sexta-feira, 6 de julho de 2007

Leituras

O José Reis Santos desafiou-me para escrever sobre o que ando neste momento a ler. Embora o José tenha considerado que as minhas leituras seriam interessantes, não sei se ficará decepcionado ao saber que, para além de livros científicos demasiado específicos para mencionar, a minha mesa de cabeceira está submersa em livros de autores angolanos.

Começo pelo «Nação Crioula» de José Eduardo Agualusa, incluído na colecção Mil-Folhas do Público, o único que lera antes da minha visita a Luanda. Como fã de Eça de Queiroz desde os 7 anos, quando descobri «As Minas de Salomão», o facto do escritor ter retomado a correspondência do aventureiro português Fradique Mendes foi suficiente na altura para mergulhar num livro que é uma crítica histórico-social fantasticamente conseguida.

O «Nação crioula» de Agualusa é o nome do último navio negreiro que cruzou o Atlântico na rota Angola-Brasil, pelo que depois da visita do Museu da Escravatura, situado ao sul de Luanda, na igreja de onde saíam os escravos para a viagem que muitos não concluiam, a releitura do livro assumiu novo significado. Além da força simbólica desta última viagem, o navio transporta clandestinamente um simbolismo da identidade crioula, Fradique Mendes, abolicionista na ficção de Agualusa, e a a sua companheira, uma escrava de nome Ana Olímpia Vaz de Caminha.

Agualusa recupera alguns destinatários das missivas de Fradique Mendes, acrescentando às cartas já publicadas a «correspondência secreta» que nos permite conhecer o outro lado de Fradique, desconhecido dos leitores de Eça de Queirós e que importa divulgar «pois nos tempos incertos e amargos que vão, Portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um mármore».

O livro inicia-se com uma carta a Madame de Jouarre, em que Fradique Mendes faz referência às primeiras impressões de Luanda, porto de embarque dos escravos destinados ao Brasil (embora formalmente proibido em 1830, este tráfico, que ao longo dos séculos levou vários milhões de escravos para o Brasil*, continuou clandestinamente por mais uns anos). A primeira missiva «secreta» de certa forma traça simultaneamente a ruptura e a continuidade com Eça e introduz o tema do livro, que se desenvolve em torno do comércio negreiro e das diferenças da colonização portuguesa em África e no Brasil, com referência às disputas entre Portugal e Holanda. Tendo ainda impregnadas as fragâncias de Luanda este parágrafo teve especial eco em mim:

«Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África».

A rota do Atlântico Negro seguida por Fradique e Ana Olímpia faz magistralmente a ligação com o Brasil de finais do século XIX. Numa narrativa que inclui personagens históricas como José do Patrocínio - que fundou em 1880 a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e três anos depois a Confederação Abolicionista-, ou Luiz Gama, o poeta brasileiro que em 1880 era líder da Mocidade Abolicionista e Republicana, Agualusa transporta-nos para um Rio de Janeiro onde a história de amor entre os dois protagonistas se desenrola entre abolicionistas e traficantes de escravos.

Como escrevi no livro do Museu da Escravatura, urge não deixar apagar a memória para que barbaridades como a que o Museu recorda não se repitam. E para mim esta obra de Agualusa é um monumento à memória de uma história que uniu Portugal, África e Brasil pelas rotas do Atlântico Negro, história que muitos tentam esquecer ou desculpar.

Venha quem vier, mudem as estações, parem as chuvas, esterilizem os solos, nós somos cada vez mais como as buganvílias: a florir em sangue no meio da tempestade. (Ana Paula Tavares, «O sangue das buganvílias».

Os restantes livros que tenho para ler - por enquanto só os folheei-, emprestados por uma amiga, não os consegui comprar em lado algum, são livros de escritores de gerações marcadas pela guerra civil, que considerei importantes para conseguir contextualizar e entender a Luanda que visitei. Para além de prosa e poesia de Ana Paula Tavares tenho o romance «Mayombe» de Pepetela, pseudónimo de Artur Maurício Pestana dos Santos, que confesso ter escolhido também por este ter frequentado o Técnico. Mas o facto de a história social e/ou política do período que me interessa ser tema de quase todos os seus romances foi o factor principal da escolha de Pepetela, cujo currículo inclui ter sido comissário político do MPLA e vice-ministro da Educação, e em especial da opção por este romance polémico.

Nas palavras do autor: «O Mayombe começa com um comunicado de guerra. Eu escrevi o comunicado e ... o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim nasceu o livro».

Claro que também contribuiu para a escolha ler que o Mayombe «É uma obra também contra o dogmatismo, o Sem-Medo era um Anarquista, não podia ser mas de facto era. A obra tem já uma série de advertências sobre o partido único mas a grande contribuição do Sem-Medo foi a da religião na política».

Passo agora a «bola» aos meus colegas de blog, ao Ludi, ao Carlos Amorim (CAA) e ao H. Carmona da Mota. Estou com especial curiosidade em saber o que lê José Pimentel Machado...

*Em 1633, Gonçalo de Sousa, superior dos Jesuítas em Angola, escreveu ao rei de Portugal queixando-se do facto de ser necessário efectuar longas e penosas incursões no interior para conseguir escravos para vender. (texto em pdf)

4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei desta recensão do Nação Crioula. Gostaria de ler o Mayombe; alguém sabe onde pode ser comprado?

Fátima André disse...

Palmira,
Obrigada pelo regresso recheado de boas sugestões de leitura e tudo MAIS!
:-)

Fátima André disse...

Já tentei várias vezes, mas sem sucesso não consigo descarregar o texto em pdf que indica no post de Gonçalo de Sousa (1633). Tenho alguma curiosidade em lê-lo. Obrigada.

José Reis Santos disse...

Palmira,

Excelentes recomendações, excelente texto. Admito que não li nada, mas despertaste a minha curiosidade. Temos de «trocar» alguns cromos...
Beijo
JRS

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...