sexta-feira, 8 de julho de 2011

A NOSTALGIA DAS CAMPAINHAS DAS PORTAS MAIS AS ATENTAS PORTEIRAS


Dado o grande êxito da última crónica sobre cafés às cores, não hesitámos em pedir à escritora Cristina Carvalho mais uma das suas prosas. Respondeu-nos muito amavelmente, na volta do correio, com o texto que se segue. Desfrutem:

A verdade é que tenho nostalgia de ver aquelas lambadas que os miúdos levavam das porteiras dos prédios ali em Campo d’Ourique e noutros bairros de Lisboa. Elas saltavam das cadeiras do átrio da entrada onde passavam o dia todo sentadas a fazer croché, orelhas atentas ao menor ruído inusitado, olhos espertos e capazes de vislumbrar um pequenino rato na curva dum degrau e a vassoura atrás da porta era um assustador instrumento de dissuasão que conseguia dispersar as intenções de qualquer atrevido que ousasse perturbar o ritmo da vida duma escada decente.

Conheciam toda, mas toda a gente que passava, quem saía, quem entrava, a que horas saía a pessoa do segundo esquerdo e a que horas entrava a viúva do rés-do-chão, o-raio-dos-miúdos-mal-educados lá de cima, a estúpida que sacode o pano do pó para a rua, a sopeira que deixa cair as molas da roupa no saguão, os magalas das sopeiras, as desavergonhadas das sopeiras que cantam o dia todo e não desenvolvem, umas entram, outras saem e não param naquela casa, algum defeito há-de haver! qual o dia do mês em que vinham os homens: o do gás, o da electricidade, o guarda-noturno, o limpa chaminés, o da mercearia, o da frutaria, o da leitaria, o simpático, o jeitoso, o bem cheiroso, o mal cheiroso, o antipático, o do cabelo oleoso, o que pisca os olhos, o que elas gostam e o que elas não gostam.

E aí vêm as férias do Natal mais as da Páscoa e as Férias Grandes que têm direito a iniciais maiúsculas como se de época santa se tratasse – oh miúdos, se vos apanho!! saí-me daqui das redondezas, não vos quero ver tão depressa e vou fazer queixa ao teu pai e tão depressa não vais passar aqui na rua, quanto mais à minha porta…

Todas estas ameaças eram mordiscadas logo de manhã pelas Santas Porteiras das Latas de Solarine Coração bem apertadas na mão esquerda, trapos de limpeza na mão direita e um bafejar, um hálito de limpeza no espelho de cobre que marcava os botões das campainhas da porta.

Era verão e as manhãs mornas. Era verão e as manhãs longas. E por ser verão de manhãs mornas e longas, a vida esticava-se ao comprido pelas ruas, e pelos passeios, a vida como um grande gato mole, a vida parada de cor acinzentada apesar do brilho do sol, apesar dos homens e das mulheres, apesar das crianças, apesar das férias e dos piropos dos rapazes e das raparigas frenéticas num pulsar doido de sexos e espreitadelas pelas esquinas ainda furtivas. Nessas manhãs longas e mornas, os miúdos estão de férias, a escola acabou, a marcha da aprendizagem inquieta da obediência cega sem direito a comentários nem refrões, por agora, tinha chegado ao fim. Os miúdos estavam de férias. Brincavam na rua o dia todo, de manhã à noite e o que fazer? o que fazer todo o dia?

CAMPAINHAS…

Todas doiradas, apetitosas, botõezinhos a brilhar e eles a passar como um vento, como uma cauda de ventania, um suspiro, um relâmpago, qualquer coisa muito ágil, verdadeiras línguas de calor e fogo, zááááas e zzzzttttttt e zzzzzttttttttt e zás zás mais zás, zás, zás, as suas mãozinhas espalmavam-se contra o espelho de todas as campainhas de todas as portas de todos os prédios de todas as ruas de todas as limpezas de todas as porteiras do mundo inteiro mais os gritos e os-ais-e-os-uis-que-te-apanho-meu-malandro e deixaste aqui dedadas, sujaste-me a porta toda, vais apanhar ai vais, vais! olhávassoura, olhávassoura e grita e grita e corre, corre, vai o verão vem o outono, vem a escola, vão os gritos, alegria que esmorece, tudo desaparece, quase tudo sem se ver, quase tudo sem se ouvir…

Era esta a nostalgia de que vos falava. Das mãozinhas nas campainhas das portas. Quando as porteiras os corriam à vassourada, depois de todas as cabeças de todas as donas de casa espreitarem às janelas, umas mais altas, outras mais baixas, umas curiosas, outras furiosas.

Era esta a nostalgia de que vos falava, esta das campainhadas. Hoje isto já não é possível, já nem há miúdos dispostos a carregar nos sinais luminosos, muito complicados e secretos dos painéis eletrónicos e computorizados que existem nas paredes dos prédios e onde uma pessoa tem de memorizar vários códigos secos e onde uma pessoa tem de ser extremamente hábil e inteligente para perceber por onde é que se começa, que botão tocar ao de leve, com a polpa da cabeça do dedo, dum certo dedo, em primeiro lugar para que dê acesso a uma informação que por sua vez acende uma luzinha de presença que vai indicar qual o próximo botãozito que se deve acionar de seguida até chegar ao apito final. Aqui sim! Zumbido, silvo, apito, qualquer coisa e a porta, com um estalido, abre-se finalmente depois de termos sido filmados de alto a baixo por uma câmara oculta sabe-se lá onde e por quem!

E as porteiras tal como as verdadeiras campainhas, aquelas porteiras que se eternizavam em cima duma almofadinha numa cadeira de madeira que rodava, rodava, rodava todo o dia numa azáfama preguiçosa, desapareceram para nunca mais serem vistas.

São as profundezas da vida. Misteriosas. Inequívocas.

Cristina Carvalho

9 comentários:

capitão disse...

Como tempo muda!
Eu vivi esse tempo dos "porteiros" dos prédios e fui encontrá-los "remasterizados" na ilha do governador no Rio de Janeiro, com família e tudo. Uma utilidade imprescindível, pela segurança e pela garantia de um topa a tudo, que muda lampadas, arranja canos e garante a manutenção diária do prédio nas zonas comuns e nas próprias habitações.

Anónimo disse...

"lâmpadas" ou "lampadas"? JCN

Anónimo disse...

De nostalgias é feita
a nossa breve existência,
pois até mesmo a direita
deixou de ter preferência!

JCN

Anónimo disse...

Recém-casados, pouco mais que adolescentes ainda, ébrios de felicidade, tínhamos por hábito colocar sorrateiramente um fósforo ou palito no botão das campainhas, fazendo-as retinir... indefinidamente, enquanto das janelas, fugindo rua abaixo, nos chegava aos ouvidos a ameaçadora e, ao mesmo tempo, complacente advertência: "Hei-de-vos comprar um brinquedinho... para se entreterem!". Que inocente... divertimento! Onde isso vai! JCN

joão boaventura disse...

Por associação de ideias ou por sugestão, este post remeteu-me para este facto curioso que respiguei no Diário do Governo n.º 182, de 05.08.1846, o que me permite reproduzi-lo, acrescido do simbolismo da representação social das classes, na era vitoriana, traduzida no toque das campainhas de então:

"O modo de bater ás portas das casas, em Inglaterra, denota a qualidade e categoria de quem bate: dar uma pancada de menos seria degradar-se, e dá-la de mais uma usurpação e uma insolência.

Uma pancada – leiteira, carvoeiro, pobre, criado da casa = eu quisera entrar
Duas pancadas – carteiro, um criado que leva um bilhete de convite ou qualquer outra mensagem, tenho pressa e trago ocupações = é preciso que eu entre
Tres pancadas – donos e amigos = abri
Quatro pancadas bem dadas e um curto repique– sujeito de bom tom, ainda que inferior á nobreza, e que vem de carruagem = eu quero entrar
Quatro pancadas secas e um repique dobrado e estrepitoso – mylord, mylady, um nababo, um príncipe russo, um barão alemão = eu vos faço uma honra em vir a esta casa."

E porque ainda a propósito fica o convite para a leitura de "«Truz, truz», portas e aldrabas também contam histórias" ínsita no blog Café Portugal.

Foi um prazer ter lido o post de Cristina Carvalho, pelo que o meu comentário não pretende mais do que pagá-lo e retribuir com adendas a propósito.

Cordialmente

Luís Palma de Jesus disse...

saudades das «Férias Grandes». 3 meses! e entre os setentas e oitentas mais de 3 meses.

excelente texto da Cristina C.

Anónimo disse...

De nada é feita a ventura,
pouco sendo necessário
para que uma criatura
mude em rosas seu calvário!

JCN

Cristina Carvalho disse...

Boa tarde,

Agradeço os comentários de todos. Para o João Boaventura e Luís Palma de Jesus também!

Cristina Carvalho

Anónimo disse...

He He He, essas porteiras hoje etariam todas presas, não sabeis que é um crime de lesa majestade dar uma (merecida) lambada numa criancinha? Ai que saudades que eu tenho dos carolos (merecidos todos eles) que levava nos salesianos......

Satanucho