sexta-feira, 29 de julho de 2011

Quando o futuro existia


O reencontro recente com um amigo meu, Manuel Paiva, físico português que durante muitos anos ensinou e investigou em Bruxelas, leva-me a recuperar algumas páginas (78 e 79) do livro "À espera de Godinho" (não, não é Godot, é Godinho!), com o sugestivo subtítulo "Quando o futuro existia", que publicou na Bizâncio em 2009, em coautoria com Amadeu Lopes Sabino, José Morais e Jorge Oliveira Sousa. É um saboroso diálogo sobre o nosso país entre quatro "estrangeirados":
"JM – Estão a tocar à campainha. Vou abrir.

MP – Deixa lá, eu vou. São sete e meia e estou a ver o Amadeu e o Jorge no jardim. O Godinho só vem às oito e duvido que chegue a horas. Os bolinhos de bacalhau têm prioridade!

JM – Pastéis, como se diz em Lisboa.

MP – O gosto é o mesmo… Ora vivam. Chegaram à hora em ponto. Nem parecem portugueses. O José está a terminar o nosso jantar.

JOS – Olá Manel!

ALS – Ora viva!

MP – Olá! Como estão? Podem vir até à cozinha…

JM – Não, por favor, instalem-se no salão. Só preciso de mais uns minutos.

JOS – Notícias do Godinho?

MP – Não vem antes das oito, mas vocês não vão esperar por ele. Que é que vos sirvo?

ALS – Para mim é um copo de água, se fazes favor.

JOS – Para mim também, por favor. Quero aproveitar o bom vinho português que o José por certo tem, e logo tenho que guiar.

MP – Estava precisamente a dizer ao José que é curiosíssimo que nos tenhamos conhecido através de livros destinados a portugueses de Portugal. Para o José e para mim, não nos aproximaram muito do país. Imaginem que o nosso editor tinha organizado uma apresentação dos livros na lindíssima livraria Lello, no Porto. Primeiro, levou-nos a um restaurante típico onde comemos bacalhau com o melhor vinho verde tinto que jamais bebera. Depois, devia haver um debate dirigido pelo Carlos Fiolhais, intitulado “Mais educação para Portugal”. Os convites tinham sido enviados às escolas do Porto e arredores. Sabem quantas pessoas apareceram?

JOS – Pela maneira como apresentas, calculo que uma dúzia…

MP – Infinitamente menos. Não apareceu ninguém. Como se um debate sobre a educação, por estrangeirados, não interessasse nenhum professor… O José e eu voltámos para Bruxelas e o Carlos para Coimbra.

JOS – E qual é a tua explicação?

MP – Com os portugueses as coisas passam-se sempre de maneira diferente daquilo a que estou habituado. É o que lá se chama “à portuguesa”, quando não “à portuguesinha”. Talvez sejam necessários contactos pessoais para que se desloquem, ou terão receio que se diga o que não querem ouvir? Pelo que tenho lido recentemente, Portugal é o país com a maior densidade de autistas, coisa de que no meu tempo não se falava.

JOS – Eu tive mais sorte com o lançamento de Paideia. A biblioteca das Galveias estava à cunha. Foi o Mariano Gago, velho companheiro do Juvenil, que fez a apresentação. Por coincidência no próprio dia em que cessou de ser ministro com a queda do governo de Guterres.

ALS – O Mariano Gago foi um dos companheiros que, no final dos anos 60, contribuiu para abalar o poder do Partido Comunista entre os estudantes universitários. Foi então que o conheci.

JM – Que coincidência! Ele assistiu uns anos depois, no Pavilhão do Conhecimento, a uma conferência minha, da Régine e do Alexandre Ribeiro, da Faculdade de Medicina, sobre música e cérebro. Tinha justamente tomado posse pela segunda vez umas horas antes, mudara de “farda” como disse, e no período de discussão pôs questões muito interessantes...

JOS — Pois para o Paideia, veio também a viúva do Vergílio Ferreira, a Regina, a nossa antiga professora do Camões, a Marina Pestana bem como muitos amigos e antigos colegas de Lovaina que já não via há muitos anos.

MP – Deves ter dado melhores dicas ao teu editor do que eu dei ao meu. Uma das coisas que apreciei no nosso jantar da semana passada, é que havia um ambiente de boa disposição, mesmo se falámos de coisas sérias. Em geral, jantar com portugueses é triste e já tenho apanhado secas de ladainhas de lamúrias. É um povo deprimido… Vocês já repararam que quando se cruzam com um português vosso conhecido e perguntam “como está?”, é raro que a resposta seja, como na Bélgica, “bem obrigado. E você?”. A maior parte das vezes é “mais ou menos...”, “vou indo...”, ou “não tenho andado nada bem...”, o que obriga a perguntar quais as origens das desgraças anunciadas, que é o prelúdio à inumeração de catástrofes de todo o género. Nós, com percursos tão diferentes, não é por acaso que terminamos as nossas carreiras na Bélgica e foi preciso esta aparição do Godinho para nos reunir! É como se muitos portugueses vivessem atulhados num pântano, com lodo até ao nariz. Quando alguém quer mudar as coisas, eles dizem-lhe que se acalme, que se junte a eles, que estão ali muito quentinhos, muito sossegadinhos, mas sobretudo que não faça ondas… Estou mesmo curioso para ver como ele evoluiu e se pertence à categoria do chico esperto maníaco ou do fatalista imóvel e depressivo.

JOS – O Amadeu já me tinha lembrado uma vez, e bem, que os estrangeirados do século XVIII voltaram a Portugal. Não todos, porém. Por exemplo, o meu longínquo parente, o Cavaleiro de Oliveira – filho de José de Oliveira e Sousa que foi secretário do conde de Tarouca, ministro plenipotenciário na corte austríaca – nunca voltou ao país e fez ele muito bem. Com efeito, foi queimado em efígie como “pessoa ausente e relapsa” no mesmo auto da fé em que foi supliciado o padre Malagrida. Proponho pois para os que não voltam que se chamem extrangeirados! Com o “x” da exclusão… Uma das causas da perseguição foi ter escrito um Discurso patético sobre as calamidades presentes sucedidas em Portugal. Como título não está mal! E de nada lhe valeu ser cavaleiro professo da Ordem de Cristo. O último da família Cavaleiro desta ordem que viria a desaparecer pouco mais tarde foi meu trisavô, o conselheiro Olímpio Joaquim de Oliveira, que precedeu o marquês de Fronteira como governador civil de Lisboa e acolheu o rei Carlos Alberto – pai do futuro primeiro rei da Itália unificada – no seu solar de Leiria. Está tudo pronto. Quanto tempo damos ao Godinho antes de começarmos?

MP – Le quart d’heure académique est passé. O Godinho não tem o teu número de telefone?

JM – Tem, mas vou verificar se não me enviou um mail.

JOS – Eu tenho aqui o número do telemóvel.

MP – Vocês são muito bem educados. Eu começaria sem ele.

JOS – Deixa primeiro verificar se chegou algum mail, senão telefonamos.

JM – Não, não chegou nada. Dá-me o número que eu telefono.

JOS – Não, eu telefono já, tenho aqui o número pronto… Está desligado… Vou deixar-lhe uma mensagem depois do bip sonoro… Olá António, são oito e meia estamos à sua espera em casa do José. Se teve algum problema para encontrar o caminho, ligue para este número ou para casa do José. Vamos começar sem si, mas o José diz que não vamos comer tudo. Até logo."

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu me vejo retratado
nesse Godinho do texto,
só variando o contexto
do cenário relatado!

JCN

"O problema não é meramente americano. É mundial"

Vale muito a pena ler o artigo do jornal Público que indico de seguida   Mais do que uma análise do estado da América, reflectido nas elei...