Novo artigo de Guilherme de Almeida, que foi profesor de Física no Colégio Militar em Lisboa:
Fundado em 1803, o Colégio Militar (CM) já tem 208 anos de actividade. Ao longo de todos estes anos, mercê de alguns espíritos mais esclarecidos, a sua Biblioteca acumulou obras de grande valor, embora a existência de muitas delas seja desconhecida dos estudiosos desta temática e de outro público interessado. O CM localiza-se no Largo da Luz, em Lisboa.
O actual acervo da Biblioteca do CM é constituído por livros entrados em diferentes épocas e sabe-se que os primeiros volumes chegaram por iniciativa de Cândido José Xavier, um dos mais antigos directores. Mais tarde, por volta de 1834, o acervo da Biblioteca cresceu substancialmente com a chegada de muitas outras obras, algumas bastante antigas, resultantes da extinção de ordens religiosas e do posterior encaminhamento de muitos desses livros para o Colégio. A estes acrescentaram-se as obras oferecidas por bibliotecários, por ex-alunos e também as de instituições culturais. No que se refere especificamente aos livros de Astronomia, a obra mais antiga (com data impressa) que consegui encontrar remonta a 1755, ano que curiosamente coincide com o do terramoto que assolou a cidade de Lisboa e arredores.
O leitor interessado em livros antigos de Astronomia tem na Biblioteca do Colégio Militar uma quantidade e variedade consideráveis de obras sobre esta temática. Devido à passagem de muitas décadas, ou até de alguns séculos, grande parte da informação contida nestes livros é datada: estava correcta à data da impressão mas os progressos da ciência revelaram novos resultados, outras interpretações e diferentes maneiras de ver. Isso não lhes tira mérito, pois quem folheia essas páginas com prazer não está certamente à procura das últimas novidades astronómicas, mas delicia-se com as estampas características da época, encanta-se com a beleza da exposição dos assuntos (alguns ainda actuais) e até com o toque especial daquele papel envelhecido. Algumas obras estão em estado precário. O Colégio Militar faria bem em disponibilizar ou requerer as verbas e os apoios técnicos para que lhes sejam prestados os merecidos cuidados de restauro por mãos profissionais.
Para os leitores interessados indico as referências (cotas) que permitem a localização das obras pelos funcionários bibliotecários: o primeiro número é uma referência da Biblioteca e a segundo designa a estante correspondente onde o livro se encontra (a indicação “dep.” significa “depósito”). Agradeço ao Sr. Manuel Marcelino Nunes (Bibliotecário do CM) a eficiência manifestada na localização das obras, escolhidas a meu pedido, bem como a informação sobre as origens dos livros existentes na Biblioteca.
As obras que a seguir se referem vão indicadas por ordem cronológica, mas decidi colocar logo no início os livros sem indicação de data, presumindo-se que esta omissão poderá corresponder a maior antiguidade. Farei uma descrição geral (muito resumida) das diversas obras, tecendo comentários mais pormenorizados a duas delas. Como é evidente, a Biblioteca possui diversos livros de Astronomia muito mais recentes, que não referirei nestas linhas por não se enquadrarem no âmbito deste artigo.
Notions d’Astronomie, de Eugène Catalan (sem data), é uma exposição elementar interessante, com poucas ilustrações (referências: 2275; I8/D2).
O livro Astronomie Populaire à l’Usage des Gents du Monde et des Familles, de F.R. Braun (sem data), contém uma exposição elementar, de leitura muito agradável e atraente; foi elaborado para servir de guia ao Atlas du Monde Céleste que referirei seguidamente (referências: 126; E5 dep).
A obra Atlas du Monde Céleste (autor e data não mencionados) ostenta apenas a indicação "Aug. Schnée Éditeur à Bruxelles", mas merece uma referência especial pela forma como está elaborada. É um livro cativante, interessantíssimo do ponto de vista estético e também pela sua originalidade, mas precisa de restauro urgente. O autor faz as representações de 30 constelações por meio de um sistema engenhoso de cartões perfurados—um por constelação—onde marca as silhuetas das figuras correspondentes. A representação das estrelas mais brilhantes obtém-se por meio de furos de diferentes formas e tamanhos proporcionais aos brilhos das diferentes estrelas. Observando estes mapas contra a luz, as "estrelas " parecem brilhar literalmente, simulando o aspecto visual de cada constelação (estas figuras têm fundo azul e não resultam nas reproduções a preto e branco, pelo que não incluí nenhuma neste artigo). Este livro não tem páginas de texto e apresenta-se no formato 24 cm x 32 cm, com 30 estampas e um mapa celeste de grandes dimensões (48 cm x 57 cm), também elaborado com perfurações (referências: 126; E5).
Passando às obras com data impressa, a Histoire Générale et Particulière de l’Astronomie, de Estève, em 3 volumes (1755) é um livro com muito interesse documental, sem figuras e com informação datada (referências: 313; E7).
Abregé d’Astronomie, obra do famoso astrónomo francês Joseph Jerôme Lalande (1732-1807), publicada em 1774, faz uma abordagem concisa e diversificada da Astronomia da época, de uma forma resumida mas eficaz. A sua exposição é agradável e abrangente; o capítulo sobre alinhamentos de estrelas merece uma chamada de atenção especial (referências: 539; E6).
Merece especial destaque o Atlas Céleste de Flamsteed (do famoso astrónomo real inglês John Flamsteed, contemporâneo de Newton); o original foi publicado postumamente em 1725 e o volume disponível na Biblioteca é a 3.ª edição (1776), corrigida e aumentada, da tradução francesa levada a cabo pelos astrónomos franceses Lalande e Méchain. Trata-se de uma obra de grande valor, que deverá ser considerada uma relíquia de grande interesse estético, histórico e documental (precisa de restauro urgente). Apresenta-se no formato 16,5 cm x 23 cm, com um total de 170 páginas. Contém 29 gravuras magníficas, tabelas com as posições de 762 estrelas (equinócio 1800), conversão de unidades de arco em unidades de tempo, indicações para a localização das constelações no céu e até alguns problemas resolvidos. As ilustrações são excelentes, não é de mais repeti-lo, e folhear este livro encantador é um prazer impossível de descrever por meio de palavras (referências: 7556; F4d).
Leçons Élémentaires d’Astronomie Générale et Physique, do astrónomo francês Nicolas Louis Lacaille (1713-1762), publicado em 1812. Informação textual clara e concisa (referências: 260; E7).
Ainda da primeira metade do século dezanove, a Biblioteca possui a obra A Treatise on Astronomy, de Sir John, Herschel, publicada em 1835. Aborda aspectos fundamentais da Astronomia, pela mão de um astrónomo de grande renome, filho de outro astrónomo não menos famoso: William Herschel (informação datada). Trata-se de um livro de grande valor documental, ainda em bom estado de conservação (referências: 2794; F7d).
Elaborada por um autor português, Astronomia Spherica e Nautica, de Mattheus V. do Couto (1839) é uma obra interessante, versando a Astronomia de posição e as suas aplicações à arte de navegar (referências: 974; E6).
Escrita com o intuito de fazer divulgação, já em 1857, a obra Astronomie Populaire, do astrónomo francês Dominique François Arago (1756-1853), em 4 volumes, é hoje um livro de grande de interesse histórico, com valor documental extraordinário, e uma exposição cuidada das matérias; contém algumas estampas desdobráveis, diversos mapas e pequenas figuras com interesse (referências 35; E7). Encontra-se em bom estado de conservação.
Histoire de l’Astronomie, de Hoeper, publicado em 1873, é um livro essencialmente documental, recheado de maravilhosas descrições textuais, mas pouco ilustrado (referências: 2212;E2d).
Outra obra interessante Les Soleils, ou les Étoiles Fixes, de Delaunay (1878), contém uma exposição muito clara, acompanhada por algumas figuras (referências: 2289; F8d).
De l’Origine du Monde—Théories Cosmogoniques des Anciens et des Modernes, de H Faye, é outra obra que vale a pena consultar, embora a informação nele contida seja de validade estritamente histórica. Esta edição é de 1885 e contém aspectos representativos do pensamento do século XIX (referências: 4923; dep).
Initiation Astronomique, de Camille Flammarion (1908), contém noções fundamentais em linguagem clara, cativante e acessível, ao nível da iniciação como o título sugere, pelo punho de um astrónomo e divulgador de primeira água. Possui algumas ilustrações de pequena dimensão, bem características da época e encontra-se em óptimo estado de conservação. É uma obra datada mas importante, porque nos revela mais uma vez que a intenção de divulgar os conhecimentos científicos já existia no princípio do século (referências: 687;1 D8). A Biblioteca possui uma tradução portuguesa deste livro: Iniciação Astronómica (1910), vertida para a língua portuguesa por Manoel Ribeiro (referências: 6209; D7).
Ainda no plano da divulgação científica, Comment Étudier les Astres (1908), de Lucien Rudaux, descreve as observações astronómicas de amador, numa linguagem viva e atraente, que trespassa e quase faz esquecer os mais de cem anos decorridos desde a sua edição (é óbvio que os instrumentos descritos e alguns procedimentos são antigos). Descreve as técnicas de observação astronómica de uma forma atraente, ilustrada com figuras muito interessantes (referências: 6092; D6).
Mars et ses Canaux, ses Conditions de Vie (1909), de Percival Lowel, é outro livro-relíquia, em estado de conservação razoável. Trata-se de uma descrição documental e monumental (informação datada) das observações e registos de Marte, por uma figura ímpar na história da Astronomia. Note-se que o autor foi um dos observadores que pensaram ver canais na superfície do planeta Marte (referências: 6778; G3d).
De outro autor português, P. da Silva, Astrolábios Existentes em Portugal (1917) é uma compilação interessante e com boas ilustrações (referências: 7481; Pasta 5).
Este artigo dá uma ideia da riqueza da Biblioteca do CM e permitirá que os leitores interessados acedam por si mesmos a este tesouro inestimável. As pessoas menos atraídas pelas subtilezas da antiga Astronomia encontrarão gravuras de grande beleza, que certamente verão com agrado. A consulta é possível aos estudiosos, mediante marcação e autorização prévias. Espero que quem venha consultar estas obras o faça com tanto prazer como o que estas relíquias me proporcionaram.
Guilherme de Almeida
1 comentário:
Caro Professor Guilherme de Almeida,
gostaria de entrar em contacto consigo, para lhe falar de um projecto relativo à divulgação da Ciência que tenho em mente, mas não consigo encontrar o seu endereço de e-mail na internet.
Se puder e estiver interessado, deixo-lhe aqui o meu e-mail: jpcalafate@gmail.com
Peço desculpa aos restantes leitores do blog pelo meu comentário, que de nada tem a ver com o "post"!
Os meus parabéns ao autor do artigo, por este e outros artigos e pela divulgação de Ciência que tem feito em Portugal.
Os melhores cumprimentos,
João Pedro Calafate (Professor de Ciências da Natureza do Ensino Básico)
Enviar um comentário