terça-feira, 12 de julho de 2011

De como um professor de pequena estatura tropeçou no projecto curricular de escola e se espalhou ao comprido


Novo texto do professor António Mouzinho, de quem já aqui publiquei uma carta aberta sobre a educação nacional:

A escola portuguesa sofre de dois défices: de educação para uma cultura de conhecimento, e de organização central.

Boa parte do primeiro défice pode ser anulado com três gerações de instrução sistemática; para se conseguir isto, o país deve reorganizar, centralmente, o curriculum nacional, e proceder eficazmente na sua aplicação.

E, sejamos sensatos: o curriculum nacional não é organizado a partir do 75/2008, porque não é para isso que o diploma serve. É organizado na sede destas coisas (chamemos-lhe 5 de Outubro), deve propor uma tarefa ao país, cobrindo todos os tipos de conhecimento (técnico, artístico, básico, superior, formando canteiros e cantores, cozinheiros e críticos literários, atletas e fabricantes de loiça), e deve ser posto em prática de forma realista. A sede não pode andar a sugerir às escolas que se entretenham com exercícios de estilo — deve, antes, pôr à sua disposição os meios para concretizar a reforma legislada: o espaço, o equipamento, os docentes, os auxiliares.

Não pode estar, distante e vazia de ideias gerais, a propor aos docentes que particularizem e adaptem a partir do mais desfavorável dos quadros: um curriculum que já se sabe ser inadequado; uma população escolar que gostaria de estar noutro sítio a fazer outras coisas, e sente pouca curiosidade pelo saber e o que se passa na escola; uma estrutura rígida de ensino por faixas etárias, com acumulação em grandes turmas fixadas definitivamente nos inícios de ano; a progressão nos estudos por anos lectivos, regrada por programas nacionais que se dizem abertos à adaptação e horários de docência que de facto não permitem outro trabalho que não o da estrutura descrita.

Mais honesto seria dizer — senhoras e senhores, é um impasse: improvisem.

Porque, de facto, o improviso anda aí. Que outra coisa poderemos chamar às várias aulas de substituição, tutorias, apoios, mal frequentadas por uns quantos, com resultados imprevistos e nada sistemáticos, que tentam ser a alternativa criativa do ensino por módulos em grupos de trabalho homogéneos e correctamente dimensionados?

E como poderemos classificar a tendência para anular a complexidade de disciplinas abstractas, que só são válidas na sua abstracção, e não se compadecem com adaptações mais ou menos pedestres a um «regionalismo» do indivíduo e da circunstância?

E que podemos dizer da tentativa de sinal contrário que consiste em dotar um curso de carpintaria de floreados teóricos que não formam carpinteiros, para lhes dar a oportunidade de, um dia, poderem fazer um curso de engenharia de materiais?

Podemos dizer o seguinte: que é mais fácil do que repensar os acessos à universidade, os quadros das «equivalências», ou a necessidade delas.

Podemos acrescentar: que é uma estrutura mental, essa sim, vetusta, que quer que tudo tenha equivalência a tudo, que todos sejam iguais a todos, e que desta uniformização dos valores saia uma sociedade equilibrada. Desta uniformização, o que está a sair é uma sociedade ignorante, porque as particularidades não ressaltam da norma, e a protecção igualitária está a proceder a contrapelo: não desenvolve, de facto, o melhor que os indivíduos têm para dar.

A escola de sucesso para todos é aquela em que o alfaiate conhece o corte, e o geómetra o compasso.

A equivalência, essa, é dada pela competência.

E o acesso aos estudos superiores, pela instituição de ensino superior, segundo o interesse próprio.

Só neste sentido poderá entender-se um projecto curricular de escola.

António Mouzinho

5 comentários:

Ide levar no déficite ide disse...

Quando ouço falar de projecto curricular de escola puxo logo do revólver

disso e de 200 páginas A4 para imprimir as actas das reuniões

António Berger disse...

vejam esta, vale a pena passar.
Excelente


http://psitasideo.blogspot.com/2011/07/add-carta-de-indignacao-aos-nossos.html

Anónimo disse...

O curriculum “deve propor uma tarefa ao país, cobrindo todos os tipo de conhecimento (técnico, artístico, básico, superior, formando canteiros e cantores, cozinheiros e críticos literários, atletas e fabricants de loiça)” – é que não podia estar mais de acordo!!! Creio que assim se garantiria que a população escolar passasse a gostar de estar na escola.

“A sede não pode andar a sugerir às escolas que se entretanham com exercícios de estilo – deve, antes, pôr à sua disposição os meios para concretizar a reforma legislada: o espaço, o equipamento, os docentes, os auxiliares.”

Claro que isso não vai acontecer, para já! É uma questão de sensatez, olhemos à nossa volta, a conjuntura não permite resoluções tipo “milagre”, as condições físicas e humanas necessárias não vão melhorar num clicar de dedos. Que a tutela, e todos nós, não nos esqueçamos disso, - bem como das consequências implícitas para quem trabalha no local, incluindo os alunos!

Quanto ao improviso, ele vai continuar. Parece que a disciplina não curricular de Estudo Acompanhado vai ser só para os alunos que precisam: em que moldes? Tudo ao molho e fé em deus? Metade de uma turma, ou mais, 45m, ao fim da tarde, para todas as disciplinas? Só espero que seja, no mínimo, uma disciplina para cada “sessão de estudo acompanhado”, porque se não… será mais “salada de estudo acompanhado”. Seria outro exemplo de improviso contrário ao sublime significado da palavra, ou seja, seria um mau improviso!

São precisas “três gerações de instrução sistemática” para “anular boa parte do primeiro défice”. Partindo do princípio que o curriculum nacional deve ser reorganizado centralmente (o que concordo, embora com algumas reservas) as condições materiais e humanas acabadas de referir não se preveem breves. Se “proceder eficazmente na sua aplicação” é o mínimo que se pretende, temos também que pensar que isso não pode, (infelizmente) acontecer de um dia para o outro. Sejamos críticos e realistas com o que aí vier. O que de pior se poderia fazer aos embriões de mudança que se sentem pelo ar, como o professor António Mouzinho tão bem captou, era chamar-lhes “abortos”. Era uma sentença de morte ainda antes do nascimento, e ninguém o pretende, acredito.

É notório que a opinião pública já reclama qualidade para o ensino dos filhos – que todos nós saibamos aproveitar e contribuir para dar uma oportunidade à qualidade do ensino, para que a “proteção igualitária deixe de proceder a contrapelo”, passando a desenvolver, “de fato, o melhor que os indivíduos têm para dar”.

HR

Anónimo disse...

Que é "entretanham"?! JCN

Anónimo disse...

Acabei de saber que a área curricular não disciplinar de Estudo Acompanhado (só o nome cansa, de tão comprido) vai desaparecer, ficando as disciplinas de Matemática e Português com 45m semanais cada para trabalhar com os alunos. Ou seja, ambas as disciplinas vão ter 5h semanais. Parece-me bem. A Área de Projeto também se vai, e caso não seja substituida por nada, atenua um pouco a excessiva carga horária dos alunos. É evidente que não são boas notícias para os professores contratados...

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