segunda-feira, 4 de julho de 2011

Café às cores


Com a amável autorização da autora, reproduzimos a última crónica da escritora Cristina Carvalho no sítio Literatura PNet:

Desde que se democratizou o consumo do cafezinho nas nossas próprias casas, quem não tiver uma maquineta de tirar bicas, daquelas que engolem cápsulas de várias cores – cada cor seu paladar como os “rajás fresquinhos” – não tem nada! Você pode não ter mais nada, mas uma maquineta de tirar cafés, tem, com toda a certeza. Tem-na na sala, naquela mesita baixa ao pé da televisão, tem-na na cozinha ao lado do micro-ondas, até a tem no vestíbulo da entrada se já não tiver cabimento em mais lado nenhum. Tem-na.

Começa porque a máquina é bastante cara. Mas isso não tem, realmente, grande importância. Faz parte daquelas aquisições que o vão fazer sobressair no seu estado social, mais não seja porque é yesssss! Máquina de café mais o estojozinho ou sem estojo, uma coleção de cápsulas brilhantes e eficazes. Um problema: que fazer com as cápsulas usadas? Fora? Lixo? E o ambiente… Mas já inventaram um capsulão, a verdade é essa! E desde que o capsulão apareceu no bairro, é tudo muito melhor, muito mais limpo. Mais o preço das cápsulas e a estafa, a demora inacreditável, a espera submissa na asséptica loja onde ali e só ali – a não ser que um cristão tenha internet e faça a encomenda – se pode comprar o aveludado cafezinho.

Tudo isto se desculpa porque oferecer a um amigo, uma visita ou o próprio tomar este aromático líquido, é compensador.

Não é de todo desagradável estar em pé numa daquelas lojas lindas, educadas tempos e tempos sem fim! Esperar longos minutos com uma senha na mão e observar demoradamente os empregados tão aromáticos como o próprio café e parece que quase não falam, parece que os seus pezinhos deslizam sobre nuvens de algodão doce quando saem por detrás do balcão e gentilmente nos estendem os braços e nos entregam o saco com o que acabámos de comprar. Atendimento altamente! Nada tem já a ver com aquelas lojas de café que existiam no Martim Moniz ou na Praça da Figueira onde homens enormes, gordíssimos, de batas brancas manchadas com riscos e sombras acastanhadas que eram a mancha desenhadas por vestígios de pó de café, suportavam o peso duma existência inteira dedicada à delicada composição dos lotes de café. E uma pessoa saía com um pacote de papel pardo na mão, atado por um cordel, nas extremidades.

Hoje, nestas novas lojas, há ar condicionado e um balcão para provas de café e altas colunas coloridas onde estão inequivocamente arrumadas milhares e milhares de cápsulas que apresentam as tais cores variadas conforme o nome e a proveniência e há esperas e sorrisos e desejos e vinganças e encontros e desencontros, tudo num certo espaçar de tempo com determinada ideia: eu não sou qualquer um. Eu gasto deste café. E mesmo que se esteja ali vinte, vinte e cinco, trinta minutos ou mais à espera de ser atendido, não existe um esgar, um azedume, qualquer tom de impaciência nessa espera desgastada. Há uma sobranceria qualquer, uma ideia, uma máscara, um enfeitar, um regozijo, satisfação, enlevo, um gozo premeditado, um prazer que se imagina por se receber mão na mão, olhos nos olhos, o impulso quase triste de se caminhar na direção da porta de saída ostentando um saquito ufano recheado de caixinhas multicores cheias de pó de café comprimido e burguesote.

E finalmente, quem sabe, ó céus! ó enlevo máximo! ó sublime visão de categoria, de grande categoria: à nossa espera, ali encostado rente ao passeio a fervilhar de gente cheia de saquitos de cápsulas, para cá e para lá, rua acima, rua abaixo, um automóvel cor de prata e lá dentro, óóóóó!!! John Malcovitch empoado, sentado, de sorriso cândido, John com asas, John sem asas, John nas nuvens mais o seu amigo, o Clooney, aquele rapaz que tresanda a café do bom, do requintado, o George nas alturas a subir uma escadaria celeste, degraus de algodão, fato branco, luminoso, imaculado.

Ah se todos os Johns e todos os Malcovitch’s e todos os Georges e todos os Clooneys do mundo inteiro soubessem o sacrifício que um mortal passa para beber e ter acesso a uma só cápsula, uma só indestrutível cápsula de café…

Cristina Carvalho

22 comentários:

Anónimo disse...

hummmm, detecto uma pontinha de inveja? Na verdade o café é bom, caro mas bom e esse caro nem se nota porque só o facto de não ter que me submeter á lotaria do café da manha num qualquer café de bairro já conpensa. Entrava num café de manhã a pensar se beberia uma bica como deve de ser ou uma zurrapa imbebivel mas de lote platina (e lá estava sempre o saquinho de quilo vazio ao pé do moinho para o comprovar).
Amiga,essa azia toda e logo á segunda de manha faz-lhe mal, olhe, beba um cafézinho que isso passa-lhe.

Atentamente e com rspeito,

Satanucho

Unknown disse...

Uma delícia!
O café e o texto!

Anónimo disse...

E depois de todos estarem viciados e rendidos às máquinas de cafés de cápsulas, as empresas de café podem aumentar o preço das mesmas à vontade, pois o mercado estará viciado e não poderá arranjar um pacote de café ou grãos como dantes genéricos e mais baratos.

uma maneira de prenderem o cliente!

Anónimo disse...

Eis como o Marketing cria necessidades artificiais e as manipula por forma a que o consumidor pague valores absurdos por um produto que vale menos do que o conjunto da "embalagem" em que o envolvem.
Parece o negócio das águas, no ridículo e na insustentabilidade. Excepto para quem vende claro, porque para o negócio das emoções e espiritualidade há-de haver sempre clientes dispostos a pagar muito por muito pouco.

Helena Sacadura Cabral disse...

Cara Cristina
Nunca me senti tão retratada na minha imensa bonomia para com estas malfadadas cápsulas.
É tudo verdade e - ó céus! - tornou-se tão visceral que já nem damos por isso...
Isto é uma dependência, um vício, algo maléfico. Tão maléfico que repetimos vezes sem conta o sacrifício e continuamos.
Eu tenho duas máquinas. Uma fina, elitista, branca, na casa de jantar. Outra preta, na cozinha.
Ou seja eu sou completamente idiota. Porque o seu post e o meu comportamento o mostra à saciedade. E continuo. Haverá solução para gente assim?! Temo bem que não...e as empresas sabem disso.

Tiago Sousa disse...

Não pude deixar de elaborar um post no meu blogue, onde fiz a analogia da era do consumismo de café e das aparências,com o aliciante mundo do consumo televisivo da privatização da RTP e da diversidade de canais por cabo, que muitas vezes escondem a qualidade e necessidade do serviço público.

Parabéns pelo seu post didáctico e que promove a reflexão.

Deixo o link do meu texto: http://mniadscrever.blogspot.com/2011/07/privatizacao-da-rtp.html

Mea Culpa Mea Maxima Culpa Miserere Dominus Meo disse...

o café é o ópio do povo

libertem-se das amarras da cafeína burguesa que escraviza os proletários ao jugo da máquina

de cá fé....

Mea Culpa Mea Maxima Culpa Miserere Dominus Meo disse...

bebam chá d'erva cidreira que é produção nacional

Mea Culpa Mea Maxima Culpa Miserere Dominus Meo disse...

Não pude deixar de elaborar café no meu café, onde fiz a analogia da cafeína com o café das aparências,descafeinado e com o aliciante mundo do consumo de café feito de chicória e cevada feita em torresmos e da privatização da DELTA Cafés esse antro capitalista do Nabeiro e da diversidade de máquinas de café, que muitas vezes escondem a qualidade e necessidade do serviço
manual....pois

Anónimo disse...

Onde foi vossemecê arranjar este latim?! JCN

Fartinho da Silva disse...

Texto excelente, os meus sinceros parabéns! Num país de aparências, onde poucos sabem fazer contas e onde quase todos odeiam quem as sabe fazer, a Nestlé encontrou uma mina...

Manuela disse...

Já repararam que o café em cápsulas sai a mais de €50 o kilo, enquanto que o café biológico (o mais caro em pacotes)não chega a €15?

Anónimo disse...

A Nestlé não encontrou uma mina, criou mais uma. Há já muito que explora a mina das águas engarrafadas vendendo água da torneira filtrada que 99,99999% dos consumidores não faz ideia do que está a comprar.

Anónimo disse...

Por que não diz isto... de cara descoberta? JCN

Cristina Carvalho disse...

Muito bom dia!

Vou responder a Satanucho (nome giro!...), vou responder a Helena Sacadura Cabral. A todas as outras pessoas que comentaram este texto, agradeço muito por todas as opiniões.

Satanucho, Bom dia Satanucho! (não posso deixar de invocar este nome. Gosto mesmo!...)
Respondendo, pois, a Satanucho: não estou azedada, não estou incomodada e para mim, 2ª feiras são dias iguaizinhos a outro dia qualquer. Inveja? De quêêêêê?? Da máquinas Nespresso? Nenhuma inveja! Se quisesse podia ter uma em cada divisão da casa, a bem dizer, nos 4 cantos de cada divisão de minha casa o que iria prefazer uma quantidade exuberante de maquinetas. Não. Não tenho inveja nem disto nem de coisa nenhuma, meu amigo. Já sou "velha" para invejas. E sabe? A única coisa que eu peço à vida é que me deixe escrever aquilo que eu gosto e me apetece. Que não me dê nenhuma macacoa pelo caminho. E os escritores não são gente fácil... São, por norma, atentos e observadores. Vulgaridades, não!
Agradeço o seu comentário, Satanucho. Volte sempre.

Helena Sacadura Cabral: a Helena sabe o que eu quis dizer. Agradeço a sua compreensão e o seu comentário que, sem saber direto, foi subtil, elegante e claro, inteligente! Muito obrigada!

Já agora, e não tendo absolutamente nada a ver com a marca Nespresso, faço aqui a minha própria publicidade, se não se importarem de a receber e aproveitando este espaço magnífico que é este blog de tanta consulta e visibilidade:

www.cristinacarvalho.org

Em Setembro sai outro livro meu pela Sextante Editora/Porto Editora que se chama Lusco-Fusco.

Com licença e muito obrigada!

Cristina Carvalho

Gael disse...

Anónimo deixou um novo comentário na mensagem "Café às cores":

Onde foi vossemecê arranjar este latim?! JCN

é baixo latim é tão baixo latim

que já ninguém se lembra dele

deixo-lhe quelque chose in gaelico

Décio disse...

Quem sabe escrever desta forma não deve saber ter inveja de coisas tão pequeninas quanto uma chaleira glorificada.

...digo eu, que tenho inveja de quem sabe escrever desta forma...

;)

Anónimo disse...

A conversa sobre as maquinetas do café às riscas... acabou furtivamente com toda a gente a desconversar, afora os comentários censoriamente eliminados pelo caminho ou por julgados menos alinhados ou demasiado discordantes, ou seja, mangativos. Vai-se tornando hábito! JCN

Anónimo disse...

que 99,99999% dos consumidores não faz ideia do que está a comprar.

Esta frase e muito interessante. Supondo que existem cerca de 10 milhoes de habitantes actualmente em Portugal e que o numero de consumidores e certamente inferior a esse temos que no maximo existem

10^7 * (1-0.9999999) = 10^7 * 10^-7 = 1

Portugueses que sabem o tal segredo.

Possivelmente apenas o autor sabera isso em Portugal. O verdadeiro iluminado solitario.

Anónimo disse...

Só faltava este anónimo... desmanha-prazeres! JCN

Anónimo disse...

Corrijo a gralha "desmanha"por "desmancha",antes que venha por aí alguma H(ilariante) R(eflexão)! JCN

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bem haja do comércio a sabor.

"O problema não é meramente americano. É mundial"

Vale muito a pena ler o artigo do jornal Público que indico de seguida   Mais do que uma análise do estado da América, reflectido nas elei...