuiu, em nada, para as viagem no espaço, quem contribuiu foi: a 2ª guerra mundial, a guerra fria, galileu (leis que servem para descrever as trajectórias, Wernher von Braun, entre muitos outros... Ao passo que Júlio Verne contribuiu com zero.
«Arthur C. Clarke e a sua sugestão (feita nos anos 40 do século passado, salvo erro) do satélite de telecomunicações em órbita geo-estacionária;»
A sujestão Arthur C. Clarke na Wireless World magazine em 1945 foi ignorada, e só 20 (vinte) anos depois é que o primeiro satélite ,Intelsat 1, foi lançado.
Mas essa sugestão não foi feita no âmbito da ficção científica. Foi feita em parceria com o grupo técnico da British Interplanetary Society, ou seja: nenhuma relação com ficção científica, aqui a coisa assumiu critérios técnicos e científicos bastante claros.
«Neal Stephenson, que no seu romance «Snow Crash» antecipou pela margem de 14 anos o programa «Second Life».»
Ok, antecipou. Mas em que medida a sua antecipação contribuiu para que
o «Second Life» fosse criado? Acredita mesmo que se o Neal Stephenson não tivesse ecrito o que escreveu (e o genero Cyberpunk), o «Second Life» não teria sido criado? Só não teria sido criado (de certeza) se não houvesse internet ou PC's.
Não está nunca em causa a qualidade de entretenimento da FC.
Um exercício: retire-se toda a FC do mundo, e a ciência não sofreria muito. Agora se retirar, por exemplo, industria militar, ou farmacêutica, verá diferenças significativas.
A FC, parece que tem mais importância na ciência do que tem, é um "ilusão de óptica".
Cara Maria,
Provavelmente tem razão: se não houvesse Ficção Científica a Ciência provavelmente avançaria o mesmo. E a tecnologia também.
Ou talvez não. Para haver ciência e tecnologia tem que haver cientistas e técnicos - e quem sabe quantos jovens optaram por carreiras nestas áreas influenciados por Asimov ou Arthur C. Clarke? Tem que haver uma opinião pública receptiva a que se gaste dinheiro em investigação - quem poderá quantificar a influência da Ficção Científica nessa receptividade? Tem que haver desejos, que orientem escolhas, que determinem procedimentos - quem sabe a origem desses desejos?
Werner von Braun fez o que Verne só sonhou, sem dúvida. E fê-lo, não porque Verne o tivesse sonhado, mas porque a realpolitik do seu tempo lho exigiu; mas quem sabe a razão de o menino Werner ter decidido tornar-se físico e engenheiro em vez de filólogo ou professor de piano?
Caro Luís,
Uma nota no meu cometário anterior.
quando disse «primeiro satélite ,Intelsat 1, foi lançado.» deveria ter dito, o “primeiro satélite geostacionário”, pois antes já tinham sido lançados outros satélites, que não eram geostacionários.
Respondendo então ao seu comentário, aqui vai.
«Provavelmente tem razão: se não houvesse Ficção Científica a Ciência provavelmente avançaria o mesmo. E a tecnologia também.
Ou talvez não.»
Ou talvez não? Nesse caso, equaciona a outra hipótese da dependência da ciência pela FC?
Não quero acreditar que o equacione. Pensar que formula a hipótese de que se não houvesse, por exemplo, Júlio Verne, não teríamos a Astronáutica como a temos hoje.
«Para haver ciência e tecnologia tem que haver cientistas e técnicos - e quem sabe quantos jovens optaram por carreiras nestas áreas influenciados por Asimov ou Arthur C. Clarke?»
Ao dizer «quem sabe», di-lo bem, pois estamos num campo em que ninguém sabe mesmo. Mas no entanto, repare: a década de 70 até 90 foi rica em FC no cinema, TV, etc... Embora os puristas digam que isso não foi FC, como no caso da Guerra das Estrelas; no entanto, as enormes audiências e adeptos de FC nessas décadas deveriam produzir quantidades generosas de técnicos e cientistas, e isso nos "sabemos" que não ocorreu, hoje, verifica-se que há falta deles. Conclua, você mesmo, o óbvio...
Falou por exemplo em Isaac Asimov: repare que nada do que Asimov falou (no geral), está actualmente implementado, a robótica em nada se assemelha à visão de Isaac Asimov
«Tem que haver uma opinião pública receptiva a que se gaste dinheiro em investigação»
É falso. Hoje em dia é o mercado que cria a oportunidade para a investigação, no conjunto das várias indústrias; a militar, a farmacêutica, telecomunicações etc... Sustentando-a.
«quem poderá quantificar a influência da Ficção Científica nessa receptividade?»
Lembro-me de ter esta discussão com um colega de faculdade, fomos perguntando aos nossos colegas como se duma aposta se tratasse, para ver se que ali estava, estava movido pela FC, e no meu curso (área de ciência), a esmagadora maioria não ligava a FC.
«Werner von Braun fez o que Verne só sonhou, sem dúvida. E fê-lo, não porque Verne o tivesse sonhado, mas porque a realpolitik do seu tempo lho exigiu; mas quem sabe a razão de o menino Werner ter decidido tornar-se físico e engenheiro em vez de filólogo ou professor de piano?»
A sua dúvida tem resposta. Na sua biografia, está claro. Werner von Braun ainda criança, recebeu da sua Mãe um telescópio, e a partir dai surgiu o interesse pela a Astronomia e pela conquista do espaço. Aos 12 anos, inspirado pelos recordes de velocidade batidos por Max Valier e Fritzvon Opel (outra fonte de inspiração que não a FC), fez da suas, deitando fogo a um camião de brinquedos, no qual tinha colocado foguetes; mais tarde, adquiriu o livro (ou a cópia) Die Rakete zu den Planetenräumen (The Rocket into Interplanetary Space) do pioneiro em foguetes Hermann Oberth, e a partir dai, Werner von Braun, que era pouco aplicado em física e matemática, começou-se a aplicar. Parece-me claro e evidente que aqui não há FC.
A ciência é suficiente, e de que maneira, para se realimentar. A realidade ultrapassa em muito a ficção.
Veja aqui a opinião de Antoni Lloret, sobre FC vs Ciência.
Para saber quem é Antoni Lloret, clique aqui.
Parece-me que mesmo que quem está na ciência, não vai à FC buscar grande coisa.
Os apaixonados da FC, é que, de forma desfocada, presumem que a mesma é responsável por algo que não é.
Isto não implica que a FC seja má, ou coisa sem valor; não terá é o impacto na ciência que se julga ter.
Correcção no meu comentário anterior: na segunda linha onde se lê "cometário", deveria estar, obviamente, "comentário".
A ficção científica pode não representar nada para investigação científica e mesmo para a formação de muitos dos cientistas, mas presumir que a sua influência na ciência de hoje é zero, acho que é um exagero.
A F.C. como forma de arte, de imaginação, previsão de cenários sócio-tecnológicos, etc, tem tido um impacte considerável na inspiração de grandes nomes da ciência.
Claro que não tenho dúvidas que sem ela as invenções e investigações se fariam na mesma, mas viveríamos num mundo muito mais pobre.
Já agora, em relação a Asimov e Clarke: o robot humanoide da Honda recebeu o nome de Asimo como homenagem a Asimov; e a órbita geostacionária é por vezes chamada de "Clarke' orbit" em reconhecimento ao mesmo.
"A F.C. como forma de arte, de imaginação, previsão de cenários sócio-tecnológicos, etc, tem tido um impacte considerável na inspiração de grandes nomes da ciência."
Dizer é fácil... Gostaria que me dissesses onde está o impacto que tu afirmas; mas não é um impacto qualquer, não te ficas por ai, tu afirmas sem mais que ele é ""considerável"", não fazes por menos:-)))))))))
Já tentas sustentar o teus argumentos com o facto da atribuição de nomes, então os deuses da mitologia grega e romana
teriam grande influencia. Veja-se o projecto cientifico de maior impacto até hoje: a ida à Lua; tinha o nome Apollo... Logo aqui vê que este critério, a ser usado, levará a resultados ridículos. Onde um nome dado a dado projecto servir como inferência de algo é ridículo.
Sobre Asimov e a robótica de hoje, que estiver minimamente dentro do que se passa, verá que a influencia é irrelevante, a não ser se considerar que é de GRANDE RELEVÂNCIA o dar o nome a um robot.
Mas explorando o ridículo do argumento dos nomes, a actual sonda Kaguya, é um nome de uma princesa de um conto tradicional japonês, e esta missão é apresentada como a mais ambiciosa, dentro dos projectos lunares, depois dos programas americanos Apollo.
Consultar o link:
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1307567&idCanal=13
A queres sustentar o que dizes, não será com estes argumentos.
E sobre:
"e a órbita geoestacionária é por vezes chamada de "Clarke' orbit", está bem detalhado neste post e na Internet há documentação associada, que deixa claro que a "Clarke' orbit" tem associação ZERO com a ficção científica, todo este processo do satélite é ciência pura e dura.
Só mais um ponto.
Quando afirmas que:
«Claro que não tenho dúvidas que sem ela as invenções e investigações se fariam na mesma, mas viveríamos num mundo muito mais pobre.»
Há que ter em conta que a "probreza" verificar-se-ia no plano da literatura (o que é subjectivo)... Mas nunca na ciência; (agora mando um palpite que poderá não ser tomado em conta.) até poderia ser enriquecedor, a contar com a desinformção que é gerada.
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