segunda-feira, 4 de julho de 2011

O IRS, OS MÉDICOS E OS DOENTES

“Como a doença amplia as dimensões internas do homem!” (Charles Lamb, 1775-1834).

Em resposta ao recente comentário de Pinto de Sá (2 de Julho; 09:41) ao meu post, “O Memorando da Troika, a Doença e o IRS”, começo por lamentar que este importante tema social tenha passado quase despercebido (com excepção honrosa do comentário supra citado) sendo, assim, desperdiçada uma oportunidade de a discutir amplamente, uma vez que envolve o bem precioso de qualquer cidadão, hoje com saúde, amanhã eventualmente doente.

Bem sei que quando se é jovem, com uma saúde de ferro, sem dificuldades de natureza económica, o futuro, como se dizia na escola de antigamente, se apresenta “risonho e franco”. Quanto à velhice, a questão não se chega a pôr mesmo com o correr vertiginoso da passagem do tempo por haver sempre o recurso ao argumento de Baruch Spinoza: “Velhos são os que têm mais quinze anos do que nós”. Mas, já no caso do sexo feminino, a questão de um corpo sadio e belo, mas que a doença degrada inexoravelmente, assume importância o desabafo gracioso de Ninon de Lenclos, célebre escritora e beleza francesa, falecida em vésperas de perfazer 90 anos de idade: “Se Deus teve a infeliz ideia de infligir rugas às mulheres, pois ao menos devia ter-se lembrado de as ter colocado nas plantas dos pés”.

Portanto, não posso deixar de me congratular com o facto de o tema ter sido perspectivado e escalpelizado por Pinto de Sá, sob o ponto de vista de uma medicina transformada num negócio que tenha por fim o lucro fácil sem olhar aos meios usados para o alcançar. Assim acontece nos dias de hoje, embora esta crítica possa levar à injustiça de generalizações sempre perigosas. De facto, pertence ao reino da ficção a figura simpática, e desinteressada de bens terrenos, do médico João Semana, personagem do livro de Júlio Dinis, “As Pupilas do Senhor Reitor”. E, em exemplo da vida real, o grande humanista Albert Schweitzer (Prémio Nobel da Paz, 1952) , em deliberado abandono do conforto da civilização, entregou-se a uma medicina de missão, dedicando-se a doentes no deserto de Lambaréné (antiga África Equatorial Francesa), onde estabeleceu uma leprosaria para tratamento de uma terrível doença que desfigurava e dizimava inúmeros gentios.

São estes exemplos de dádiva ao semelhante que dificilmente encontram exemplo nos dias egoístas do nosso tempo, seja na medicina, na advocacia, na engenharia ou em muitos outros ramos de actividade profissional. Apresenta, no seu comentário, Pinto de Sá o caso passado com o seu sogro numa clínica privada (abordarei este assunto lá mais para diante), apresentando eu, por meu lado, o exemplo do meu sogro, médico-cirurgião, que se dedicou à sua profissão, mister duro, sem horários fixos e em desempenho de horas pouco alegres porque em contacto constante com a doença e com a morte (e a certeza de se tornar sua personagem futura.) Sem fazer fortuna, -lo com a honradez de quem viveu em conforto económico como paga da sua “hablidade de mãos” ao serviço de um cérebro dedicado a muitos e árduos estudos e anos esforçados de prática.

Comungo plenamente do seu comentário quando escreve: “Tal corte de deduções fiscais nas despesas de saúde é sem dúvida doloroso, especialmente para os pobres reformados”. O exemplo por si apresentado é sintomático e seria dramático na actualidade em que as respectivas e exorbitantes despesas de saúde seriam excluídas para efeitos de descontos do IRS, deixando-as de fora como um luxo de quem adquire um Mercedes topo de gama em vez de se contentar com um carro utilitário de pouca cilindrada. Mas, o pior disto tudo é a realidade da pessoa doente que se preocupa em melhorar, à outrance, o seu estado patológico ou apenas em tentar evitar que ele se agrave. Como é uso no dizer do povo, “vão-se os anéis mas fiquem os dedos” Ora, as contas a pagar são os anéis que mudam de dono… ficando os seus antigos proprietários sem eles e, em casos extremos, sem os dedos.

Obviamente, em minha opinião (embora se saiba que as opiniões valem o que valem), e ao contrário do que escreveu, meu caro Pinto de Sá, não partilho do seu optimismo de que esta medida restritiva de descontos para efeitos do IRS reduzirá a procura da medicina privada que terá sempre doentes/clientela por os hospitais públicos não estarem capacitados para dar resposta atempada a casos de graves doenças em que os dias correm vertiginosos nas folhas do calendário e muito mais rápidos na esperança da respectiva cura. São estas situações demonstrativas de que a saúde pode ser uma prática humanizada e não um negócio que sirva de pretexto para debitar extras próprios de salão de beleza, como o exemplo passado com o seu sogro numa clínica privada, e por si relatado com cáustica ironia: “Faziam-lhe a barba, punham-lhe uma loção na cara para ele ficar rosado e de pele brilhante, com aspecto de novo, e cobravam milhares”.

Mas não se pretenda ver nesta minha crítica à descida do plafond para despesas com cuidados médicos ou aquisição de medicamentos uma injusta e impiedosa discordância para com a medida tomada pelo actual Governo, pressionado pelo FMI, na tentativa hercúlea de tapar os buracos, ou mesmo crateras, de um Orçamento de Estado herdado da anterior e ruinosa gestão do Partido Socialista.

Apenas não encontro, isso sim, como solução válida esta medida, para mais associada a um imposto extraordinário e, como tal, a título excepcional (e todos nós sabemos como as excepções correm o risco de se tornarem em regra) que retira aos trabalhadores dependentes cerca de 50% do subsídio de Natal, deixando, em contrapartida, de fora desta medida “rendimentos de capitais de 80 milhões de euros”, com a discordância de fiscalistas como Vasco Valdez, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nos Governos de Cavaco Silva e Durão Barroso (Público, 02/07/2011). Em contrapartida, são diminuídos os benefícios fiscais que deviam continuar a merecer a atenção dos poderes públicos para não abandonar os cidadãos nas garras de doenças graves crónicas ou mesmo na iminência de uma morte que o instinto de sobrevivência do homem rejeita a todo o custo. Mesmo que para isso tenha que ficar pobre como Job, engrossando a lista de novos-pobres que o espectro horrendo do desemprego criou nestes últimos, recentes e tristes tempos tornando-nos, a nós portugueses, num povo desiludido, triste e doente. Irremediavelmente abatido!

Na imagem: Esculápio, deus da Medicina da Mitologia greco-romana.

2 comentários:

Accustandard disse...

Esse post nos convida a reflexão!

Rui Baptista disse...

Caro Accustandard:

Qual quê?! A saúde só é motivo de reflexão quando se transforma em doença e a doença preconiza o fim da vida...

Enquanto se tem saúde o que convida à reflexão é saber se o Fábio Coentrão sai ou não do Benfica, se o Villas-Boas é clone do Mourinho, do Bobby Robson ou dele próprio. Se o príncipe Albert do Mónaco tem 2 ou 3 filhos naturais. Fazer previsões sobre as “personalidades” do “jet-set” lusitano que estarão este verão na feijoada da “Caras” no Algarve, etc., etc.

Mais terra-a terra, eu não me atrevo, sequer, a reflectir sobre a vantagem ou não do impacto sobre a economia portuguesa do corte do subsídio do próximo Natal. Apenas me atrevo a fazer o seguinte raciocínio transformado em pergunta cuja resposta compete aos “experts” dar: sabendo-se que muitas das lojas sobrevivem à custa das vendas do Natal, não se dará o caso de muitas delas serem obrigadas a fechar as portas, aumentando, assim, a taxa de desemprego e deixando, como tal, de “pingar” nos cofres públicos os respectivos impostos?

Mas isto da reflexão, meu caro Accustandard, é algo de complicado ou mesmo esotérico. Ocorre-me a propósito, uma reunião, em que me foi dada a “honra” de participar, do tipo “peixe espada” (ou seja, chata e comprida)em que, a páginas tantas, o seu orientador, a propósito de uma questão de lana caprina nos lançou o difícil desafio da respectiva reflexão.

Aceitei o desafio, pondo o cotovelo sobre a mesa e apoiando o queixo sobre a respectiva mão, assumi a postura do “Pensador de Rodin”. Remédio santo, por o “riso ser a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica”(Eça), com o prazer estampado no rosto por logo aí ter terminado a importante reunião, saímos da sala de reuniões como o condenado à morte que é indultado à última hora.

Cumprimentos cordiais

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