"Vivemos numa época de especialização do conhecimento, causada pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários.
A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, aos quais a linguagem, alguns códigos e a informação progressivamente setorizada relegam naquele particularismo contra o qual nos alertava o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido de pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo - de povos ou indivíduos - gera paranoias e delírios, as deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, preci-samente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração."
Mario Vargas Llosa
7 comentários:
A ciência ligar à poesia
não é tarefa fácil, mas possível,
sem perder aliás categoria
nem deixar de manter rigor e nível!
JCN
A minha área é a literatura, mas considero que quer a arte quer a ciência, simplificando, são fruto do pensamento e da imaginação, logo, um acto criativo. E a criatividade é um universal humano. É importante não esquecermos o bosque, de facto a especialização pode ter como consequência a perda de identidade com o todo. Mas não partilho a clivagem aqui defendida entre literatura (arte) e ciência. Até porque, a literatura (e a arte) são tanto mais geniais quanto mais engendradas numa essencial e profundíssima solidão.
HR
Hr o teu comentário foi bastante interessante, na minha opinião.
Há de facto uma clivagem artificial criada por uma elevado número de teóricos e artistas durante anos a fio entre ciência e literatura/artes.
De facto é uma diferença artificial.
A Relatividade mudou a forma como pensamos o espaço e tempo(espaço-tempo) e mudou significa que nos enriqueceu com toda a sua beleza, simplicidade e força para nos incitar para o desconhecido, ainda mais para o desconhecido. Que estrutura maravilhosa!, mas é apenas um exemplo.
Ciência e Literatura/Artes não estão próximas, são parte do mesmo e nascem da mesma necessidade, da mesma fome.
São a mesma coisa.
Interpretar os cientistas como seres estanques em linguagens herméticas, sem noção do conjunto é o mesmo, como tu bem disseste, que interpretar o escritor isolado ausente do mundo, dos outros e da visão de conjunto, perplexo na complexidade da folha branca.
Penso que essa clivagem tem mais que ver com preconceito; a penicilina/Fleming não é menos importante que Tolstoi.
Artur
«A somar a isto esteve o facto de que a escola, tal como muitas do seu tempo, mostrava uma forte preferência pelas artes e humanidades em vez das ciências. Tanto o grego como o Latim eram de grande importância, e, embora Einstein gostasse do rigor lógico do segundo, nunca se consegui entender com o Grego e muitas vezes provocava a raiva do professor de Grego que, ecoando as palavras do velho mestre escola de Einstein, declarou que ele nunca seria alguém.»
Michael White e John Gribbin, Einstein, p.20, Publicações Europa-América, 2004
correcção ortográfica:
conseguiu
POESIA COM TODOS
Cante o poeta os astros do universo,
o sol, a lua, a noite e a manhã,
cante o prazer de uma existência sã
e o incomparável balouçar de um berço!
Cante o que é belo e bom na natureza,
fazendo versos cheios de harmonia
a tudo quanto tem categoria,
altura e sentimentos de nobreza!
Da ciência cante os êxitos fantásticos,
as suas paulatinas descobertas,
em veros musicais e perifrásticos!
Cantemos a virtude, a tolerância,
a crença em Deus, as almas encobertas
de cada ser humano em sua infância!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Artur
Continuando uma conversa que se anuncia interessante,
- o seu segundo parágrafo é maravilhoso!
- o problema que me incomoda na questão ciência/arte (a dicotomia é artificail e usada apenas como metalinguagem) é que a ciência tem ancoragem num método científico inquestionável que permite eliminar, com mais ou menos celeridade e eficácia, os "maus cientistas", já na literatura/arte, não há nenhuma metodologia para evitar o "efeito-bosta" que se reflecte nas inúmeras publicações de coisas horríveis e mesquinhas que acabam por contribuir para a atribuição de prémios-nobel muitas vezes divorciados da excelência, como me parece ter acontecido em Portugal com o nobel da literatura.
(Não me refiro ao nobel que deu origem a este post, não o li)
HR
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