sexta-feira, 6 de julho de 2007

ELOGIO DAS BIBLIOTECAS

Quando entrei para a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra disse, entre outras, as seguintes palavras de elogio das bibliotecas:

A biblioteca, qualquer biblioteca, é um mundo, um cosmos. O grande físico e divulgador científico Carl Sagan, no seu livro “Cosmos”, num capítulo significativamente intitulado “A persistência da memória”, escreveu:

“Os livros permitem-nos viajar através do tempo, de beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana. As bibliotecas públicas dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização, a profundidade da percepção que temos das bases de apoio à nossa cultura e o nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que damos às nossas bibliotecas”.

Quem leu suficientes livros sabe que eles são por vezes responsáveis pelo que nos acontece. Conhecemos pessoas através dos livros e eu conheço intimamente várias pessoas muito interessantes só através dos livros. ..

As palavras de Sagan fazem-nos evocar as de Descartes, que ele com certeza leu:

“A leitura de todos os livros bons é como uma conversa com as pessoas mais sérias dos séculos passados que deles foram autores”.

A mesma ideia surgiu numa conferência proferida em 1864 por John Ruskin, o grande artista, cientista, poeta, ambientalista e crítico de arte da época vitoriana, numa pequena cidade perto de Manchester onde ele estava a criar uma biblioteca. A citação é um pouco longa mas vale a pena:

“Partindo do princípio que temos quer a bondade quer a inteligência de escolher bem os nossos amigos, muitos poucos de nós têm esse poder, que limitada que é a esfera das nossas escolhas. Não podemos conhecer quem nos apetece... Podemos por acaso entrever um grande poeta e escutar o som da voz dele, ou fazer uma pergunta a um homem de ciência que nos responderá amavelmente. Podemos usurpar dez minutos no gabinete de um ministro, ter uma vez na vida o privilégio de atrair o olhar de uma rainha. E, no entanto, esses acasos fugidios nós desejamo-los, gastamos os anos, as paixões e as nossas faculdade a tentar alcançar um pouco menos do que isso, enquanto, durante esse tempo, há uma sociedade que nos é continuamente aberta, constituída por pessoas que falariam connosco tanto quanto o desejássemos, fosse qual fosse o nosso estatuto social. E esta sociedade, porque é tão numerosa e agradável e podemos fazê-la esperar ao pé de nós um dia inteiro – reis e homens de estado à espera pacientemente não para concederem uma audiência, mas para a obterem – nunca vamos procurá-la nessas antecâmaras mobiladas que constituem as prateleiras das nossas estantes.”

Pois as bibliotecas são esses sítios onde podemos falar com amigos que desconhecemos mas que nos querem conhecer. Marcel Proust, em “O Elogio da Leitura”, faz um comentário a Ruskin acrescentando:

“O que difere essencialmente entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menos sensatez, mas a maneira como se comunica com ele; a leitura, ao arrepio da conversa, consiste para cada um de nós em receber comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo a sós”.

Carl Sagan diz-nos que o saber dos livros é a custo extraído da Natureza: está a pensar nos livros de ciência, que são apenas uma pequena parte do grande número dos livros da biblioteca. Encontra-se com efeito em Galileo Galilei a ideia de que a própria Natureza é um livro, um livro que segundo ele descobriu “está escrito em caracteres matemáticos.” Assim, a maior biblioteca, a fonte de todas as outras, seria o próprio mundo, o Cosmos, com maiúscula. Já antes de Galileo a metáfora do do mundo como um livro aparece em Dante Alighiere, no último canto da ”Divina Comédia” (perdoar-me-ão que não cite os versos na língua original, onde eles soam ainda melhor que na língua de Pessoa):

“No seu profundo vi que já se interna,
ligado com amor num só volume
o que pelo Universo jaz esparso”.

Mais modernamente Jorge Luís Borges fala, no conto “A Biblioteca de Babel”, inserta no seu livro “Ficções”, do “Universo, a que outros chamam Biblioteca”. É um Universo infinito, caleidoscópico, que nos deixa atordoados e nos sobressalta a imaginação... Ele contém não não só todos os livros como a tradução deles em todas as línguas, todos os catálogos e o catálogo dos catálogos, “ad infinitum”...

O mundo é, portanto, uma biblioteca (se cito tantos autores é, como dizia Montaigne, porque deixo a outros a tarefa de exprimir o que eu não saberia dizer tão bem, quer pelas fraquezas da minha linguagem, quer pelas da minha inteligência”). E a biblioteca é por sua vez um mundo. Se acrescentarmos aos livros de ciência, de não ficção, os livros de literatura, de ficção, poderemos dizer que a biblioteca é um conjunto de mundos, do mundo que existe e dos mundos que não existem mas poderiam existir e, além disso, dos mundos que não existem nem poderiam existir. A biblioteca é afinal muito maior do que o mundo!

FOTO: Candida Höfer, Bibliothèque Nationale de France, Paris VI, 1998.

Candida Hoefer, a melhor fotógrafa de bibliotecas do mundo, fez algumas notáveis fotos da Biblioteca de Coimbra, que estiveram expostas no Centro Cultural de Belém na era pré-Berardo.

7 comentários:

Anónimo disse...

Carlos,

Para que se tire partido máximo do tesouro das bibliotecas, pergunto se, em Portugal, à semelhança do que acontece aqui, nos USA, já é possível:

1 - as bibliotecas estarem abertas das 7 – 24 h, durante a semana e fins de semana?
2 - os leitores, autonomamente, poderem circular por entre as prateleiras e recolher os livros e revistas que necessitam para a sua investigação? (logo, sem necessitarem de intermediários in loco para lhes ir buscar o material que necessitam). Não pretenderei ser injusta, mas lembro-me, por exemplo, de que na Biblioteca Nacional, há pelo menos 10 anos, a pessoa preenchia uma ficha para requisitar uma obra, entregava a um funcionário que ia buscar a obra, ficava à espera que a obra chegasse (demorava e às vezes não se encontrava bem aquela obra que se tinha pedido). E na altura não havia self service de fotocópias ...
3 – poder requisitar as obras que não estão disponíveis directamente aos leitores, via internet ou via empréstimo inter – bibliotecas e recebê-las por email ou em sua casa por correio?
4 - os leitores (academia) levarem para os seus locais de trabalho, de estudo, para casa, as obras requisitadas, durante um período e renovarem o seu pedido via internet?
5 – requisitar artigos on line quando eles são muito antigos e estão armazenados (não acessíveis ao público)?
...............

Deixo apenas algumas questões práticas que poderão servir de boas sugestões. Há de facto quem faça das bibliotecas a sua casa porque aí encontra muito do seu conforto!

M Elvira Callapez

Anónimo disse...

Pois... Mas no discurso oficial do nosso Ministério da Educação a pior coisa que o ensino pode ser (tal como a vida, subentende-se) é «livresco»...

Anónimo disse...

Sobre as várias questões levantadas por M Elvira Callapez, no comentário feito, tenho a dizer que não podendo atestar que todas as bibliotecas tenham os recursos e mecanismos que referiu, existem já bibliotecas públicas que preenchem os requisitos respeitantes aos pontos 2,3,4 e 5 da sua intervenção.

Dou-lhe razão na questão dos horários de funcionamento, pois aí urge o aumento de flexibilidade.

Acrescento ainda que me parecem fracas as tentativas ao nível escolar pré-universitário no sentido de cativar e instituir hábitos de visita a bibliotecas públicas.

Marcelo Melo
[www.3vial.blogspot.com]

Anónimo disse...

“A biblioteca é afinal muito maior do que o mundo!” :-)

Somos simples autores e leitores da biblioteca que é a realidade. Mas a realidade não precisa da nossa interpretação para existir. A nossa interpretação é algo que só interessa ao próprio e aos fãs simpatizantes que se auto inscrevem no clube. Essa interpretação até pode mudar a realidade mas é numa porção tão ínfima que é desprezível.

O antropocentrismo e os autocentrismos são maquiavélicos no sentido mais bárbaro do termo porque se nós e a natureza, como parece, absorvemos e evoluímos permanentemente por padrões que repetimos ou criamos, a máxima "à nossa imagem" só pode ser castrante e inviabilizadora de se construir uma abordagem profícua do que nos envolve.

Por isso, a ciência não se rege por conceitos subjectivos com vista a alimentar padrões subconscientes. Antes, rege-se, ou tende sempre alcançar noções rígidas e claras, mesmo que abstractas, com as quais se possa fazer 2+2=4. Qual lego do real, essas são as peças do edifício.

Já nas ciências sociais e de âmbito cognitivo por exemplo, é possível valorizar os itens a gostos pessoais para atingir uma versão própria. Podemos falar de história, ideologia ou movimentos sociais, correntes estéticas, psicologias diversas e muitas mais. É possível que seja importante reduzir o valor da metáfora.

Mas muitos autores como, por exemplo, Jorge Luís Borges têm a virtude de em qualquer parágrafo quase nos "colar" à realidade que descreve ou expõe. Espanta-nos este virtuosismo da linguagem. É arrebatador, quase sedativo, podendo criar dependência. (Não a mim que a falta de tempo e de pontualidade impedem hobbies demorados:-)

Enquanto os conceitos e aspectos das ciências humanas cognitivas e sociais, assim como a esmagadora maioria das artes e literaturas, acabam por poder ser utilizados de uma forma pessoal, tornando-se dúbios, a verdadeira arte e cultura (as que ficam) tem a verdade e o rigor dos "princípios universais" (apetece-me dizer dos princípios científicos) e, por isso, são muito claras, de mensagem curta e concisa.

Diria que o que perdura na verdadeira arte e cultura é basicamente sensação e não pensamento a explicar sensação ou sentimentos. A maioria das grandes obras humanas é independente do intelecto do observador para se impor como obra-prima. Ciência à parte, que essa vai buscar à realidade as tais pecinhas de verdade para nos entreter o intelecto.


Na minha perspectiva uma das principais causas para precisarmos de férias é a poluição visual. Muito mais para descansar das imagens e conceitos associados, do que do ar que respiramos ou do que comemos, é que, periodicamente, necessitamos do sossego da praia e do campo.

É muito engraçada a nossa sociedade! Qual médico diabolizado, dá-nos primeiro o mal para depois oferecer a cura. O Turismo! A indústria do século XXI! Com o advento do turismo espacial e dos complexos lúdicos lunares, a expressão"vou apanhar ar à montanha" vai dar lugar a "vou desgravitar pá lua". Sim, que isto da gravidade é uma chatice!

Por estas e por outras é que me parece que a poluição visual é a forma poluente mais negativa e perigosa actualmente. Claro que reconheço o direito de me acusarem de estar a "puxar a brasinha para o meu carapau" mas, o ser humano "come e respira" muito mais pelos olhos do que pela boca, nariz, cútis ou ouvidos e, convenhamos que a maior parte de nós vive rodeado de lixo visual que absorve a todo o instante.

Se esta vertente da poluição fosse por norma ponderada, tal como vai acontecendo com o ruído e outros itens que mencionei, possivelmente não teríamos que engolir barbaridades aterradoras como qualquer concurso televisivo tipo big brother, ou as nossas "lindas" cidades mais os seus belos arredores, ou até quem sabe dispensássemos aquele empregadinho de café supermaleducado.

Resta-me a esperança que um dia a ciência venha a identificar umas mãos cheias destes "vírus e bactérias visuais" e as vacinas estanquem esta pandemia em selecção evolutiva contínua :-)

Claro que pessoas de extraordinária capacidade, como nos conta o Professor Fiolhais no seu post Engenho Luso, prevêem as consequências muito antes de existirem os aparelhos ou os meios, quanto mais a sua difusão maciça de utilização, como Adriano Paiva quando dizia “A ubiquidade deixará de ser uma utopia para tornar-se perfeita realidade.” Estes, maior parte das vezes, e não sei se foi o caso, ainda são apelidados de "tontinhos", quando não, pior. Mas as ideias são imortais e o futuro é sempre das boas ideias :-)

Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Eu que pertenço a uma das ciências sociais mais escrava das matemáticas e da estatística não consigo entender que a ciência tenha “princípios universais” e que esses sejam a totalidade do real. Mesmo quando se recorrem a baterias imensas de métodos quantitativos e de dados observados, a prevalência do conhecimento originado é sempre parcelar e transitória. Foi com base em rupturas intelectuais que as ciências designadas habitualmente de “exactas”, o que já de si é uma contradição nos termos, evoluíram na tentativa de compreensão humana do real e do Mundo inteligível. Foi assim com Einstein, penso modestissimamente. É assim com Damásio e outros que desenvolvem a própria compreensão do funcionamento cerebral. E é assim com o nosso Magueijo, que começa com a ideação de uma ruptura que provavelmente, penso e peço esclarecimento adicional pormenorizado dos nossos físicos em serviço, subverterá, se devidamente aceite, os “princípios” estabelecidos sobre muita da física actual pós-newtoniana.
Lá que há uma realidade que está para além da existência e reconhecimento humanos, há. Mas que o único acesso a essa realidade é científico e sujeito a pretensos “princípios universais” fruto de um momentâneo entendimento humano, processado no seu cérebro, isso é contraditório quer com a noção de conhecimento científico quer com a do próprio tempo universal em que ele é produzido.

Anónimo disse...

Não quero parecer mauzinho, mas já que o Carlos se mostrou tão intransigente com os erros ortográficos no post "Grandes Erros" do dia 3 de Julho, sempre lhe digo que também tem um neste post. Encontra-se na frase: "As palavras de Sagan fazem-nos evocar as de Descartes, que ele concerteza leu". Sim, de facto a palavra "concerteza" não existe. Deve escrever-se "com certeza".
Nestas coisas, o melhor é seguir o exemplo do imperador romano (não lembro qual...) que, quando lhe apontaram um erro gramatical num discurso, terá dito "Eu sou imperador de Roma, sou mais importante do que a gramática!".
Concerteza não existe? Passa a existir!
Agora a sério: obrigado a todos os que aqui escrevem e se dão ao trabalho de partilhar tanto conhecimento com os simples anónimos como eu.

Carlos Fiolhais disse...

Com certeza! Já emendei, muito obrigado.
Carlos Fiolhais

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