segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Revista "presença" e a Poesia Neo-Realista (II)

A revista

Mas os testemunhos deste algo que é mais do que ‘preferir’ uns temas a outros temas – porque se vai ao ponto de se desvalorizar a importância dos temas e tópicos e sondagens que a presença, na sua prática criativa, privilegiava – são mais do que muitos. Mando Martins (pseudónimo de Armando Martins [Janeira]), por exemplo, no nº 20, de 1 de Dezembro de 1937, da revista Sol Nascente, observa, com algum acinte: « Régio é o poeta de si. Quase todos os seus versos cantam as baixezas e heroísmos banais do seu eu enorme(...) A poesia de Régio é uma asa fechada sem janelas para a rua; lá dentro, às escuras, um homem torce-se em combates e dores que não procuram a comunicação para se lavarem em amor humano. Esta submissão do mundo do 'eu do autor e a constante obsessão de si, dão às produções bem trabalhadas de Régio uma arquitectura inútil, a sensação de um estéril esforço em dizer inquietações comezinhas.» Considerar ‘inútil’ a arquitectura e ‘comezinhas’ preocupações com o bem e o mal, a dificuldade do convívio humano, a impossibilidade (ou extrema dificuldade) de se plenamente realizar o amor, a amizade e as suas armadilhas, a traição nas relações humanas, a difícil reconciliação do misticismo com o erotismo, a luta entre o misticismo e a arte, etc, etc. releva de uma tendenciosidade estreita e desconhecedora das realidades humanas: como se, resolvidos os problemas básicos da vida – distribuição justa da riqueza, boa alimentação e saúde – estivesse assegurada a felicidade na terra! Esta teimosa desvalorização de uma sondagem interior, em profundidade, para tudo se investir no ‘mais geral’ e ‘mais urgente’ pode ser uma tentação compreensível mas indicia também uma grande incompreensão do que é a natureza do criador de arte. «Os humanistas [leia-se: os presencistas]», observava Mário Ramos no nº 235, de 25 de Março de 1939, na revista O Diabo, «que possuem o privilégio de se colocarem au delà das coisas reais, fora da praxis, sem considerações do conflito material, negam automaticamente todo o humanismo. A realização do verdadeiro humanismo coincide com a destruição do klassemkampf [luta de classes, em alemão, para, à data, confundir a censura]. Só nesta medida, continuava Ramos, «pode ser considerado. Considerado 'au delà' das coisas reais, é uma alienação da consciência motivada pela falta de consciência das próprias coisas reais.» Em resumo, o conteúdo da poesia, da ficção, do teatro dos presencistas estaria « au delà das coisas reais» e não seria, ipso facto, um «verdadeiro humanismo». Ou aludes ao «conflito material» ou, simplesmente, não existes. Infelizmente, esta incompreensão do fenómeno da criação artística, derivada de um fundamentalismo impositivo, nem sequer se filia num verdadeiro pensamento de cariz marxista. O grande crítico e ensaísta americano – marxista – Edmund Wilson, no ensaio Marxism and Literature, inserto no livro The Triple Thinkers (Penguin Books, London, 1962), observa que Marx e Engels “tinham crescido antes de a grande era da literatura alemã ter terminado, e tinham ambos decidido, na sua juventude, que seriam poetas; reagiam às obras de imaginação, em primeiro lugar, em termos do mérito artístico delas.» Isto é, não era a orientação política das obras o que, em primeiro lugar, os interessava.

Wilson lembrava, a propósito, que, segundo uma filha de Marx, o pai amava o poeta Heine «tanto quanto a sua obra e era bastante indulgente para com as suas insuficiências políticas. Costumava dizer que os poetas eram pessoas peculiares, que deviam ser deixados em paz e que se lhes não deviam aplicar os mesmos padrões que se aplicam às pessoas vulgares.» Não tentar, pois, impor temas e orientações e deixar os poetas em paz, julgando-os, em primeiro lugar, «em termos do mérito artístico deles» foi, precisamente, o que Régio se não cansou de fazer e recomendar, até nos textos que, dele, acima, citei.

Régio coincidia com Marx e não é estranho que isso sucedesse: ambos eram cultos, ambos conheciam e amavam a grande arte e um era poeta e o outro tinha imaginado que poderia sê-lo. Ambos tinham, por outras palavras, um grande respeito pela arte enquanto arte. Wilson, no seu magnífico e seminal ensaio, diz ainda: «Não era característico de Marx nem de Engels julgarem a literatura – isto é, a literatura poderosa e superior – em termos de tendências puramente políticas.» A presença, como se viu, pela pena de Régio, não o fez – ostensivamente, não o fez. Mas muitos teóricos (e praticantes) do neo-realismo, mais ou menos encapotadamente, e, às vezes, bastante às claras, não se coibiram de o fazer.

Mas as ‘coincidências’ entre Régio e os verdadeiros patrões do marxismo não se ficaram por aqui. Engels, por exemplo, lembra ainda Wilson, «avisava sempre os romancistas socialistas contra os perigos da Tendenz-Literatur» e , ao escrever à romancista Mina Kautsky, acerca de um dos seus romances dizia-lhe que o herói e a heroína «ficavam dissolvidos nos princípios [políticos] que representavam», acrescentando: «Você, evidentemente, sentiu a necessidade de tomar politicamente partido, neste livro, de proclamar ao mundo as suas opiniões... Mas eu acredito que essa tendência deveria emergir naturalmente da própria situação e da própria acção, sem ser explicitamente formulada, e que o poeta não tem obrigação de fornecer ao leitor a solução histórica pré-fabricada para o futuro do conflito que descreve.» Régio não diria diferente, incluindo o uso da palavra ‘naturalmente’, por ele também utilizada, no texto atrás citado:«Quando as tendências ou atitudes políticas, sociais, éticas, religiosas, em vez de naturalmente se reflectirem nas obras de um artista, etc. etc.» Régio e os patrões do marxismo – os verdadeiros, não os “aplicadores” dos aparelhos políticos, supostamente alimentados de marxismo – afinal coincidiam nestas matérias, pela simples razão de amarem – por profundamente a conhecerem – a grande arte.

Conta Wilson que o próprio Lenine – homem que eu seria o último a canonizar, mas manda a objectividade se diga que era culto e bom amante da literatura – visitava um dia uma Comuna da Juventude, tendo então perguntado aos jovens presentes: «O que é que Vocês lêem? Lêem Pushkine?» Ao que um jovem respondeu, incendiado de zelo revolucionário: «Ah, não! Esse não passava de um burguês. Maiakovsky é que é o nosso poeta!» Lenine, sorrindo, observou: «Penso que Pushkine é melhor.» E o mesmo Lenine não escondia a sua imensa admiração pelo aristocrata e místico Tolstoi, do qual falava nestes termos: «Que colosso, hem? Que cérebro maravilhosamente desenvolvido! Ora aqui tem um artista à altura, meu caro senhor. E sabe o que é mais extraordinário? É que não se conseguia encontrar um único ‘mujik’ [campesino] genuíno na literatura, até este conde [Tolstoi] aparecer em cena.» Eis o que não hesitam em afirmar os que realmente amam a arte, porque profundamente a conhecem: para estes, a ideologia não dita nem o gosto nem a objectiva avaliação. A presença fez isto mesmo em relação aos valores válidos do neo-realismo que, por múltiplas formas, acolheu nas suas páginas: João Pedro de Andrade, que manteve com Régio um afectuoso diálogo, viu o seu teatro publicado e carinhosamente criticado nos espaços que a revista lhe dedicou; Namora e António Ramos de Almeida foram também alvos da atenção não hostil do autor de Em Torno da Expressão Artística, no nº 2, Série II, de Fevereiro de 1940: Namora recebe, aí, uma accolade mais positiva do que Ramos de Almeida, mas, em nenhum dos casos, o discurso de Régio revela antagonismo; no nº 52, de Julho de 1938, Guilherme de Castilho faz a recensão crítica atenta do livro de poesia de Namora (Relevos) e do de João José Cochofel (Instantes), e, last but not least, o neo-realista António Ramos de Almeida faz uma recensão crítica de um livro de outro neo-realista, Fernando Namora: em termos de abertura, seria difícil ir mais longe.

A presença fez, pois, questão de dizer e demonstrar com actos que metia a bordo da sua nau conteúdos vindos dos mais diversos quadrantes ideológicos, sociais, religiosos ou morais, não indiciando como ‘vida’ apenas o leque das suas sondagens mais visíveis ou mais preferidas; já o neo-realismo pareceu querer apropriar-se da ‘vida’, apenas nos seus próprios termos: a ‘vida’ interior, com os seus labirintos e conflitos, seria menos ‘vida’ do que a vida material, com todos os seus obstáculos. José Rodrigues Miguéis, em quem Teresa Martins Marques argutamente viu – em texto que permanece inédito: José Rodrigues Miguéis: Algumas Iluminações – o autor da «primeira narrativa neo-realista da literatura portuguesa [“O Acidente”, in Onde a Noite se Acaba (1946), anteriormente (1935) publicado em O Diabo, com outro título]», deu, no mesmo ano dessa primeira publicação (1935), mostras dessa ‘apropriação’ da literatura, que deveria, por obrigação, ‘orientar-se’ num único sentido: «Uma literatura que não procede às interrogações da sua época – pelo menos – está condenada ao esquecimento». Nem se tratava, aliás, de ‘apenas’ pôr os problemas da época, haveria também que dar-lhes resposta (solução), como se o artista, para isso, tivesse, automaticamente, competência...

A esta ‘exigência’ responderia Régio, com firmeza, no nº 44 da presença, de Abril de 1935: «Penso que a literatura pode responder a interrogações, pode tentar responder-lhes, pode simplesmente pô-las e pode nem sequer pô-las. Há a contar com a variedade dos temperamentos literários". (...) "Aceitemos", concedia Régio, «que toda a grande literatura põe interrogações, e lhes procura resposta. Pergunto: Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura busca responder? Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época? E não perdurará na medida em que, através ou não, de respostas provisórias, sugere uma resposta eterna a interrogações eternas, exprime inquietações eternas embora de forma pessoal?»

Não vou aqui reeditar o total de uma polémica que ficou célebre. Vou só recordar que o convite insistente dos neo-realistas aos presencistas para que estes se juntassem ao ‘bom combate’ da ‘sua época’ sofre um colossal abalo, se nos lembrarmos de que, durante uma prolongada e mortífera peste em Londres, Shakespeare se retirou para fora da cidade pestiferada, não para se preocupar com o destino dos seus contemporâneos ou para, de alguma forma, os socorrer, não para travar o ‘bom combate’, mas, simplesmente, para, aproveitando os lazeres que a peste lhe proporcionava, melhor polir os textos do seu imortal teatro : um teatro for all seasons.

Pergunto: devemos ficar-lhe gratos pelo que fez, ou condená-lo pelo seu egoísmo de artista? Aqui deixo a pergunta. Até porque o autor do Hamlet era, com certeza, mais competente a escrever teatro do que a travar qualquer combate. E não devemos todos fazer aquilo que sabemos fazer melhor? Não se podia exigir de Proust que escrevesse As Vinhas da Ira, nem de Steinbeck que alinhavasse as minúcias da Recherche. Os que metem a mão na massa da arte sabem que isto é mesmo assim. Julgo que os generosos e combativos neo-realistas pediam aos presencistas aquilo que se não deve pedir. Estes, pelo seu lado, pediam àqueles que fizessem como entendessem, que fossem como quisessem ser, apenas respeitando as exigências mínimas da arte. Os que o fizeram couberam sem dificuldade nas páginas da revista coimbrã.

7 comentários:

Ide levar no déficite ide disse...

Com tantas revistas nos anos 20 e 30 porque é que sempre vem a presença à baila?

E essa atoarda sobre a hagiografia Leninista

e Lenine chegou a um campo e disse porque semeaste.... a propaganda literária tam

E Estaline escreveu milhares de obras e poemas e obras científicas e discursos e só tinha de mandar fuzilar os ghost writhers de tempos a tempos

Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura busca responder? Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época?

não há respostas eternas

nem na física nem na biologia

e muito menos em coisas tão efémeras

como as artes literárias ou outras

quem lê Pedro homem de Melo hoje em dia

que sabe que um tipo em 1915 escreveu

No meu crânio, fria lousa

Nunca me encontro...

e já não me lembro do resto

houve centos de poetas perdidos

e esquecidos

alguns ficaram porque foram preferidos por uma certa intelectualidade que os validou

Ide levar no déficite ide disse...

Shakespeare se retirou para fora da cidade pestiferada? exist?

Shake's é imortal ou perdurou nos gostos durante 4 séculos e uns pozinhos

será pelas mesmas razões que a universidade de Coimbra e por arrasto as outras transformaram um pequeno grupo de autores nos íconnes nacionales?

Os que o fizeram couberam sem dificuldade nas páginas da revista coimbrã. ..pois
A águia não era de Coimbra pois não?

Ou o fado se tornou na canção nacional, apesar de haver outras modinhas regionais que nunca se impuseram nos gostos lisboetas
nem tiveram tempo para evoluir musicalmente...
enfim

Nem as obras de Heráclito ficaram imortais

ficaram só meia dúzia de rascunhos

de Apuleio chegou um Burro de ouro com muitos cortes

logo essa de imortalizar o efémero é...isso

Anónimo disse...

Sr. Gogol de Kapote, ouça lá esta:

Tanto disparate junto
foi coisa que nunca vi
a pretexto dum assunto
que muito bem conheci!

JCN

Anónimo disse...

Excelente visão panorâmica a respeito das razõs e atitudes que opuseram a rapaziada neo-realista do meio coimbrão (pobre Cochofel, tão feioso quanto mau poeta!) à pléiade presencista com Régio à cabeça, o colossal poeta de si mesmo, faltando apenas referir que os intelectualmente pelintras colaboradores da "Vértice" acabaram quase todos, após o 25 de abril, em directores-gerais (o que te havia de acontecer, ó Braguinha!), chegando o Namora, meu companheiro de casa, na Rua dos Militares, nº 1o, a presidente do Instituto de Alta Cultura. Que tropa! JCN

Anónimo disse...

Faltou a tinta... ou foi corte de tesoura?! JCN

Anónimo disse...

Quando a conversa decorre
de forma que desagrada,
quase sempre se recorre
à censória... tesourada!

JCN

Anónimo disse...

O modo mais corriqueiro
de fazer calar alguém
é amordaçar o parceiro,
cuja voz não nos convém!

JCN

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