O post Tudo se teria evitado, gerou alguns comentários inteligentes, que merecem uma resposta em conjunto. Eu sei que há explicadores e colégios que ensinam para a boa nota, e que procuram ensinar os truques necessários para fintar a avaliação. Mas isso resulta do facto de as avaliações continuarem a não estar ao mesmo nível de preocupação do ensino e da aprendizagem, ou melhor provocarem outro tipo de preocupação, quando deviam provocar uma atenção do mesmo género. E também de continuar a ser vista como um aspecto secundário e posterior, e não devia ser. Ou melhor, quando não se investe bem nas avaliações, no aspeto formativo e instrutivo delas facilmente se põem ao serviço das boas notas, ou preocupadas só com as boas notas, o que deturpa as coisas.
Por outro lado, é fácil pô-las a ir ao encontro dos erros e das deficiências do ensino e da aprendizagem, utilizando-os em seu proveito. É óbvio que se eu tiro muito boa nota porque o explicador adivinhou as áreas em que ia incidir o exame, ou foi fácil adivinhar os temas, ou o modo como os temas seriam testados na avaliação; ou se me ensinou a melhor forma de responder, desprezando o resto da informação, necessária para a boa formação, isso só quer dizer que os professores fazem pontos em que só a informação considerada mais importante é avaliada, ou que incidem demasiado em certos aspetos, ou que verificam somente um número reduzido de competências, ou que não ligam grande importância à questão dos objetivos e a acham despicienda, ou nem sequer a percebem, etc. O que é um erro. Não só porque os alunos descobrem isso rapidamente e adaptam-se aos modos de perguntar, aos “temas”, mas também porque a matéria “mais importante”, se as coisas estiverem bem feitas e tiverem como objetivo uma boa formação, é um conceito sem grande significado. O menos importante é quase sempre necessário para que o mais importante se reconheça de facto como mais importante, isto é, adquira solidez, fundamento e funcionalidade intelectual e científica, que é o que interessa. Não quer dizer que não haja alguma hierarquia nos assuntos, mas que não se devem queimar etapas nem competências nem conhecimentos, porque todos são necessários e a avaliação deve dar conta disso.
Em termos de avaliação deve haver coerência entre aquilo que se ensina e se quer que os alunos aprendam e aquilo que se avalia. E coerência quer dizer sintonia de conhecimentos, de operações mentais, de relacionações, de solicitação e dinamização de conhecimentos, de compreensão de problemas e de estratégias na abordagem dos assuntos e na formulação das respostas, enfim de competências a obter. Para as quais são indispensáveis os conhecimentos, que devem ser avaliados com exigência adequada e rigor. Mas não pode a avaliação reduzir-se a isso, porque a formação é muito mais complexa e engloba todos estes aspetos; considerar só os conhecimentos e sobretudo os aspectos que permitem obter boas notas, desprezando o resto, é uma porta aberta para a fraude ou a formação enviesada e, por isso, falseada. Preparar exclusivamente para a avaliação é falsear a formação.
Mas a avaliação tem quase sempre formas de fugir a estes truques, e deve fazê-lo porque estes implicam quase sempre formas de aprisionar e de empobrecer a formação. Ora, para que isto não se verifique são necessários professores com muito boa formação ao nível da avaliação, com consciência tanto dos seus perigos como das suas enormes potencialidades, e, portanto, preocupados em utilizar modalidades de avaliação variadas, o mais possível contínuas e formativas. E portanto com testes bem feitos; isto é, sem truques, nem rasteiras, nem demasiado fáceis nem excessivamente difíceis, mas suficientemente discriminativos, isto é, capazes de distinguir entre alunos maus, médios, bons e excelentes e classificá-los em conformidade. Por exemplo, diz-se muito mal dos “testes americanos”. Mas isto não tem muita razão de ser. Se eu quiser avaliar, por exemplo, a capacidade de expor ideias, de discorrer, de argumentar, de redigir, é óbvio que o teste de escolha múltipla não avalia esses competências.
Mas para conhecimentos, capacidade de raciocinar, distinguir entre vários aspetos, discriminar, escolher entre opções certas e erradas com grau de dificuldade adequado, e se o teste estiver bem feito ele é (ou pode ser) mais discriminativo do que uma pergunta de resposta aberta. Neste tipo de respostas, como todos os professores sabem, alguns alunos dizem por vezes tais coisas, e de tal maneira, que, a certa altura das correções, se torna difícil avaliar com rigor o que lá está. É uma tarefa de grande complexidade, para a qual raramente se tem o tempo, a competência e a disponibilidade mental necessárias. O que a torna sujeita a muitos perigos.
Acresce que há motivos políticos e sociais que, por vezes, são introduzidos no sistema corrompendo os objetivos científicos e pedagógicos. Se eu quiser melhorar os resultados escolares ou reduzir a taxa de insucesso, faço testes fáceis e é evidente que obtenho melhores resultados. Mas isso degrada o sistema, introduz muita gente no mercado com competências e conhecimentos abaixo do que os diplomas dizem, o que é um fator de confusão e de desordem social e económica. Mas a decisão é política, e face às grandes percentagens de abandono ou de repetência, a tentação é grande. A educação e a investigação educacional não podem ser responsabilizadas por isto. Não se diga que isto é culpa das ciências da educação e da investigação que se faz, porque é acrescentar um obscurantismo a outros que por aí andam. Se se estudar, um pouco que seja, a investigação feita sobre a avaliação, podemos apreciar o progresso extraordinário que se obteve a este nível, e os recursos de que hoje os professores podem dispor para avaliar com rigor e para usar a avaliação como um auxiliar precioso para a formação dos alunos. Simplesmente isto requer recursos científicos e de tempo que não há, tendo que recorrer a formas mais elementares e mais fáceis, e, portanto, mais fáceis de boicotar.
A investigação já nos dá recursos, mas não temos todos os meios para a aplicar. Põe-se um problema algo parecido com o dos transplantes, de fígado, por exemplo. Segundo parece os conhecimentos e as técnicas têm evoluído muito, já se podem fazer com uma boa expectativa de sucesso, mas é uma operação altamente complexa, difícil e perigosa. Sendo assim, que se deve fazer? Pratica-se somente quando há todas as condições, para se reduzir ao máximo o perigo e potenciar o sucesso, ou, à falta de meios humanos, científicos ou económicos, fazemos os transplantes com o que há e seja o que Deus quiser? Ninguém hoje aceitaria esta segunda alternativa, não é verdade? Pois é esta que se aceita e se pratica em geral na educação. Com a agravante de que, muitas vezes, os que têm que fazer o trabalho têm um conhecimento apenas rudimentar das técnicas e dos conhecimentos que nelas estão implicados.
João Boavida
terça-feira, 5 de julho de 2011
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3 comentários:
Com a gratidão de quem muito proveito tirou da leitura atenta deste excelente texto, saúdo o seu autor por este notável estudo académico sobre o sempre complexo e polémico tema da avaliação dos alunos. Obrigado Professor João Boavida.
Para avaliar alguém
na sua sabedoria
há que saber para cem
ou ter mais categoria!
JCN
Um doutor avaliado
por pessoa analfabeta
é caso só constatdo
neste país de opereta!
JCN
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