quinta-feira, 17 de outubro de 2019
Carta aberta: Capas e Kopos - Praxe e violência machista
Trancrevo Carta Aberta do jornal As Beiras sobre práticas sexistas da praxe académica:
Exmo. Senhor Primeiro-Ministro
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Procuradora Geral da República
Exmo. Senhor Ministro do Ensino Superior, Tecnologia e Ciência
Exma. Senhora Presidente da Comissão para a Igualdade de Género
Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra
No passado dia 1 de outubro, um “grupo de praxe” de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, intitulado Capas e Kopos, promoveu um convívio em que convidou mulheres a executarem práticas de cariz sexual, a troco de bebidas alcoólicas (shots).
Tal como consta do cartaz divulgado, estas práticas incluíam “fazer uma declaração ao falo do Maia”, “escolher alguém para te morder o rabo”, “beijar uma amiga”, “sexy strip no palco”, “mostrar as mamas”. Como sublinhava o cartaz, este acordo foi “apenas válido para meninas” e servia, como é evidente, para gozo do grupo masculino.
O caso foi – e bem – denunciado pela secção de Defesa dos Direitos Humanos da Associação Académica de Coimbra, o que provocou um vídeo de repúdio da parte do Capas e Kopos, divulgado no respetivo Facebook. Aqui, assistimos a um grupo de homens estudantes, trajados a rigor e em formação, reclamando a sua filiação ao Direito. Neste quadro, através de uma distorção dos conceitos de inimputabilidade e auto-determinação, e de toda uma série de mistificações relativas às liberdades fundamentais, o grupo condenava os colegas que, sob o pretexto da defesa dos Direitos Humanos, negariam às mulheres o direito de aceitar serem sujeitas às práticas degradantes a que tinham sido convidadas. No seu entendimento de “especialistas de Direito”, explicam que as liberdades pessoais estarão a ser ameaçadas pelas “feministas nazis”.
Juntamo-nos enquanto pessoas e associações que consideram urgente intervir socialmente contra estas práticas que degradam as mulheres, promovem a sua objetificação, e violam os seus direitos. Parece-nos particularmente grave que futuros advogados, magistrados, juízes invertam conceitos estruturantes da lei fundamental, a favor do seu próprio privilégio e da violência machista, que prenuncia a persistência dos vícios do sistema judicial relativamente às vítimas de violência doméstica e de feminicídio. São já mais de 30, este ano, as mulheres mortas na sequência de violência de género em Portugal. A naturalização deste tipo de discursos e práticas, em particular no contexto universitário, tem, pois, de ser combatida enquanto um dos muitos fatores sociais que contribui para este fenómeno.
Há muito tempo que a praxe excede todos os limites com toda a impunidade. Criou um Estado à parte, onde é possível exercer uma série de atos que, noutro local, seriam considerados crimes, mas que ali se desenrolam com naturalidade e o “fechar de olhos” das autoridades académicas, judiciais e dos governos central e municipais. Estes incluem, por exemplo, todo o tipo de violências, incluindo a violência sexual, agressões físicas e verbais, atentados à dignidade pessoal, conduzindo a mortes ou a traumas profundos, mas também destruição do património, atentado ao pudor, ocupação abusiva do espaço público.
Uma característica destes grupos, que marca a forma semi-clandestina como operam, é a sua não formalização, a não identificação dos seus protagonistas, que reforça a ideia de que sabem que agem à margem da lei, mas ficarão impunes. Este “anonimato grupal” e a desresponsabilização criminal é intencionalmente aproveitada para humilhar novamente as mulheres, para as objetificar sexualmente e perpetuar as desigualdades e a violência de género no nosso país. Cabe, pois, à sociedade civil organizar-se, agir, e apelar à intervenção das instituições e autoridades competentes, no sentido do respeito dos valores e direitos constitucionais e da lei em geral, bem como da sociedade democrática e justa que queremos, agora e no futuro.
Pode a Universidade alhear-se destas práticas e não aplicar os seus próprios regulamentos disciplinares? Pode o Ministério Público abster-se de olhar com atenção práticas de violência, que não estarão longe de configurar crimes de lenocínio? Pois este “grupo de praxe”, com intenção lucrativa, fomentou e facilitou a troca de favores sexuais (ou sexualizados) em troca de vantagens fungíveis, neste caso bebidas (cf. art.º 169º do Código Penal).
Mais ainda, poderá o Ministério Público ficar descansado quando o grupo de futuros juristas talvez tenha também cometido um crime de Discriminação e Incitamento ao Ódio e à Violência (art.º 240º do Código Penal)? Pois, com efeito, o que estes praxistas organizadores do convívio fizeram ao colocar apenas e só as mulheres em situações sexuais degradantes, utilizando expressões injuriosas/difamatórias através de um meio destinado à divulgação - os cartazes - foi, em teoria, difamar/injuriar um grupo de pessoas por causa do seu sexo e/ou identidade de género (cf. alínea d) do art.º 1240º do Código Penal).
Poderá, também, o governo ficar impávido e sereno perante mais uma situação que atenta a dignidade das mulheres e nos pode colocar, até, em violação da Convenção de Istambul (art.3º), de que o Estado português é signatário, bem como da Recomendação CM/Rec(2019)1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre Prevenção e Luta Contra o Sexismo? Não estarão os auto-proclamados “especialistas em Direito”, formandos de uma Faculdade de Direito, que também não se pronunciou, em clara oposição não só ao espírito como à letra da lei? É preciso que, finalmente, este assunto, em todas as suas manifestações, seja encarado com a seriedade que merece. Perante a repetição de casos deste género não podemos, enquanto sociedade, ficar em silêncio.
Catarina Isabel Martins e Tiago Rolino, (acompanhados por mais de uma centena de signatários) Coimbra
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5 comentários:
São estes os intelectuais que temos? são estes os futuros juristas , procuradores, juízes?! São estes os elementos que compõem, supostamente uma classe informada e o futuro do país?! Muito mal vai um país onde práticas destas passam impunes. Excelentíssimo Senhor Reitor da UC , rogo a Vossa excelência que dê o primeiro passo no sentido de os responsáveis serem punidos. Fechar os olhos a esta situação, configura a conivência com a barbárie.
Sendo mulher, que participou em praxes e sou sempre dizer “não” aos excessos e condenando quem as promovia e principalmente quem ia “para não ser posta de parte”, faço esta pergunta: quantas mulheres aceitaram o repto? Quantas?
Desculpem lá mas já não há pachorra para tanta ofensa.
Eles fazem estas praxes, elas também.
Eles convidam, elas também.
Elas aceitam.
Elas vão.
Não dizem “não” porque não lhes apetece.
Não tenho paciência para pseudo ofendidas.
Eu é que me falto ao respeito se me pedem para me despedir em troco de 1 shot.
Eu é que me falto ao respeito se me pedem para simular um ato oral em troco de 1 shot.
Maria Lopes
Curioso, ninguém se importou com praxes próximas da preparação de comandos suicidas e afins, tipo exercito das sombras, que custou a vida a vários jovens na Praia do Meco, e que, aparentemente, visava incutir de obediência cega e acéfala do "chefe", e usavam nome de universidades(inhas)
Todas as entidades a quem foi dirigida a carta-aberta não devem ficar caladas de modo particular a própria Universidade. Como vão ser os dirigentes do futuro, que formação integral vêm a ser esta?
Concordo com quase tudo. Também me faz alguma confusão esta gente que se ofende facilmente.
Acho, como a Maria, que quem sai pior tratado é quem aceita alguma destas propostas a troco de 1 shot, e por culpa própria.
Porém, se de facto houve quem tenha participado, talvez não tenha sido pelo shot. Talvez tenha sido por uma espécie de pressão dos pares (como em geral nas praxes).
Não se pode exigir da Universidade que puna gente parva por fazer propostas ofensivas. Podemos sim exigir que explique aos caloiros que praxe não é obrigatória nem a aceitação pelo grupo justifica qualquer humilhação. O fortalecimento do carácter também faz parte da formação dos alunos (ou devia fazer).
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