sábado, 16 de julho de 2011

A Literatura Portuguesa, um funil social?

“Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?” (Fernando Pessoa, 1888-1935).

Perante o desastre que foram os resultados dos exames de Português, quer no 9.º ano de escolaridade, quer no 12.º ano do ensino secundário, dei comigo a folhear um conjunto de pastas onde tenho centenas de artigos de jornal meus. Em boa hora o fiz ficando de bem com a minha consciência por não estar a chorar sobre o leite derramado por vasilhas do estado caótico a que chegou o ensino nas nossas escolas tornando-me, apenas, arauto, a posteriori, de uma situação por mim nunca criticada.

O meu primeiro grito de alarme soou num extenso artigo de opinião publicado no Jornal do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (Nov./Dez. 2005), na altura em que presidia à sua assembleia geral, intitulado “A Literatura Portuguesa, um funil social?”. Retiro do que aí escrevi este excerto:

“Em tempos de mudança de uma complexa e cuidada adaptação ao Processo de Bolonha foi publicada a recente entrevista do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Mariano Gago, de que destaco a criação de cursos de ensino superior curto
(Público, 07/11/2005).

Surge, assim, num horizonte de plúmbeas nuvens de cursos superiores a granel a criação de cursos superiores de especialização tecnológica no ensino superior curto (tendo já sido aprovados 70) ‘através de formações curtas e de acesso fácil’ porque para o acesso a estes cursos será abolida a prova de Língua Portuguesa, no dizer de Mariano Gago ‘um funil social’ (sic.)! Aliás, cursos com a duração inicialmente estabelecida para o ensino politécnico (dois anos) que rapidamente se sentiram capacitados, com o apoio de ruidosas pressões sindicais de rua, para conceder mestrados e que, apesar disso, esperneiam, qual criança birrenta, por lhes não sido dado acesso à atribuição de doutoramentos!

Desta forma, ficamos todos a saber que a Cultura Humanística, adquirida através da Literatura Portuguesa, pela leitura e interpretação de obras literárias dos seus grandes vultos, é um ‘funil social’ que, pelos vistos, tem impedido o avanço tecnológico nacional ao dificultar a entrada de iletrados no ensino superior!
[Sabemo-lo agora, estavam assim lançadas na terra da ignorância as sementes que fariam germinar o nascimento das Novas Oportunidades e Exames de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos].

Por este princípio ter assentado arraiais em território português é que, segundo a 'Caritas Europeia, nos deparamos com a tremenda realidade de ‘um em cada dois portugueses não perceber o que lê’ (Jornal da Sic 08/02/2005), reforçado pela análise de José Miguel Júdice, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, quando escreve que ‘uma esmagadoras maioria dos alunos universitários não têm capacidade para perceberem o que lhe dizem sendo completamente analfabetos em questões culturais’”
(Diário de Coimbra, 12/04/2004).

Assim, depara-se a sociedade portuguesa, amiúde, com licenciados de costas voltadas para a gramática quando escrevem ou falam, cometendo repetidos erros ortográficos em simples manuscritos que não passam pelos correctores ortográficos dos computadores! Dois meros exemplos: professores há que em requerimentos dirigidos ao respectivo conselho executivo escrevem e repetem ‘concelho’. Não se trata, portanto, de simples ‘lapsus calami’. Outros, nas correcções escritas dos trabalhos de casa dos alunos do 1.º ciclo do ensino básico (antigo ensino primário) repartem generosamente os erros de português com as próprias crianças.”

Como nos ensina a sabedoria popular mais vale prevenir do que remediar, agravo esse que não me pesa na consciência por ter prevenido atempadamente e em dever de cidadania a sociedade portuguesa dos verdadeiros crimes que se andaram a cometer, anos a fio, no ensino do Português, no qual as grandes obras dos nossos escritores maiores passaram a ser dadas em resumos de escassas páginas.

Só tardiamente se chegou à conclusão de que, para além de chover copiosamente em terras lusas, caíram sobre ela destruidores raios e coriscos que defeituosos pára-raios dos sucessivos ministérios da Educação não evitaram por terem descurado o princípio de quem “não mede não se preocupa com as coisas”.

Sabe-se agora bem porquê. Nestes últimos decénios varreram para debaixo do tapete o lixo de erros sucessivos em atribuir diplomas, mesmo de ensino superior, a técnicos de duvidosa formação técnica e científica e a verdadeiros analfabetos da Língua Portuguesa.

Mas os sucessivos erros não se ficaram por aqui. Escasso tempo atrás, Camilo Castelo Branco,foi retirado dos programas do ensino secundário. Refira-se, a propósito, que este escritor foi, injustamente, no calor de uma polémica, depreciado por Herculano ao ser atingido pela pena deste terrível fundibulário (embora anos mais tarde, como escreveu Jacinto Prado Coelho, se tenha tornado seu admirador confesso): “Apareceu um folheto, que parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me que é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida, algum talento do autor. Com o tempo, e estudando, este pode vir a ser um escritor sofrível, e habilitar-se, enfim, para tratar destas ou doutras questões com honra sua e proveito do país”.

Ao ser “excomungado” Camilo dos programas de Português, em fim de caminhada da tutela da Educação em mãos socialistas, foi desrespeitada a sua honra e o proveito do país roubando-se, para além disso, aos alunos do ensino secundário o usufruto cultural de uma figura maior da nossa literatura. Em contrapartida, para o pasmo ser maior, houve mesmo o desplante de constarem, num manual de português para o ensino secundário, conteúdos referentes ao programa Big Brother, que passou nas pantalhas televisivas nacionais.

É esta, portanto, uma tarefa ingente que aguarda Nuno Crato, novo Ministro da Educação, em altura de arrumar a gigantesca máquina tutelar da Educação, num tempo caracterizado pelo próprio Eça, e repetido em nossos dias, em que “a prática da vida tem por única direcção a conveniência”.

Infelizmente, o actual e estranho silêncio sindical parece longe de prenunciar notícias de desejável colaboração com a 5 de Outubro, antes a reunião das hostes para futuros combates que entravem o bom e desejável andamento de uma máquina justa que distinga os bons professores e premeie os bons alunos. É aguardar para ver!.

22 comentários:

Maria Nazaré de Souza Oliveira disse...

Excelente!

Um abraço

Rui Baptista disse...

Distinta Colega:

Grato, gratíssimo.

Anónimo disse...

Parvoíces assinadas
por Pessoa nem por isso
deixam de ser puro lixo
posto ao fundo das escadas!

JCN

Anónimo disse...

Eu acrescentaria:
Todos os professores de Português deviam ter no seu currículo dois ou três anos de Latim. Não se compreende por que motivo a disciplina desapareceu, na maioria das escolas.

Anónimo disse...

Se a cultura humanística teve a seu desfavor o fato de poucos escolherem os estudos superiores nessa área por "amor à camisola", mas antes por ser mais fácil do que a Matemática, por ser mais fácil de entrar, porque ficava bem juntamente com o falar francês e tocar piano... os sucessivos atropelos dados contra essa mesma cultura denunciados pelo professor Rui Baptista ainda mais consubstanciaram um descalabro cuja consequência final se me afigura, neste momento no protagonismo das minhas preocupações, pela escassez de interlocutores na área. Encontro mais interlocutores atentos sobre o assunto em áreas das ciências de que junto de quem, por direito de especialidade, se deveria pronunciar dando voz a mudanças necessárias. Muito me aflige que assim seja, embora não haja aqui qualquer novidade.

Finalmente a média dos exames nacionais de português é negativa. Finalmente!!! Todos se "queixaram" de ambos os exames (9º e 12º)por serem mais difíceis. Mas esta "dificuldade" gradual não é absolutamente necessária para repor a normalidade? É evidente que sim.

Mesmo assim, fui obrigada, pelo GAVE, a atribuir classificação a uma composição escrita cuja cotação só podia ser zero. E porquê? Porque era pedido um texto de opinião sobre o mar (hipoteticamente) e o aluno(a)escreveu (mal e porcamente, por sinal) uma opinião sobre os frúnculos do gato da sua vizinha. Segundo o GADO (para onde se telefonou para "aferir teimas") - o aluno(a) cumpriu o requisito de dar uma opinião, logo, tinha direito a cotação.

Aparte estes resquícios de uma cultura das bananas, a minha grande preocupação para já: os alunos do secundário vão entupir o sistema com recursos???

Vamos ver o que isto dá.

Grata, Rui Baptista, por escrever aqui sobre o português.
HR

joão boaventura disse...

Caro Rui

Não havia necessidade de chamar à colação o medo do silêncio sindical, considerando que há entre o sindicalismo e o actual Ministério da Educação um desnivelamento inultrapassável: ideologia do sindicato de um lado, e a independência do outro.

O choque é de alto risco e, como disse Helena Matos num recente artigo do Público, o sindicalismo tem de encontrar o seu caminho outro que esqueça o do passado.

Como diz o poeta:

"É de passos a dar que faço a viagem
E não de passos dados na paisagem
Já gasta de tanto a ver e ter de cor".

Se as gentes se renovaram no Ministério é chegado o momento de renovar as do sindicato para que o diálogo não seja de surdos, com vozearia, arruadss e manifestações que aumentam as tensões, provocam a conflitualidade, e aumentam o distanciamento das soluções.

Um abraço

Anónimo disse...

H(ilariantes) R(eflexões)! O Latim mais "fácil" que a Matemática?! Só quem o não conhece! JCN

Rui Baptista disse...

Caro Anónimo (17.Julho; 11:44):

Na verdade não se compreende (ou até mesmo não devia ser tolerado) que no currículo de todos os futuros professores de Português não seja ministrado o Latim uma vez que muitas palavras portuguesas têm origem latina, e outras gregas. Mas deduzo ser o Grego de maior complexidade a ponto de quando nos defrontamos com uma dificuldade se diga: Vi-me grego para resolver este problema…

E falo e defendo o Latim, apesar de ter terminado o meu curso liceal na Secção de Ciências (há tantos anos que quase lhes perdi a conta), em que dei esta disciplina durante três anos no 2.º ciclo dos liceus. No meu tempo havia o 1.º ciclo dos liceus (3 anos), o 2.º ciclo (3anos) e o 3.º ciclo com a duração apenas de um ano em que se optava por Letras ou Ciências. Receio bem que chegue o tempo em que o alunos aquando da sua matrícula no 1.º ciclo do básico sejam encaminhados em função do curso superior a seguir escolhido pelos seus progenitores.

E isto tem uns pós de razão. É uso definir-se a especialização como sendo o conhecimento de saber cada vez mais de cada vez menos. Razão teve Abel Salazar (cito de memória), médico, artista, etc. quando escreveu (e está citado buma lápoide do Instituto Abel Salazar da Universidade do Porto: Um médico que só saiba de medicina nem isso sabe…

Só no ano em que eu me encontrava no 6.º ano dos liceus é que surgiram, a partir do 5.º ano dos liceus, as diversa alíneas em função dos cursos superiores a seguir. Repare que, hoje em dia, o Latim não é ministrado aos próprios alunos dos seminários fazendo com que os padres (que passaram a dizer a missa em português) deixem de continuar a ser seu fiéis depositários e transmissores.

Pode ser que este nosso (meu e vosso) apelo chegue às instâncias superiores. Todavia, devido à dificuldade do Latim e ao facilitismo que é difícil erradicar do nosso ensino em que a democracia se confunde com a mediocracia me pareça estarmos a perseguir uma espécie de linha de horizonte sempre a afastar-se quando a desejamos alcançar seja uma utopia.

Rui Baptista disse...

Caríssimo HR: Em jeito de preâmbulo, se tivesse que dar um título a este meu comentário seria: O Ensino, uma profissão que o não é e a Ordem dos Professores.

Posto isto, vou ao cerne da questão. É sempre com prazer e proveito que leio os seus comentários sempre com o objectivo de lançar novas achegas aos temas postos a discussão nos meus post. Obrigado, portanto.

Julgo que algumas questões por si levantadas já foram por mim respondidas (bem ou mal) na minha resposta ao comentário anterior. Se, todavia, verificar haver pontos nebulosos (ou mesmo deixados por responder) neste comentário, peço-lhe o favor de mo dizer. Mais de uma vez, tenho afirmado que certos comentários feitos pelos leitores são uma espécie de alma que vivifica a matéria dos meus posts.

Como sabe, a aptidão para as Ciências, para as Letras, para o Desporto, para as Artes depende das áreas corticais. Isto, não significa, de forma alguma, que a plasticidade do cérebro, através do estudo aturado e de um árduo trabalho, não contribua, em parte, para a melhoria dessas aptidões. O genoma humano interage com o meio ambiente mergulhando as suas raízes no caldo cultural que o rodeia. Sintetizou isto mesmo, e de forma lapidar, o filósofo espanhol Ortega y Gasset quando escreveu (cito de memória): “O homem é o homem e a sua circunstância”. Mas aqui surge, numa época escrava de percentagens e de estatísticas, a dificuldade em quantificar essas percentagens.

Tempos houve em que os alunos com dificuldades com o “papão” da matemática, terminado 0 5.º ano dos liceus, optavam por seguir alíneas das Letras vindo a formarem-se nesses cursos ou em Direito onde se tornavam brilhantes profissionais.
Mas o que mais me impressionou no seu comentário foram os liames que o GAVE coloca na liberdade de uma profissão de estatuto superior no que respeita à correcção dos pontos de exame coarctando aos respectivos classificadores a liberdade de acção que existe noutras profissões de idêntica exigência académica. Qual seria a reacção de um médico, de um engenheiro ou de um advogado se houvesse um organismo tutelar a dizer-lhes como deviam fazer determinada cirurgia, construir uma determinada ponte ou a defender um seu constituinte em tribunal? No caso que relata o aluno teve “direito” a ser classificado por ter cumprido o requisito de ter dado a sua opinião em que se lhe perguntou alhos e ele respondeu com bugalhos! E assim se institucionaliza o reino da asneira, sem que alguém grite da multidão dos encarregados de educação, ainda que em simples dever de cidadania, que o rei vai nu. Como diz o povo: “Valha-nos Nossa Senhor da Agrela… que não há Santa como ela!”

E aqui, mais uma vez, quase me obrigo em desespero de causa, em defender, pela enésima vez, a necessidade da criação de uma Ordem dos Professores que regule a independência de uma profissão que se resume a um exercício profissional, como tal, sem a devida credenciação que lhe dê o estatuto e a assunção plena e responsável de actos próprios da profissão. Julgo que esta será uma questão a ter em conta pelo actual Ministério da Educação numa altura em que ele próprio se queixa do demasiado peso institucional que recai sobre a sua pesada máquina.

Com o vê, o seu comentário levantou questões que não devem cair em saco roto de quem de direito. É caso para dizer, bem nos bastou o tempo da Ana Benavente, Maria de Lurdes Rodrigues e de Isabel Alçada.

Rui Baptista disse...

Em devido tempo: Na 2.ª linha do 4.º§ do meu comentário anterior, onde escrevi"depende das áreas corticais", deverá ser acrescentado: depende de áreas corticais específicas.

Rui Baptista disse...

Caro João: A nossa amizade de longos anos e os diálogos por nós mantidos em longos e proveitosos (pelo menos para mim) conciliábulos, em tertúlia de café, que nos levavam a divergir em alguns pontos para que chegássemos, grande parte das vezes, a conclusões conciliatórias, desta vez, não fez jus completo à tradição desses velhos e saudosos tempos. Não podia estar mais de acordo com o teu comentário.

Será que os anos e a experiência da vida amoleceram o meu espírito agonístico? Começo a preocupar-me.

Recebe um abraço de muita estima.

Rui Baptista disse...

Caro João: Em resposta ao teu comentário, acabo de publicar um post intitulado "Um artigo de Helena Matos, um comentário de João Boaventura e o sindicalismo docente".

Umgrande e amigo abraço.

Anónimo disse...

Acha, caro Dr. Rui Baptista, que nos seminários se deixou de ensinar ou aprender Latim?... Olhe que os padres, além de não serem propriamente os fiéis depositários deste nobre idioma, eram instados a aprendê-lo, não para dizerem missa, única e exclusivamente, mas para se habilitarem a interpretar os textos sagrados nas suas versões originais e a enriquecer humanísticamente o seu espírito na sã leitura dos clássicos da latinidade, raiz inamovível da cultura ocidental e cristã. Assim é que é! Também por lá passei, tirando-lhe proveito. De resto, se a alguém compete zelar pelo fogo sagrado, atiçando-lhe as chamas, é à instituição universitária, onde hoje ainda os humanistas pontificam. Tire do seu espírito essa dos padres... rezando missa em português! Como haveriam de ler quotidianamente os seus extensos e obrigatórios breviários?... JCN

Cláudia disse...

A Matemática é anterior ao Latim!

E para ao uso do próprio latim, "cognitione" são executadas operações matemáticas.

Cláudia disse...

Com devida permissão do Sr. Rui Baptista.
Pelo Pe. António Vieira.

"Compete a Caridade Divina com a malícia humana".
António de Sousa de Macedo.

Cláudia disse...

Percebe que é afetado
estofo e douta confusão
entre fazer julgamentos
e não ter a correcção.

Anónimo disse...

Cara Senhora: deixe-se de parvoíces... em mau português! JCN

Cláudia disse...

Seria a (mordaça) um funil social ou para sociabilidade?

"Denominador da reflexão".

Cláudia disse...

De que maniera pode acertar uma ação de reflexo da causa própria, sobre um pensamento de razão social?
Qual a responsabilidade quando este destoa através da força da língua por metáforas?
Qual o impacto educativo que tem gerado este conflito aos princípios?
O que fazer para deter o gatilho das intenções que ganharam status maximizando a pessoalidade, (cada qual tem importância por urgência da própria causa).
A enxurrada de conceitos e informações determina para o pensamento comportar matrizes diferentes porém a consciência peca por ausência desta perspectiva de introspecção e seguridade.
O ser tornou-se um elemento para fora, somente em busca de, e quando todos buscam pensar, agir e construir com diferentes padrões, eis que o funil seja a seleção natural. E os argumentos que conseguem atender prevalecem como força expressão da língua portuguesa.

Pela satisfação de que alguma palavra possa ter colaborado com vossa exposição Sr. Rui Baptista.

Rui Baptista disse...

Caro Professor JCN: Nesta ocasião sinto-me no papel do sapateiro que não se limitou a criticar num quadro de Apeles a pintura do chinelo, passando daí para uma crítica ao resto da pintura. Aceitou com humildade este notável pintor grego de Alexandre Magno, que viveu na segunda metade do século IV a.C., a crítica à pintura do chinelo mas teve-a como abusiva quanto ao resto da pintura tendo proferido a seguinte e cérebre frase latina: “Ne sutor ultra crepidam” (não suba o sapateiro além da chinela). Surge-me aqui a estranheza de a frase que lhe é atribuída ser em latim.

Reconheço a minha culpa em não me ter expressado com a clareza necessária para fazer passar a mensagem de que nos seminários (ao nível do ensino secundário) não se deixou de ministrar o Latim. Continua a ser ministrado, mas (julgo eu) não com aquela intensidade e cuidado com que era ministrado, por exemplo, em fins da década de 40, na altura em que eu frequentava os respectivos estudos liceais.

E é aqui que eu gostaria de ser esclarecido (ou mais correctamente, ensinado) se esta minha perspectiva não será a de um sapateiro remendão ainda que se sinta amante (aquele que ama) do Latim, embora sem aquela soma de conhecimentos vividos em estudos que o habilitem a não (perdoar-me-á o plebeísmo) “meter o pé na poça”.

Sem sombra de dúvida que a vida eclesiástica exige estudos superiores de Latim que habilitem os padres da Religião Católica a lerem e a interpretarem como bem escreve e eu cito: (…) “como haveriam de ler quotidianamente os seus extensos e obrigatórios breviários?...).

E aqui deixo a prova do benefício que tenho tirado dos seus comentários sobre o Latim na esperança de não ser um pupilo pouco esforçado como sucede hoje na maioria dos nossos jovens escolares.

Cordiais cumprimentos.

Anónimo disse...

Caro Dr. Rui Baptista:

Muito me tocou a maneira polidamente subtil como, recorrendo à jocosa reacção de Apeles ante a crítica do sapateiro-remendão, atrevendo-se a subir acima da chinela, se desembaraçou muito habilmente do meu reparo, isento em absoluto de qualquer desprimorosa desatenção, pese aos grãos de sal que às vezes gosto de pôr na comida, seguindo à risca as académicas recomendações do grande Vacão. Sensibilizou-me! Como é capitoso terçar armas de luva branca e punhos arrendados! JCN

Anónimo disse...

E, já agora, caro Dr. Rui Baptista, permita, dando-lhe alguma razão, que volte ao assunto do Latim leccionado ou não nos nossos seminários. O que se passa é que, por razões de índole diversa, os alunos dos seminários estão sujeitos ao plano curricular do ensino oficial obrigatório, particular ou público, o que não tira que, complementarmente, não se vão enfarinhando nas enredadas construções do velho latim ciceroniano, que fez as delícias da nossa juventude, a minha pelo menos, ficando para mais tarde, na fase teológica, o seu aprofundamento. Padre que não arranhe latim... foi coisa que nunca se viu nem sentido faria num sociedade de raiz católica, apostólica, romana. Façamos votos pelo seu retorno à comunidade civil! JCN

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