domingo, 8 de julho de 2007

As cores do contraste

«Os deuses esconderam as tintas nas árvores, nos animais e na terra e guardaram para si o encantamento da tapiragem nas aves. E esperaram... ainda era tudo escuro, e ao mesmo tempo que foi criado o Sol e a Lua, Kúat e Iaê, os deuses da sabedoria mostraram a natureza como horizonte do homem para que convivendo com ela aprendesse a amá-la e respeitá-la. Pele pintada para dar vida à vida, cor às cores, para mostrar a alegria do existir e a razão do viver.» Lenda guarani


Conta outra lenda urbana mais recente - na realidade a audição das transmissões da Vostok 1 não o confirma, assim como não confirma o que a imprensa internacional publicou «Não vejo qualquer Deus aqui em cima» (pode ouvir aqui o registo oficial da Russian Space Agency) - que Yuri Gagarin transmitiu do espaço a sua impressão do nosso planeta com «A Terra é azul!». Embora tudo indique que a exclamação tenha sido proferida já na Terra, esta apreciação colorida do nosso planeta visto do espaço reflecte o fascínio que desde sempre a cor exerce sobre o Homem.

Esse fascínio é evidente se pensarmos que há cerca de 40 000 anos os homens utilizavam pigmentos naturais, dispersos em gorduras animais, em pinturas rupestres um pouco por todo o mundo de Altamira em Espanha, Lascaux e Font Gaume em França a Aurtherland ou ao Parque Nacional Kakadu na Austrália, passando pelo Parque Nacional de uKhahlamba ou Parque Nacional do Drakensberg na África do Sul, Laas Gaal or Laas Geel na Somália, as cavernas de Maros na Indonésia e de Niah na Malásia, não esquecendo a nossa anta pintada de Antelas.

De facto, o fascínio do ser humano pela cor (e pela luz) é um arquétipo que nos acompanha desde os primórdios da História. O homem adorou o Deus sol, o Deus raio, a Deusa lua, o Deus fogo, enfim, várias fontes de luz e associou-lhes cores. Em todas as culturas, os corantes e pigmentos cumpriram funções semelhantes: na Idade da Pedra, o ocre vermelho era quasi omnipresente em ritos funerários. O vermelho simbolizava o sangue em muitas culturas e relacionava-se com divindades de guerra como Marte, Febo e Ares: o vermelho era habitual nas pinturas de guerra dos soldados para que o poder dos deuses os acompanhasse.

Concomitante com a adoração de vários emissores de luz, quer a luz quer a cor foram utilizadas pelos seres humanos de forma terapêutica - recordo uma submersão em vermelho recomendada pelas minhas avó e bisavó durante o meu sarampo infantil. Aristóteles, Pitágoras, Paracelso, Goethe e Steiner dissertaram sobre o efeito da cor no homem e já os antigos egípcios usavam a fototerapia para tratamento de algumas afecções dermatológicas. Também a cromoterapia teve os primeiros adeptos nos sacerdotes egípcios.

Encontram-se vestígios de corantes em tecidos encontrados em múmias egípcias, tingidos com, por exemplo, indigo azul, extraído da planta homónima (Indigofera tinctoria), ou vermelho alizarina, da garança ou ruiva dos tintureiros (Rubia Tinctoria). Os egipcios utilizavam ainda pigmentos sortidos (os pigmentos distinguem-se dos corantes por não serem solúveis no meio de aplicação), que incluíam os primeiros pigmentos de síntese: branco de cromo e o azul do Egipto - preparado por calcinação de uma mistura de areia e cobre - que se tornou um importante item de exportação. Utilizavam também pigmentos naturais como o «azul ultramar», proveniente do lápis-lazúli, ocres vermelho e amarelo, hematite, calcário amarelo, ouro em folha, malaquite, carvão, negro de fumo e gesso natural.

Foram igualmente os egipcios que descobriram novos aglutinantes para estes pigmentos, goma arábica, clara de ovos, gelatina e cera de abelhas, aglutinantes que seriam usados até ao século XV quando Jan van Eyck e o seu irmão Hubert revolucionaram a pintura com a introdução do óleo de linhaça - e da pintura a óleo. Será a tinta homogénea inventada por van Eyck que Gutenberg utilizará na sua prensa.

Mas não é a falta de pigmentos ou aglutinantes que nos mostra uma Europa medieval vestida de cores tristes e apagadas. Se a natureza é rica em pigmentos vibrantes, os corantes necessários para tingir tecidos restringiam-se a poucos mais que os utilizados desde a Antiguidade clássica. E muitos destes corantes eram demasiado caros para a maioria da população pelo que a escolha da cor da roupa na Idade Média assentava em considerações monetárias e não estéticas. Para além de as cores do vestuário medieval serem ditadas pela bolsa - e estatuto social - dos utilizadores, estas desbotavam rapidamente embora se utilizassem mordentes para fixar os corantes, como o alúmen já utilizado pelos egípcios.

Apenas em pleno século XIX a química coloriu o quotidiano dando «vida à vida, cor às cores, para mostrar a alegria do existir e a razão do viver». Em 1856 William Perkin sintetiza por pura serendipidade a mauveína e com os seus verdes 18 anos percebe as potencialidades da descoberta dedicando-se por uns anos à produção deste - e outros- corantes sintéticos. O sucesso da mauveína assinalou o nascimento da moderna indústria de corantes sintéticos, que se desenvolveu principalmente na Alemanha do virar do século.

3 comentários:

Fátima André disse...

Fabulosa a magia das cores...
Obrigada por no-la recordar de uma forma tão bela que só enaltece a magnitude do Universo.

Anónimo disse...

Muito interessante. Só não concordo c/ Nero a viver no sé. I a.C.

Palmira F. da Silva disse...

OOps, claro que o a.C. está a mais.

Obrigado anónimo, vou já emendar.

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