quarta-feira, 2 de maio de 2007

Literacia científica: à procura do arco-íris

Como referi no post «Literacia Científica», considero importante reflectir porque razão se encontra a sociedade em geral tão divorciada da ciência.

Este divórcio reflecte outro entre alguns sectores das ciências humanas e as ciências naturais, especialmente as ditas ciências duras. O fenómeno não é recente nem desconhecido e já era apontado em 1956 por Charles Percy Snow num artigo no «New Statesmann», retomado na célebre palestra Rede «As Duas Culturas» e continuado em dois livros com o mesmo nome.

C. P. Snow, que se descrevia «Por formação, ... um cientista; por vocação, um escritor» particularizou várias manifestações da separação entre essas culturas. E escreveu:

«Sorriem com um desdém compassivo diante da informação sobre cientistas que nunca leram uma obra importante da literatura inglesa. [...] rotulando-os de especialistas ignorantes. No entanto, a sua própria ignorância e a sua própria especialização são tão surpreendentes quanto as deles. Muitas vezes estive presente em reuniões de pessoas que, pelos padrões de cultura tradicional, são tidas por muito cultas, e que, com considerável satisfação, expressaram a sua incredulidade quanto à falta de instrução dos cientistas. Uma ou duas vezes fui provocado e perguntei quantas delas poderiam descrever a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta foi fria; também foi negativa. No entanto, eu perguntava algo que equivaleria em termos científicos a 'já leu uma obra de Shakespeare'?»

Richard Dawkins, numa palestra Richard Dimbleby 40 anos depois, intitulada «A Ciência, a Ilusão e o Apetite pelo Deslumbramento», apontava a sintomatologia da maleita:

«Tornou-se quase um lugar comum observar que ninguém ostenta ignorância sobre literatura, mas é socialmente aceitável ostentar ignorância sobre ciência e orgulhosamente clamar incompetência em matemática».

O diagnóstico de Snow, reiterado por Dawkins, continua actual cinco décadas depois. Também cá no burgo é socialmente reprovado alguém que cometa um deslize «cultural», mas apenas de uma das culturas, como, por exemplo, manifestar predilecção por concertos para violino de Chopin ou escrever um cartão endereçado a Machado de Assis. As maiores barbaridades científicas podem ser debitadas impunemente, e são-no com demasiada frequência, porque ciência não é «cultura»...

Diria que a sintomatologia se agudizou nos últimos tempos, também por culpa dos cientistas que se deveriam preocupar mais com a divulgação de ciência e em rebater algumas teses pós-modernas, que, na sua vertente mais «dura», negam a existência de um mundo físico objectivo cujas propriedades são passíveis de ser descritas por leis universais e reduzem a ciência a uma mera construção social.

No entanto, algo que sempre me intrigou é o facto de aqueles que equivalem a ciência a lendas e mitos sentirem necessidade de recorrer a termos científicos, que não entendem, na defesa de teses no mínimo duvidosas. Esta necessidade é magistralmente exposta por Alan D. Sokal (New York University, Estados Unidos) e Jean Bricmont (Université Catholique de Louvain, Bélgica) no livro «Imposturas Intelectuais» (publicado pela Gradiva, claro) .

Alan Sokal foi o autor em 1994 de uma paródia célebre, o Sokal Hoax. Sokal, num nonsense patafísico que faria inveja a Boris Vian, disserta sobre as implicações filosóficas e sociais das ciências naturais e da matemática. A revista «Social Text» não só aceitou publicar o artigo «Transgredir as fronteiras: em direcção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica», como o incluiu numa edição especial. Considero absolutamente imprescíndivel a leitura da análise do embuste por Paul Boghossian, traduzida pelo Desidério e disponível em formato pdf. As repercussões desse artigo catalisaram a escrita do livro, que li muito recentemente e recomendo.

Sokal e Bricmont pretendem mostrar que esses erros não são involuntários nem acidentais, mas que constituem imposturas deliberadas que pretendem impressionar e intimidar com uma pseudo erudição científica uma audiência ingénua e cientificamente iliterata. Como no título do artigo de Sokal, os autores criticados usam e abusam de termos científicos impenetráveis ao público alvo em contextos completamente non sequitur e recorrem deliberadamente a uma linguagem obscura, difícil ou mesmo impossível de entender, para vender puro lixo pseudo científico como lucubrações profundas.

A mecânica quântica, a teoria do caos e o teorema de Gödel (explicados nos capítulos 6 e 10 do livro) parecem exercer um fascínio especial em todos os obscurantistas. Os autores analisados por Sokal e Bricmont, que caucionam obscurantismos sortidos com as suas teses contra a ciência ou mais concretamente contra o «dogma imposto pela longa hegemonia pós-iluminista exercida sobre a atitude intelectual ocidental», não fogem à regra, elaborando ocas teses filosóficas que apenas demonstram que não fazem pálida ideia dos conceitos científicos em que supostamente as assentam.

O livro denuncia assim a influência crescente do relativismo epistémico (e consequentemente cognitivo) em certas áreas das humanidades, afirmando mesmo que há uma crise geral na epistemologia contemporânea cuja origem pode ser traçada a Popper, Lakatos e ao Círculo de Viena e às reacções de Kuhn e Feyerabend a uma delimitação demasiado restritiva do que é ciência pelos primeiros.

Em conversa com alguns amigos da «outra cultura», que curiosamente conheciam todos o livro, fiquei surpreendida com a reacção corporativa de alguns e ainda mais com algumas tiradas do género «os cientistas atacam as ciências sociais porque estas tiram as ciências duras do altar». O que está a milhas da realidade do livro, que não pretende atacar as ciências sociais - só analisa pensadores individuais e correntes de pensamento relativista - muito menos tem como objectivo defender as ciências exactas de qualquer «concorrente». Sokal e Bricmont criticam alguns autores porque o que escrevem não faz qualquer sentido. Dizer, como Lacan, que o pénis é equivalente à raiz quadrada de (-1) ou, que E=mc2 é uma equação sexista ou que o nome Big Bang é sexista, são disparates sem pés nem cabeça. De igual forma, é um dislate completamente absurdo afirmar que o Principia Mathematica de Newton é um manual de violação - Sandra Harding no «The Science Question in Feminism». Ao fim de algum tempo de conversa esses meus amigos reconheceram que eles próprios partilham a opinião de Sokal e Bricmont em relação aos visados, especialmente em relação a Lacan...

Para mim, no cerne desta dissociação cultural está um problema de comunicação a que subjaz um problema de linguagem e de metodologia. Isto é, as ciências naturais seguem regras lógicas muito estritas (e não, a racionalidade e a objectividade subjacentes não são sexistas) em que jogos de palavras não têm lugar; os artigos científicos incluem um glossário com definições precisas dos termos e símbolos utilizados. E a metodologia é igualmente rigorosa: uma teoria em ciência é aceite se for coerente com todos os dados experimentais conhecidos, que por sua vez são totalmente independentes dos «pontos de vista» de quem faz as medidas. Um espectro de fluorescência apresenta o mesmo desvio de Stokes em Portugal e na China, não depende da «cultura», sexo ou etnia de quem o traça. Uma teoria não é aceite pela forma «elegante» com que é apresentada ou porque a teoria anterior era «muito empobrecedora»...

Tal como Snow critica nas «Duas Culturas», acredito que a falta de comunicação entre ambas as culturas cria uma situação social e cultural que apenas prejudica a própria produção e compreensão do conhecimento. É essa situação cultural e social que urge alterar para que a ciência deixe de orbitar excentrica e longinquamente o público e volte a ser cultura central, discutida em mesas de café como hoje o é, por exemplo, a literatura. Como escreve Louis Berlinguet no prefácio do livro que reúne as comunicações apresentadas no simpósio «When science becomes culture»:

«No passado, o pequeno grupo de cientistas, que, com grande dificuldade, examinaram as primeiras leis do nosso universo, estava circundado pela sociedade. Com a expansão do conhecimento, nas palavras de Pierre Fayard, houve 'uma revolução coperniciana que tende a fazer com que a ciência gire em torno do público, e não o contrário'.»

5 comentários:

no name disse...

mas palmira, ciência é cultura! :-) decerto já que conheces, mas para quem não conhece, vale a pena visitar o site da chamada "terceira" cultura, http://www.edge.org/ que surge precisamente na sequência do que nos é contado na primeira parte deste post!

João Vasco disse...

Excelente artigo!

Vem pôr muitos pontos nos Is.

Anónimo disse...

Newton e Copérnico eram criacionistas.

Anónimo disse...

Parabéns pelo blog, que aliás leio profana e religiosamente.Em bom rigor, e dado os estudos de história e filosofia das ciências serem, em Portugal,incipientes ou risíveis,não deixa de ser curiosa esta parceria transdisciplinar na qual muitas entradas gravitam em torno da ciência.
É também curioso como a destempo (mas mais vale tarde do que mais tarde), ressurjam os topoi argumentativos e os casus belli que fizeram uma parte da história (a mediaticamente visível) da filosofia e da sociologia das ciências das últimas décadas(as "science wars", as "duas culturas", o "caso Sokal" - que, aliás, não pode ser simplesmente subsumido numa rábula sobre o "novo cinismo" de alguma sociologia da ciência, e que deixa em furor pânico "o velho deferencialismo" e cientismo).
Em boa verdade, quer este cinismo dos "programas fortes" da sociologia da ciência, quer "o velho deferencialismo" e cientismo resultam do desconhecimento consabido da natureza e limites da investigação e conhecimento científicos.Carecemos pois de um "programa forte" que promova a literacia científica (que conceda saliência à filosofia da ciência e à epistemologia), até porque "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo", e é urgente que a beleza se torne visível.

Paulo Rui

Anónimo disse...

Pertinente, voltar a trazer a ileteracia ao debate. Todos os posts sobre este assunto serão poucos e eu, por mais voltas que dê acabo sempre na Educação.

Tendo a noção que nenhum de nós, sobre esta matéria, se pode considerar inocente até provas em contrário, discordo dos discursos auto culpabilizadores. Afinal, o que poderemos nós esperar de uma sociedade mercantilista e consumista como a nossa.

Mas se o problema da ileteracia científica é grave, o que dizer, professora Palmira, da nossa cultura artística.

Quando, incautos, temos a ousadia de pronunciar termos como "formas de expressão artística", a esmagadora maioria dos nossos recém licenciados esbugalham os olhos (qual visão repentina do demónio) e gaguejando lá proferem um curto discurso em que se consegue perceber meia dúzia de palavras como techno não sei quê, hip pa trás ou hop pá frente, madona ou shakira e, invariávelmente unsnaoseidasquantasbarreiros acompanhados por umas "orquestras brejeiras" a que, agora me lembro, chamam tunas.
TRISTE! MUITO TRISTE!
(A revolução e aquele apego paternalista à cultura popular, convenhamos que não terá sido grande ajuda, no caso específico da cultura artística do nosso país.)

Bem sei que "politicamente correcto" é roupa prática (esta primavera, pelo menos até agora, não tem sido das mais quentes, pois não?) mas uma cultura do efémero só pode ser a sopa ideal para charlatanices, crendices e outras tolices humanas

Lembro-me que há uns bons anos, quando se discutia a ascensão do design de moda a forma de arte, os colegas do estilismo não apreciavam que a previsão destes resultados também fosse colocada sobre a mesa.

E, nesta matéria de modas, também tenho muita dificuldade em ver a ciência "mole ou dura" como uma bela virgem de trajes acetinados.(Que o diga ainda recentemente o Buescu e o seu hockey stick na cruzada à volta do aquecimento global.)

Já, o generalizadamente aliciante conceito de especialização, aliado à tentadora preguiça intelectual que aqui tem sido denunciada, dá pano para várias mudas completas.
Artur Figueiredo

NOVA ATLÂNTIDA

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