O “eduquês”, o “politiguês”, o "economês", o “sociologuês” e outras estranhas formas de falar e escrever, existem por duas razões: primeiro, porque alguém as usa; segundo, porque alguém as aprecia. Sim, é verdade, parece que temos tendência para valorizar os discursos rebuscados e incompreensíveis, sobretudo se o seu autor evidencia entusiasmo, determinação e forte carisma, agilidade no uso das palavras, das metáforas e das citações e, além disso, opina facilmente sobre qualquer assunto. Quem discursa desta maneira só pode ser um distinto intelectual; quem não entende, um vulgar ignorante… Este convencimento será tanto mais forte quanto mais prestígio social e/ou académico…) o discursista reunir.
Este fenómeno é bem conhecido dos políticos que, numa tentativa de o optimizar, não olham a gastos com peritos no assunto para se fazerem valer. A este propósito, disse o grande matemático e filósofo Bertrand Russell, que também teve a sua incursão na política:
“As qualidades que tornam um político bem sucedido numa democracia, variam de acordo com o carácter dos tempos (…) em tempos de agitação é necessário ser orador impressivo — não necessariamente eloquente no sentido convencional (…) mas determinado, apaixonado e audacioso. A paixão pode ser fria e controlada, mas tem que existir (…) um político precisa é de ter capacidade de persuadir a multidão de que os seus desejos apaixonados podem ser alcançados e que ele, graças, à sua determinação implacável, é o homem para os realizar” (Russelk, 1993, 35).
Muitos escritores têm captado ampla e diversamente esta tendência, acontecendo, por vezes, imprimirem-lhe um fino tom irónico. Lembro-me, de imediato, de Gonzalo Torrente Ballester, que num livro interessantíssimo sobre as sempre conturbadas relações colegiais na universidade, põe este aspecto no centro do romance:
“D. Frederico, o Decano, era um professor extraordinário. Uma dessas pessoas que nos têm agarrados aos bancos só pela força das suas palavras. Sabia muito, mas, a maneira como dizia as coisas… Creio não exagerar. Mesmo que dissesse patetices, dava gosto ouvi-lo (...). Chegava, sentava-se a um canto da mesa, e sentar-se é uma maneira de dizer, encostava-se, dirigia-se a nós, nunca a ninguém em particular” (Balester, 1993, 67).
Já que estamos no plano académico, saliento que têm sido vários os epistemólogos, literatos, filósofos e cientistas a declinarem tal forma de comunicar, tanto entre pares, como entre estes e os leigos. Karl Popper, foi particularmente esclarecedor quando afirmou:
“[há] loucuras que não devemos tolerar. Antes de mais, a que leva os intelectuais (…) a escreverem num estilo petulante, impressivo (...). Este estilo, o estilo das palavras grandiloquentes, obscuras, impressivas e ininteligíveis, este estilo deveria deixar de ser admirado ou sequer tolerado. Ele é intelectualmente injustificável. Destrói o bom-senso e a razão.” (Popper, 1992, 173).
E, continuando nesse plano, recordo a denúncia bem urdida e bem disposta que Alan Sokal fez da aceitação deste estilo, mesmo entre aqueles que devem estar preparados para o rejeitar. Dispenso-me de explicar a “brincadeira” deste físico-matemático, dado que ela é por demais conhecida, mas não resisto a deixar uma frase do livro que ele escreveu em parceria com Jean Bricmont:
“Encontrámos um estudante em Paris que, depois de ter concluído de forma brilhante uma licenciatura em física, se voltou para a filosofia, em particular para Deleuze. Esforçava-se por compreender Différence et répétition [mas] admitiu que não via muito bem onde Deleuze queria chegar. Não obstante, a reputação de profundidade daquele filósofo era tal que o estudante hesitava em concluir que se, depois de ter estudado seriamente o cálculo diferencial e integral, não compreendia esses textos, era provavelmente porque eles não queriam dizer grande coisa” (Sokal & Bricmont, 1999, 203).
Ora bem, estamos perante um assunto que já foi estudado no âmbito da Pedagogia. Passo a explicar:
Nos anos de 1970, a questão do entusiasmo do professor interessou vários autores, nomeadamente Jacob Konin, a quem se deve a formalização dum quadro conceptual que permitiu, por exemplo, a Barak Rosenshine observar os seus efeitos em sala de aula (Vaz, 1989). Mas, foram D. H. Naftolin, J. E Ware & F. A. Donnelly que, em 1972, realizaram uma investigação que, quase de imediato, se tornou famosa, constituindo uma referência incontornável no debate sobre as implicações deste aspecto na aprendizagem.
Conjecturavam estes autores que os estudantes tendem a avaliar o desempenho dos professores pelas características de personalidade com que se apresentam.
Para testar a sua hipótese, contrataram um actor profissional que devia fazer-se passar por “especialista” na suposta “aplicação da teoria do jogo matemático à formação de médicos, e proferir uma palestra destinada a formadores profissionais.
Assim, um fictício Doutor Myron L. Fox, depois de ter sido devidamente apresentado, com realce para credenciais académicas de elevado nível – argumento da autoridade – usou de um discurso plausível, inspirado e envolvente mas sem sentido, tendo, para isso recorrido a neologismos, contradições, frases desconexas e, aqui e ali, um toque de humor.
Acontece que a assistência, além de não ter desconfiado do engano – nem mesmo o apelido do especialista, Raposa, o denunciou –, avaliou positivamente a palestra como bem organizada, claramente apresentada e estimulante (Sprinthall & Sprinthall, 1983). Ou seja, teve a ilusão de ter aprendido, mesmo quando não havia conteúdo para aprender!
Este curioso fenómeno – que ficou conhecido por "efeito de sedução educativa" – desencadeou durante a década em causa, diversos outros estudos cujo objectivo foi verificar se a expressividade do professor favorece ou não os resultados da aprendizagem. Apesar de os dados obtidos não apontarem todos no mesmo sentido, Perry, Abrami, & Leventhal (1979), com base num estudo de revisão da literatura, evidenciaram que esse aspecto do ensino tende a influenciar as apreciações favoráveis dos alunos, mas não o seu aproveitamento, o qual depende primordialmente do conteúdo da lição.
São várias as ilações que podemos tirar desta linha de investigação para o campo da educação; saliento uma que me parece de primordial importância: a necessidade de preparar tanto investigadores como educadores e educandos para, por um lado, valorizarem discursos claros, organizados, rigorosos, lógicos e, por outro lado, falarem e escreverem desta maneira. Só assim se adquire informação que se torna significativa e só assim é possível debater ideias, ingredientes fundamentais para o avanço do conhecimento e para se assumir a responsabilidade social que lhe está associada.
Dentre as muitas pessoas que têm procurado empreender esta dupla tarefa, e que se têm saído muito bem, recordo o físico Richard Feynman, prémio Nobel e grande divulgador de ciência, por ter sido das que primeiro me despertou para este assunto ao ler uma frase da sua autoria que nunca mais esqueci: “Se não fores capaz de explicar a física à tua avó é porque não percebeste grande coisa.”
Referências bibliográficas:
Ballester, G. T. (1993). A morte do decano. Lisboa: Caminho.
Natuflin, D. H.; Ware, J. E. & Donnelly, F. A. (1973). The Dr. Fox lecture. A paradigm of educational seduction. Journal of Medical Education, 48, 630-635.
Perry, R. R.; Abrami, P. A. & Leventhal, L. (1979). Educational seduction: the effect of instructor expressiveness and lecture content on student ratings and achievement. Journal of Educational Psychology, 71, 107-116.
Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Lisboa: Fragmentos.
Russell, B. (1993). O poder: uma nova análise social. Lisboa: Afrontamento.
Sokal, A. & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva.
Sprinthall, A. & Sprinthall, R. C. (1993). Psicologia educacional. Lisboa: Mc.Graw-Hill.
Vaz, M. P. (1989). Contributos para o estudo do curso magistral. Universidade de Coimbra: Faculdade de Ciências e Tecnologia, documento policopiado.
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6 comentários:
Se "temos tendência para valorizar os discursos rebuscados e incompreensíveis" e por outro lado, como as experiências mostram, em grupo facilmente trocamos a razão pela opinião da maioria então, este idioloquês pode transformar-se numa epidemia de consequências terríveis. Parece-me uma obrigação moral combatê-lo e a professora Helena é bastante elucidativa e deixa-nos argumentos muito claros. Obrigado.
Artur Figueiredo
Exemplos da forma como as coisas complexas podem ser explicadas por um discurso escrito simple podem ser encontrados, também, nos livros de divulgação científica de alguns dos cientistas portugueses da Física e da Matemática, para citar, apenas, estes ramos da Ciência. Ainda mesmo quando saem das fronteiras dos seu ramos específicos do saber.O caso do fictício Doutor Fox, relatado no post,demonstra à saciedade que até as assistências que deviam ser "globalmente" cultas se deixam enredar por credenciais académicas de quem muito fala e nada diz. Conta-se o caso de um indíviduo que chegado tarde a uma conferência de um desses "luminares" que tudo dizem saber e nada sabem, para se situar, pergunta ao vizinho do lado:"O quê que ele disse até agora?". Resposta pronta:"Até agora só falou!..." Felizmente, de quando em vez, somos alertados para não nos deixarmos encantar "pelo canto da sereia", ainda que disfarçada de Raposa. Deixou-nos essa alerta a Prof. Helena Damião. Saibamos estar atentos!
Fiquei deveras preocupado. Então não é, segundo Spiro Agnew, ex-vice presidente norte-americano (lido em "Escrito na Pedra", Público de hoje) que "um intelectual é um homem que não sabe como estacionar uma bicicleta"! Muitas bicicletas vamos ver prostradas no solo desta cidade, tida como "Lusa Atenas"!
Artigo fantástico. Percebi tudo o que estava escrito !!
Mande para o concelho de ministros porque lá só se percebe o que diz mário lino e o resultado é o que se vê...
Feynman tambem escreveu:
"To those who do not know mathematics it is difficult to get across a real feeling as to the beauty, the deepest beauty, of nature ... If you want to learn about nature, to appreciate nature, it is necessary to understand the language that she speaks in."
Este discurso do ser necessário conseguir explicar uma coisa à avó é uma falácia.
Quero ver alguém explicar as relações de Kramers–Kronig a uma avó que nem saiba contar.
Sinceramente que gostava. A ser impossível a última frase do artigo implica que ninguém sabe muito bem isso, o que acho que podemos admitir que é falso.
Este tipo de discurso da autora é tão pernicioso e fraudulento como as situações criticadas no texto.
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