domingo, 18 de outubro de 2009
UMA VIAGEM A BRUXELAS COM UM SALTO A BRUGES
Do meu livro "Curiosidade Apaixonada", saída na Gradiva (na imagem o "Atomium" de Bruxelas):
Se Londres tem o seu Big Ben e Paris tem a sua Torre Eiffel, Bruxelas, a capital da Bélgica, tem como seu índiscutível ícone o Atomium. Trata-se de uma estrutura gigante que representa nove átomos de ferro, cada um deles uma esfera essencialmente de ferro. As esferas, em número de nove, dispõem-se segundo uma geometria simétrica: oito ocupam os vértices de um cubo e a nona está no centro desse cubo. Ao turista poderá passar despercebido o significado do arranjo geométrico. Mas, no olhar de um cientista, o Atomium representa a célula (padrão que se repete) da rede cristalina do ferro, que é, na gíria da cristalografia, uma “rede cúbica de corpo centrado”.
O monumento foi construído em 1958 para a Exposição Mundial que teve lugar em Bruxelas. Foi nesse mesmo ano em que se formou a Comunidade Económica Europeia, antepassada da actual União Europeia. Esta teve por base uma associação de países europeus, motivada pela economia do carvão e do aço (lembre-se que o aço é uma liga de ferro e carbono!). É sempre difícil ler uma obra de arte. Mas no Atomium o ferro simbolizará talvez a robustez da economia europeia. As barras entre as esferas metálicas representarão quiçá as forças coesivas entre os países da união. E a simetria da estrutura terá a ver com a harmonia que os “pais da Europa” pretendiam para o futuro do continente.
Bruxelas é hoje a capital indiscutível da Europa. É aí que residem a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu. É aí que trabalha uma multidão de burocratas que fazem movimentar uma miríade de papeis em todas as línguas europeias. Mas o visitante fará melhor em evitar os enormes e não muito bonitos edifícios que contêm a megalómana administração europeia e, em vez de disso, visitar alguns lugares que são inescapáveis numa viagem a Bruxelas.
O primeiro é decerto a Grande Place. Grande mas elegante, integra o flamejante “Hotel de Ville”. Aqui a multidão não é de burocratas mas de turistas, pontificando as máquinas fotográficas digitais dos japoneses e os guias extraordinariamente visuais da Dorling Kindersley (existe uma edição em português da Civilização do guia de Bruxelas, mas a explicação que fornece do Atomium está errada). Para apreciar melhor a praça não há como subir a um dos andares superiores da cervejaria “Au Roi d’Espagne”, justificando a visita ao lugar com a deglutição de uma cerveja “Leffe”. Se este aperitivo abrir o apetite, há uma Rue des Bouchers (“Rua dos Magarefes”, um nome que provém decerto do passado medieval) a transbordar de restaurantes, incluindo mesmo na Grande Place o português “Casa do Manuel”. Se o visitante conseguir sobreviver ao verdadeiro assédio gastronómico que caracteriza a referida rua, poderá chegar ao recatado “Leon”, um sítio com tradição alicerçada na sua cerveja própria (a Bélgica é a capital mundial das cervejas!) e nos seus mariscos, vindos todos os dias directamente do Mar do Norte.
Além de capital mundial das cervejas, Bruxelas é também a capital mundial da banda desenhada. O visitante ganhará em ir ao Centre Belge de Bande Déssinee, ainda que não seja entendido em histórias aos quadradinhos. Passará não só a entender um pouco da nona arte como poderá deslumbrar-se com o edifício “art nouveaux” do arquitecto belga Victor Horta. O herói do museu é naturalmente Tintim, que aqui se diz “Tãtã” (há várias “liaisons portugaises” de Tintim, uma das quais é a presença de um cientista da Universidade de Coimbra na expedição relatada no álbum “A Estrela Misteriosa”). Há uma exposição permanente dedicada a Hergé e às aventuras do jovem repórter e da sua simpática cadela. Mas há também Spirou, Lucky Luke, Mortimer e muitos outros heróis. Há toda uma multidão de heróis de papel, incluindo os mais recentes, como Schuiten, o belga autor com o seu compatriota Peeters da original série “Cidades Obscuras”, que inclui um interessante álbum dedicado a Bruxelas. Schuiten criou um notável cartaz para a exposição “Coimbra na Banda Desenhada”, que esteve no Museu de Física da Universidade de Coimbra (há, de resto, uma conexão curiosa entre aquele museu e a banda desenhada, por ele ter servido de base a uma história de Schreder, um amigo e colaborador de Schuiten: “O Segredo de Coimbra”).
Bruxelas é ainda uma das capitais mundiais da pintura. O visitante não deve perder o enorme Museu de Belas Artes, onde o “crème de la crème” é representado pelas secções dedicadas à família Brueghel, nomeadamente Peter o Velho e Peter o Novo, e pelos surrealistas René Magritte e Paul Delvaux (este último, especialista em nús em encenações insólitas, merecia ser mais conhecido). Quanto aos Brueghel impressionam as paisagens flamengas cheias de pequenas figuras e pequenas histórias, quase como na banda desenhada. Alguns quadros do pai foram repetidos pelo filho em várias cópias, tão boas ou melhores que o original, o que explica a existência do “mesmo” quadro em vários museus do mundo. Quanto aos surrealistas belgas, a melhor palavra para definir a reacção do visitante talvez seja surpresa. Magritte e Delvaus surpreendem-nos em cada quadro!
Por falar em paisagens flamengas, se se está em Bruxelas, é obrigatório dar um salto à Flandres. A Bélgica actual é uma vaga confederação da Valónia (a sul, de língua francesa) e da Flandres (a norte, de língua flamenga). A região de “Bruxelas Capital”, habitada em coexistência pacífica pelas duas populações, funciona é uma espécie de enclave entre as duas regiões. Há muitos sítios na Flandres que merecem uma visita, mas nenhum merece tanto como Bruges. Bruges foi a capital do Norte da Europa na Idade Média, nos séculos XIII a XV. Foi um importante porto de mar e entreposto comercial, nomeadamente de têxteis. O burgo foi no seu tempo áureo uma babélia de mercadores de todos os sítios do mundo então conhecido, incluindo, claro, os portugueses (a feitoria portuguesa, por onde passou Damião de Góis, foi, com o declínio de Bruges, mudada para Antuérpia). Hoje Bruges, que já foi capital cultural da Europa, vive de uma única actividade: o turismo. O visitante volta a encontrar aqui as mesmas máquinas fotográficas e os mesmos guias turísticos ilustrados que viu mais a Sul, na Grande Place. O “petit nom” de Bruges é a Veneza do Norte, um título que, para quem passear de barco ao longo dos canais, se afigura inteiramente merecido.
A histórica Bruges está muito bem conservada, fazendo as invejas de qualquer cidade histórica portuguesa. É, como já alguém disse, um verdadeiro museu ao ar livre. O gótico medieval, feito de pequenos tijolos vermelhos, coexiste, por vezes confunde-se mesmo, com o neo-gótico dos românticos do século XIX. Foram os ingleses que descobriram Bruges, no século XIX, quando o burgo não passava de um amontoado medieval em ruínas. Os brugenses foram afinal vítimas do seu próprio sucesso, pois construíram tantos diques para proteger a sua cidade que a água do mar foi ficando cada vez mais distante... e os barcos e o comércio tiveram a certa altura de ficar muito ao largo. O exemplo de Bruges mostra que a riqueza pode desaparecer rapidamente... Reminiscências da riqueza antiga encontram-se hoje não apenas nas impressionantes fachadas góticas mas também nos interiores, como o Museu Groeninge (rico de primitivos flamengos, como van Eyck e Memling, que por acaso nem eram nada primitivos nem eram todos flamengos) e o Hospital de Saint Jean, hoje Museu, onde se podem apreciar os brilhantes trípticos de Memling (Memling por exemplo não era flamengo: era alemão, da região de Frankfurt) para além de conhecer as condições em que funcionavam os hospitais medievais.
Se o Atomium é o simbolo de Bruxelas, o símbolo de Bruges é a torre Belfort, construída pelos mercadores medievais sobre o mercado coberto para mostrar o seu poderio económico e da sua independência. O visitante dificilmente se aperceberá que a torre tem uma inclinação de um metro, como que a querer rivalizar com a torre italiana de Pisa, tal como os pintores flamengos rivalizavam com os seus contemporâneos italianos. Hoje em dia, os sinos da torre debitam de quando em vez concertos de carrilhão e o visitante terá no pátio anterior de se desviar um bocadinho do meio para gozar o melhor som.
As relações entre a Bélgica e Portugal são antigas e ricas. Não só uma filha de Afonso Henriques casou com o Conde da Flandres como o pintor van Eyck esteve em Lisboa como ainda os escritores Almeida Garrett e José Rodrigues Migueis viveram em Bruxelas. Mas também na ciência houve relações luso-belgas: No século XVIII, João Chevalier, um padre oratoriano fugido à perseguição pombalina, foi bibliotecário real em Bruxelas e presidente da recém-formada Academia Belga das Ciências. João Chevalier, foi, com o seu colega de congregação Teodoro de Almeida, um dos primeiros físicos portugueses. Uma viagem a Bruxelas pode também servir para procurar relações com Portugal e descobrir que elas são mais do que à primeira vista se poderia pensar...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
AS FÉRIAS ESCOLARES DOS ALUNOS SERÃO PARA... APRENDER IA!
Quando, em Agosto deste ano, o actual Ministério da Educação anunciou que ia avaliar o impacto dos manuais digitais suspendendo, entretanto,...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à in...
3 comentários:
Duas discordâncias pontuais, no meio de uma concordância geral e saudosa: o parlamento europeu é em Estrasburgo; a capital da cerveja (na minha opinião) é Munique
M. Helena Cabral
Visito o país regularmente há perto de trinta anos, por força de laços familiares próximos.
Reconheço com agrado todas as referências que faz a Bruxelas e a Bruges. Muitas outras haverá, quer nas cidades que menciona, quer em muitas outras localidades da Bélgica, país que tem bastante mais a oferecer que o simples facto de albergar a capital administrativa da União Europeia.
Penso que, de facto, Munique reunirá mais "votos" ao título invocado mas, na minha opinião, as cervejas belgas, sobretudo as artesanais (as Trappistes), são indiscutivelmente melhores.
Fico sempre satisfeito quando alguém que visita a Bélgica (ou sómente Bruxelas), transmite uma impressão positiva dessa visita, o que nem sempre acontece. Talvez porque o país não é um destino turístico óbvio e de cartaz!?
Jorge Magalhães Nunes
A apreciação de Bruxelas se limitou, basicamente, aos locais mais conhecidos e turísticos. Discordo fundamentalmente que o símbolo de Bruxelas seja o horrível Atomium. O centro histórico da capital belga é, sim, o seu símbolo, que data do ano 1000 d.C. Bruxelas têm parques maravilhosos, como o "Parc du Jardin Français", aonde se localiza o Museu de Arte Africana, legado colonialista do Rei Leopoldo II. Além deste, o bosque de Watermael-Boitfort, o Boit de la Cambre em Ixelles, o Parc de Tervuren e a Forêt des Soignes são grandes áreas verdes dentro de Bruxelas que não devem deixar de ser visitadas. Além disso, o "Museu de Belas Artes" é dividido no Museu de Arte Antiga, no qual os quadros de Rubens e originais de muitos outros pintores famosos estão em exposição. Finalmente, embora a questão das cervejas seja realmente polêmica, de acordo com o gosto de quem as experimenta, meu voto vai para a Hoegaarden (1o lugar), as Chimay (2o lugar) e Duvel (3o lugar).
Enviar um comentário