sexta-feira, 1 de julho de 2011
A IMORTAL HENRIETTA
Minha crónica publicada hoje no "Sol":
O livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, da autoria da jornalista Rebecca Skloot, agora em edição portuguesa da Casa das Letras, tornou-se um dos maiores êxitos do ano passado nos Estados Unidos, ao ocupar semanas a fio a lista de best-sellers do New York Times, ao receber vários prémios e ao ser logo traduzido para várias línguas. Vai até chegar aos ecrãs, pois Oprah Winfrey, a famosa vedeta de televisão, comprou os respectivos direitos para fazer um filme.
Alguns consideram a ciência fria e impessoal, mas este é, em contraste com essa ideia feita, um livro de ciência cheio de calor humano. A história pode resumir-se em poucas linhas: Henrietta Lacks foi uma mulher negra, mãe de cinco filhos (o primeiro dado à luz aos 14 anos), descendente de escravos e por isso pobre, que trabalhava nas plantações de tabaco da Virgínia, a quem, aos 30 anos, foi diagnosticado, no Hospital de John Hopkins, em Baltimore (na “ala de cor”, pois o racismo imperava na época), um cancro do colo do útero. “Tenho um nó dentro de mim”, tinha sido o seu auto-diagnóstico. O tumor teve um crescimento anormalmente rápido e necessariamente fatal, apesar dos tratamentos com radiação. Henrietta faleceu a 4 de Outubro de 1951. Mas, hoje, muitas das suas células continuam vivas em laboratórios de todo o mundo. Com efeito, uma biópsia permitiu retirar um conjunto de células que, ao contrário de outras amostras experimentadas antes, proliferaram num meio de cultura apropriado. Essa estirpe celular, que ficou conhecida por HeLa, do nome da doente, desencadeou um sem-número de experiências e descobertas científicas, por exemplo o desenvolvimento da vacina contra a poliomelite. E os produtos dessas descobertas foram comercializados a bom dinheiro, pois permitiam salvar vidas. Quer dizer, o tumor de Henrietta foi uma maldição para ela mas uma bênção para a ciência.
Acontece, porém, que a extracção das suas células não foi autorizada e que nem ela nem a sua família foram recompensadas em nenhum dos fabulosos contratos realizados à custa do seu material biológico.Uma das filhas que, conduzida pela autora do livro, visitou frigoríficos de um hospital onde se conservam células HeLa, lamentava-se de não ter um seguro de saúde que lhe permitisse pagar medicamentos de que necessitava, feitos com a ajuda dos tecidos da mãe. O problema ainda é actual: independentemente das questões raciais, bem retratadas no livro, uma parte de qualquer um de nós pode ser usada, sem autorização nem compensação, para benefício não só da ciência, o que seria o menos, mas também de alguma indústria multimilionária que nela assenta. Os problemas éticos, que se avolumaram na década em que Henrietta morreu, continuam tão vivos como as células que ela nos deixou.
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