segunda-feira, 2 de julho de 2007

UMA REITORA EM HARVARD



A propósito da actual discussão sobre a nova legislação do ensino superior com as consequentes alterações no modo de eleição/designação dos reitores, recupero uma crónica minha publicada no Público. Na foto Drew Faust, a nova reitora.

A tradição já não é o que era. Nem sequer na mais tradicional universidade americana. O dia 11 de Fevereiro último é um marco na ascensão das mulheres a lugares de topo: pela primeira vez em 371 anos, uma mulher foi escolhida para presidente da Universidade de Harvard, a melhor universidade do mundo. Chama-se Drew Gilpin Faust e é a resposta de Harvard à demissão do controverso presidente Lawrence Summers, que tinha feito declarações infelizes sobre eventuais dificuldades inatas das mulheres para fazer carreira nas ciências.

Faust, que estava há seis anos em Harvard, é uma “scholar” na história da Guerra Civil, nomeadamente a vida das mulheres nessa época (a mais conhecida é Scarlett O’Hara de “O Tudo o Vento Levou”). Nasceu há 59 anos no estado da Virgínia, doutorou-se na Universidade da Pensilvânia, onde ensinou, e é mãe de duas filhas. Desde cedo revelou uma opinião forte em questões de segregação, fosse ela de raça ou de sexo. Aos nove anos escreveu uma carta ao presidente Eisenhower protestanto contra a discriminação racial e, mais tarde, marchou atrás de Luther King. Tinha ficado marcada pelas palavras da mãe (“Querida, este é um mundo de homens”) e do pai (“não se pode confiar nas mulheres”). E lutou pelos direitos das mulheres nas escolas que frequentou, revoltando-se contra o facto de não ter podido entrar em Princeton, como os irmãos, por ser uma universidade só para rapazes.

Há nesta designação da nova reitora duas questões interessantes. A primeira consiste em saber como é que uma universidade de topo escolhe quem vai ocupar o lugar de topo. A outra consiste em saber o significado de essa escolha ter recaído numa mulher, fazendo com que metade dos presidentes das universidades da Ivy League (grupo de oito universidades de élite do Nordeste) sejam neste momento mulheres (Pensilvânia, Princeton e Brown também têm reitoras).

Faust foi escolhida por um processo complexo, que demorou meses, a cargo da Harvard Corporation (sete membros, cooptados pelo próprio grupo) e do Board of Oversees (trinta membros). Esse é basicamente o modelo das universidades privadas norte-americanas. Os donos escolhem quem fica a mandar na casa. Entre nós, os reitores são eleitos no interior das universidades públicas, por assembleias dos chamados “corpos” (professores, alunos e funcionários). Não havendo um óbvio “dono da casa”, as escolas são corporações que se autoregulam, numa tradição que vem da Idade Média. Para gerir a casa é escolhido então um professor local num conclave que conta hoje com uma larga – e sem paralelo no mundo! - participação de alunos e funcionários. Numa época em que a universidade portuguesa é varrida por fortes ventos de mudança as vantagens e as desvantagens de cada um destes dois tipos de modelos, nos antípodas um do outro, estão em discussão.

Por outro lado, na longa marcha em direcção à igualdade dos géneros, as universidades americanas estão em ânsias de corrigir a óbvia desigualdade que vem de trás. E talvez a designação de Faust queira dizer que Hillary Clinton tem boas hipóteses de chegar à Casa Branca. Curiosamente, aqui o caso português é singular. As mulheres constituem a maioria do corpo estudantil das universidades portuguesas: entram numa percentagem de cerca de 60% e saem cerca de 70%. E, embora ela diminua à medida que se sobe na hierarquia, temos também uma forte presença feminina nos claustros universitários. Somos também um dos países do mundo onde há mais mulheres cientistas. Porquê? Pode-se argumentar com a maior maturidade das raparigas nas idades pré-universitárias e universitária, mas esse argumento é internacional. Uma especificidade portuguesa será a desvalorização social do saber e a sua consequente má retribuição. Mas talvez uma causa mais profunda seja a extrema debilidade do nosso sistema escolar pré-universitário. Aí quem quebra é o elo mais fraco que, nessa altura, é formado pelos rapazes!

2 comentários:

Anónimo disse...

Carlos,

As “declarações infelizes de [Lawrence Summers] sobre eventuais dificuldades inatas das mulheres para fazer carreira nas ciências” baseiam-se naquela crença de alguns estudos levados a cabo nos 1960-70s, nos EUA, onde se dizia que era largamente reconhecido que as mulheres não eram talhadas para as carreiras científica e tecnológica, nem estavam interessadas nela. É sabido que as mulheres, ao longo da história, têm encontrado enormes obstáculos culturais e institucionais para se imporem profissionalmente. O número restrito de mulheres cientistas e de engenheiras, (este sector ainda é predominantemente dominado por homens?) deve-se a um conjunto de estereótipos. Desde conotar-se a ciência com o masculino, cientistas com homens, dizer-se que a mulher é menos competente que o homem, fazer-se crer de que as mulheres rejeitam a carreira científica por sentirem que não podem conjugar a sua vida familiar, casamento, filhos, quer com a exigência da carreira científica, quer com aqueles que recrutam, controlam e promovem, etc. até o equívoco de se considerar o desempenho científico como anti-feminino, explicam certas convicções e crenças de que a ciência é para ser feita pelo homem. A propósito, gosto do que diz Evelyn Fox Keller “…a exclusão de valores culturalmente relegados para o domínio feminino tem levada a uma efectiva masculinização da ciência ... tal exclusão será em detrimento não só das mulheres cientistas mas de todos os cientistas e concerteza em detrimento da própria ciência”. (Evelyn Fox Keller, “Women in Science”, Science, Vol. 236, No. 4801, May 1, 1987, p. 507.)

Vale a pena notar que este não é um assuto de mulheres mas sim uma matéria de interesses nacionais. E já não é novidade que grandes instituições quando pretendem recrutar cientistas escrevem mensagens deste teor (tenho este exemplo à mão): “ … Virginia Tech has a strong commitment to the principle of diversity and, in that spirit, seeks a broad spectrum of candidates including women, minorities, and people with disabilities.”(Outubro 2006. Ver também: National Science Foundation, 1996, Women, Minorities, and Persons with Disabilities in Science and Engineering: 1996 (Arlington, VA: National Science Foundation), NSF-96–311).

Nota - Em Portugal, há uma associação recente, sobre mulheres na ciência que tem vindo a desenvolver um trabalho digno de registo. Chama-se AMONET.

M Elvira Callapez

Anónimo disse...

Apesar do aumento do número de mulheres portuguesas no ensino superior, provavelmente a tradição, por cá, continua a ser a mesma. O sociólogo António Barreto disse à pouco tempo num documentário seu que a discriminação em relação ao trabalho das mulheres se acentua se estas forem licenciadas e que em média são remuneradas em menos 40%(?!) que os homens para desempenhar as mesmas funções. Pagava para ouvir que justificação têm, para estes números, os reitores das universidades onde elas se formam. Afinal, alguém anda a enganá-las.

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