quarta-feira, 25 de julho de 2007

Argumentação e subjectividade

A argumentação é um dos instrumentos mais importantes para alargar a nossa compreensão do mundo e melhorar a nossa intervenção nele. Infelizmente, este facto passa muitas vezes despercebido na nossa cultura. Ao longo dos séculos, Portugal não tem sido um grande produtor de conhecimento; estamos habituados a importar o conhecimento do estrangeiro. E por isso não compreendemos os processos de descoberta, pois nunca temos de descobrir — alguém, numa universidade, laboratório ou atelier estrangeiros, descobre por nós. Olhemos à nossa volta: todos os produtos humanos são fruto do conhecimento e da intervenção humana no mundo. As ideias científicas, tecnológicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas são fruto do esforço dos seres humanos para compreender melhor o mundo e para, com base nessa compreensão, melhor podermos intervir nele. Todavia, quase nenhumas das ideias que são o fundamento de todas estas coisas que nos rodeiam nasceram em Portugal.

É imperioso mudar esta cultura de dependência da importação de ideias; é imperioso que a nossa cultura seja dinâmica, criativa, autónoma, inteligente. A nossa cultura não pode continuar a ser a mera repetição da cultura alheia; é preciso que Portugal conquiste um lugar cultural e científico e que acrescente valor ao mundo. Para isso é necessário fornecer aos estudantes instrumentos que lhes permitam descobrir ideias novas e propor novos rumos. É necessário colocar os estudantes portugueses a par dos seus colegas dos países mais desenvolvidos, que desfrutam de um sistema de ensino baseado no estudo criativo e rigoroso de problemas, teorias e argumentos.

As teorias são construções humanas que procuram resolver problemas reais — não são elucubrações meramente formais para fazer carreira escrevendo obscuras teses de doutoramento que imitam a seriedade académica usando sem compreender uma linguagem especializada. Essas teorias defendem-se com base em argumentos. É o que acontece na história, na psicologia, na filosofia, na física, na musicologia, etc. Mas se o ensino não for baseado no estudo dos problemas, teorias e argumentos, o que é apenas teoria será ensinado como dogma para repetir, não permitindo que o estudante pense por si — sobretudo quando nem se lhe explica quais são os problemas que a teoria procura resolver. O estudante fica assim reduzido ao trabalho de repetição acéfala, sem estímulo nem instrumentos para avaliar as ideias que estão em discussão por esse mundo fora — imaginando que as últimas modas pós-modernas, ou pragmatistas, ou retóricas, ou liberais, ou o que quer que seja, são Verdades que não podem ser discutidas. No meu entender, esta é uma das raízes do atraso português.

O correcto ensino da lógica pode ser um antídoto para este estado de coisas. Pois é aí que se pode sublinhar a importância da argumentação no difícil e paciente processo de tentar descobrir a verdade das coisas; é aí que se pode sensibilizar o estudante para a importância de saber pensar, dando-lhe instrumentos lógicos adequados. O resultado que se pode almejar são cidadãos mais criativos e críticos, que trarão uma competência fundamental para um país que tanto carece de pessoas com capacidade para resolver os nossos problemas, produzir riqueza e bem-estar, e estimular com o seu exemplo os outros cidadãos a fazer o mesmo. Sem uma cultura criativa e crítica, informada e rigorosa, a discussão pública é sempre deficiente, e as decisões são sistematicamente tomadas pelos interesseiros que têm mais força ou que gritam mais alto, e não um resultado da reflexão criativa e rigorosa, informada e inovadora.

Numa cultura apartada da descoberta científica e da inovação cultural — uma cultura cinzenta e formalista — há a tendência para pensar que tudo o que não vem já matematicamente decidido nos livros importados do estrangeiro é «muito subjectivo». Esta posição tem consequências terríveis na vida pública, contribui para o subdesenvolvimento e a estagnação da sociedade, e impede o acesso à cultura das pessoas mais talentosas — pois se a opção é entre o que se decide matematicamente e com todas as garantias, mas já está nos livros, e o que não está nos livros mas é «muito subjectivo», nenhuma pessoa talentosa vê qualquer interesse em desenvolver o estudo e o pensamento, a cultura e a ciência, a sociedade e a economia. Portugal precisa de boas ideias, soluções engenhosas, debate informado e talentoso — e não de ideias feitas, soluções ingénuas, debates de café. Ensinar a debater ideias, avaliar argumentos, precisar pontos de vista, levantar contra-exemplos e objecções é, consequentemente, uma das tarefas mais importantes do professor.

Quem desconhece a lógica e está mergulhado numa cultura onde o debate de ideias é circense tem tendência para pensar que a argumentação é «muito subjectiva». Mas mal se estudam os elementos básicos da argumentação compreende-se que isto é uma ilusão. Sem dúvida que não há soluções fáceis e argumentos decisivos com três ou quatro proposições; para cada solução levantam-se problemas inesperados; para cada argumento levantam-se contra-argumentos e objecções. Mas isto não é surpreendente para quem conhece a história do pensamento humano. Para cada grande feito da ciência, da cultura e das artes havia multidões de Velhos do Restelo a dizer que era impossível fazer-se, munidos do discurso paralisante do costume. E, no entanto, essas coisas fizeram-se e as dificuldades ultrapassaram-se. Será mesmo verdade que é tudo «muito subjectivo»? E, nesse caso, será «muito subjectivo» afirmar que é tudo «muito subjectivo»?

Entre o algoritmo e o oráculo — que dispensam Verdades Absolutas aos pobres mortais —, e o paralisante relativismo e subjectivismo — que torna tudo igual a tudo —, não haverá alternativas? E que garantias oferece a opinião de quem nada ou quase nada sabe de lógica e argumentação, mas declara, confiante, que na argumentação é tudo «muito subjectivo»? No Capítulo 12 vimos como a pretensa diferença entre a demonstração, do «domínio do apodíctico» (o oráculo), e a argumentação, do «domínio do verosímil» (o subjectivismo, ou o inter-subjectivismo — a sua encarnação mais sofisticada) se baseia em confusão e falta de informação. Não será que é isso que se passa em geral? Afinal, quem nunca assistiu aos jogos olímpicos não acreditaria que um ser humano consegue saltar um muro de dois metros de altura sem lhe tocar.

Em qualquer domínio do conhecimento, das artes ou da vida pública, temos problemas para resolver e decisões para tomar. Para cada proposta, há argumentos a favor e argumentos contra; esses argumentos terão força desigual — uns serão mais fortes, outros mais fracos. O nosso trabalho é estudar cada um dos argumentos e tomar uma decisão, ou optar por uma proposta. Não há garantias; é preciso arriscar. Mas trata-se de um risco calculado. Em muitos casos, nomeadamente nos aspectos mais teóricos do conhecimento, podemos mudar de ideias; noutros casos, pode ser demasiado tarde para mudar uma decisão — a ponte pode já estar construída no sítio errado, ou o novo estádio de futebol financiado pelo estado pode já estar em construção. Somos todos seres humanos e temos de ser tolerantes para com os erros alheios — pois precisamos dessa tolerância quando for a nossa vez de errar. Mas devemos e podemos evitar os erros tanto quanto possível — e isso consegue-se através da discussão séria de ideias. É essa forma de discutir ideias — que produz riqueza e bem-estar, que alarga a experiência e o conhecimento humano — que urge ensinar. O lugar próprio desse ensino é a disciplina de Filosofia, que deu à humanidade esse instrumento espantoso do pensamento correcto que é a lógica. Aprender a pensar correctamente é a mais humana das aprendizagens.

Retirado do livro O Lugar da Lógica na Filosofia (Plátano, 2003)

13 comentários:

Alexandre Sousa disse...

No meio deste imenso Portugal, as vossas idas e vindas à volta da Filosofia, da Evolução, do Ser e Estar de uma certa maneira é um ar de frescura no meio da espantosa nuvem de monotonia que cobre o Povo no seio do qual nasci. É bom estar acordado, hoje!

João Vasco disse...

Subscrevo a 100%!!!

Anónimo disse...

Só quem não conhece a teoria das supercordas é que pode escrever isto: "As teorias são construções humanas que procuram resolver problemas reais — não são elucubrações meramente formais para fazer carreira escrevendo obscuras teses de doutoramento que imitam a seriedade académica usando sem compreender uma linguagem especializada"

Anónimo disse...

"Para cada proposta há argumentos a favor e argumentos contra" (Desidério Murcho). Aliás esse o princípio que ateia a fogueira da polémica, referenciado por Vitorino Nemésio da forma seguinte: "A palavra 'polémica' emigrou da arte da guerra - ou melhor da estratégia e fortificação. Aí significava os dispositivos sólidos e artificiais de combate - os estratagemas. Passou a traduzir então as atitudes opostas e pugnazes dos que não só pensam diversamente, afirmando diferentes proposições sobre o mesmo, - mas em adversidade, isto é: com ânimo de contrariedade e de oposição". Portugal teve grandes cultores desta arte de "guerrear". Uns belicosos e azedos, como Camilo que zurze Mariano Pina, de forma a deixá-lo a sangrar na arena da opinião pública: "É perfeitamente um sapateiro de máscara a dizer pilhérias que tresandam ao cerol(...)". Outros, como Eça, na análise de Esther de Lemos, cultor da polémica no desejo de "acutilar", instituições, costumes tipos humanos, aplicando-lhes a moralizadora "bengalada do homem de bem". Aparece agora em nossa época, internética, o "polemista/comentarista/anónimo" que nem sequer permite que se possa vir a recrear uma norma medieval (hoje de cortesia que se vai perdendo, felizmente num sentido, infelizmente noutro!) que levava o cavaleiro a deixar a dama transpor o umbral das portas à sua frente para...prever qualquer ataque traiçoeiro!... Em nossos dias a solução para a exposição dos nossos argumentos, sem ser num círculo restrito de gente bem intencionada, pode passar por deixar de andar à chuva porque, na voz do povo, quem anda à chuva molha-se. Para os que não são pusilânimes uma gabardine é uma solução: anda-se às intempéries sem que os ataques de anónimos nos enxarquem os ossos e o desprezo do silêncio, por ataques soezes, não sirva de guarda-chuva como último recurso! Há sempre o perigo de se ser vítima do gabanço à mesa do café: "Viram como eu cheguei para o tipo? Arrumei-o em duas penadas!"

Anónimo disse...

Revendo o meu comentário, dei por um erro: "enxarquem"...em vez de encharquem! Talvez, por associação de ideias, estivesse a pensar no verbo enxaguar. Vá lá saber-se! "In dubio", aqui fica a correcção devida.

koolricky disse...

A educação em Portugal precisa de um abanão. Não me vou perder a discutir trivialidades e tangentes ao problema como os meus caros bloggers cá o fizeram.
1 - É preciso uma aposta verdadeira no ensino primário. Alunos no 5º ano que não sabem ler uma frase sem soluçar ou não sabem dividir com casas decimais são abortos estudantis. Mas há-os!
2 - É preciso que a Universidade seja um veículo de disseminação de conhecimentos e de investigação de teorias aind não descobertas. As Universidades Portuguesas, salvo raras excepções, são passadeiras para a vaidade e autoritarismo.

Enquanto que não entendermos que só temos a ganhar com a colaboração de professores e alunos, nunca iremos sair do mesmo sítio.

www.mesadaciencia.blogspot.com

Anónimo disse...

De acordo com a parte final do comentário de Koolrick, apenas, porque aquilo que para uns possa parecer acessório para outros é importante, e vice-versa! Assim,como escreveu,"só temos a ganhar com a colaboração de professores e alunos", concordo com um senão que para mim é importante: desde que a colaboração de professores e alunos não seja uma mancomunação para facilitar cada vez mais um ensino a que se podem aplicar as palavras defendidas por Mao Tse Tung: "Um caminho demasiado plano não desenvolve os músculos das pernas!" E, infelizmente, o que mais se vê para aí são diplomados com cursos superiores (e de outros graus de ensino, do básico ao secundário) com umas "canelas" em cima das quais se mantém de pé, em equilíbrio instável, toda uma ignorância acumulada em passagens de anos consecutivos "ad libitum" do freguês!Mesmo sem tomar em linha de conta as famigeradas passagens administrativas... Julgo que nesse aspecto, estaremos ambos de acordo, ou não?

Anónimo disse...

Estou totalmente de acordo com o que é dito neste post. É uma pena que quem decide o que se deve ensinar nas escolas não concorde também. Tendo em conta o tipo de argumentos utilizados pelos políticos na defesa das suas ideias, ou para justificar a ausência delas, não me parece que tenham algum interesse em ensinar os eleitores a pensarem pelas suas cabeças e muito menos com lógica.
Pode ser que desta vez tenha sido a ciência a dar um empurrãozinho à filosofia, ou seja, com a internet surgiu também a possibilidade de qualquer pessoa poder assistir e participar em inúmeros debates sobre todos os temas possíveis e onde as armas disponíveis são exactamente os argumentos (aqui, felizmente, nunca chegamos a vias de facto).
Acredito que a necessidade de utilizar bem essa ferramenta (argumentação), leve a que, mais tarde ou mais cedo, o ensino da filosofia seja levado mais a sério nas escolas.

guida martins

Ludwig Krippahl disse...

Queria só dizer aqui que também concordo com a necessidade de ensinar isto aos nossos alunos, e que já o começámos a fazer no ano passado.

Deixo aqui o link para a cadeira de Pensamento Crítico, leccionada à licenciatura em engenharia informática, na Faculdade de Ciências e Tecnologia.

Focamos essencialmente argumentação e lógica informal, análise de modelos científicos e estatísticos, e decisão. Mas no site podem ver mais detalhes acerca de bibliografia, e até ouvir as gravações das aulas.

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Muito obrigado pelas vossas amáveis palavras. O curso de Pensamento Crítico da FCT da UNL é um caso único e que devia ser seguido em muitos outros cursos, tanto de ciências como de humanidades.

Guida, gosto sempre de ler as suas palavras, mas discordo da ideia, muito comum, de que são os políticos, sacanas, que não querem que os estudantes tenham acesso a instrumentos críticos que lhes permitam pensar por si mesmos, desde o secundário. Não são os políticos que decidem essas coisas, são os pedagogos anónimos do ministério que, munidos de um ilusório discurso libertador, fazem da escola cada vez mais fábricas de estudantes que não sabem pensar por si, sabem apenas repetir as ideologias ecologistas, igualitárias ou politicamente correctas do momento. Não foram os políticos, por exemplo, que fizeram o excremento que é o programa de Área de Integração. É fácil culpar os políticos, e os políticos têm a sua quota-parte de culpa, mas os problemas da educação resultam directamente da incompetência dos profissionais portugueses do ensino e não tanto dos políticos. Um pedagogo que me venha com cacas sobre dar liberdade de pensamento aos estudantes mas não sabe o que é um modus ponens tem de ser uma fraude. É tão simples como isto. E fraudes destas são atraídas para trabalhar no ministério, onde se ganha bem e se sai cedo, como as moscas são atraídas pelo excremento das vacas.

Anónimo disse...

Bom texto. Vou passar para meu Blog e indicar seu livro. Aqui no Brasil a lógica só é estudada nos cursos de filosofia. Gostaria muito que não fosse assim.

Marta Bellini
Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil

Anónimo disse...

Prof. Desidério, concordo com tudo o que diz em relação aos pedagogos do ministério, também penso que não há ministério que possa impedir um bom professor de ensinar correctamente os seus alunos. Se desta vez critico sobretudo os políticos é porque é a eles que pagamos para impedirem que estas fraudes continuem a ser atraídas para onde não deviam.

guida martins

Anónimo disse...

Cara Guida a resposta não está nas estrelas está nas palavras de Bertrand Russell:" Os cientistas trabalham para que o impossível se torne possível; os governos, para que o possível se torne impossível".

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