quarta-feira, 14 de outubro de 2009

IMAGINAÇÃO, CIÊNCIA E ARTE 4


Quarta e última parte da série com o mesmo título:

A imaginação da ciência

Poder-se-á pensar que o esforço de imaginação científica, confinada como está pela observação e pela experiência, é menor do que o da imaginação artística, como a imaginação do escritor, do artista plástico, ou do músico. Porém, o nosso mundo é suficientemente complexo para ter desafiado e continuar a desafiar a imaginação humana. É possível conhecer o mundo, como mostra não só toda a história da ciência mas também toda a história da técnica, associada à ciência, que conduziu ao nosso actual modo de vida. O processo que conduz a esse conhecimento tem exigido doses imensas de imaginação. A aventura do conhecimento continua na actualidade, exigindo uma imaginação cada vez maior. Hoje, mais do que ontem, a formulação de uma hipótese científica está longe de ser trivial. Exige, ao mesmo tempo, um grande conhecimento e uma grande imaginação. estando esta limitada por esse conhecimento. O conhecimento nada pode sem a imaginação e a imaginação nada pode sem o conhecimento. E daí a dificuldade experimentada pelo cientista no seu trabalho. O físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) resumiu esse facto quando afirmou no seu livro “O Que é uma Lei Física” [20], uma compilação das palestras que deu em 1964 na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e gravadas para a BBC, que, na ciência, a imaginação tem de estar “contida dentro de uma camisa de forças”. Quis com isso dizer que o acto de imaginar o que a realidade possa ser a partir daquilo que é (a tal camisa de forças!) é bem mais difícil do que imaginar livremente. Pode até acontecer que um esforço de imaginação conduza de A a C, quando uma resposta mais adequada, que requer um esforço ainda maior, é D.

O novo conhecimento científico tem sempre de ser de algum modo compatível com o velho. Por exemplo, podemos não saber muito sobre a matéria e sobre a vida, mas sabemos que a matéria é feita de átomos e que os seres vivos são feitos de células, que por seu turno são feitas de átomos. Qualquer coisa mais que se venha a saber sobre a matéria ou sobre a vida tem de respeitar esses conhecimentos prévios e básicos, isto é, nunca se irá descobrir amanhã que afinal a matéria não é feita de átomos e que os seres vivos afinal não são feitos de células. O conhecimento vai sendo adquirido, mas só é adquirido o que não prejudica o que já foi antes adquirido, ou melhor, que não prejudica muito porque terá sempre de prejudicar alguma coisa. Neste sentido, pode dizer-se que a ciência é não só inovadora como conservadora. Para ser ciência tem de ser, ao mesmo tempo, inovadora e conservadora (Einstein emendou Galileu e Newton, mas conservou Faraday e Maxwell). Não pode nem inovar demasiado, nem conservar demasiado, tendo constantemente de procurar um justo meio-termo. É no meio que também aqui reside a virtude.

Feynman, ele próprio um autor diletante de poesia e até de artes visuais na fase final da sua vida (escusado será dizer que a sua arte ficou muito abaixo da sua ciência...), enfatizou a dificuldade da imaginação na actividade científica no seu livro “O Significado de Tudo” [21], que reúne uma série de conferências que proferiu, em 1963, na Universidade de Washington – Seattle, nos Estados Unidos:

“É surpreendente que as pessoas suponham que não há imaginação em ciência. É um tipo de imaginação muito interessante, diferente da do artista. A grande dificuldade reside em tentar imaginar algo que nunca se viu, que seja consistente em todos os pormenores com o que já se observou e ao mesmo tempo que seja diferente do que até aí se pensava; mais, terá de ser uma afirmação bem definida, e não apenas uma proposição vaga. É, na verdade, difícil.”

Será difícil, mas é precisamente a dificuldade da imaginação no trabalho científico que confere um valor acrescido tanto a essa imaginação como a esse trabalho. É a dificuldade que desencadeia o génio.

Em resumo e para concluir: É fácil para toda a gente perceber o papel que a imaginação desempenha na arte. O valor da arte é, em grande medida, o valor da imaginação. Mas é entendido por menos gente que a imaginação também é um ingrediente fundamental da ciência, ainda que de uma forma um pouco diferente. Se mais pessoas soubessem que a imaginação é comum à arte e à ciência e que na ciência também é necessária uma grande imaginação, talvez a ciência gozasse de um maior reconhecimento na sociedade. E, nesse caso, a polémica das “duas culturas” inaugurada em 1959 por Lorde Snow [22] faria menos sentido, ou, talvez mesmo, sentido nenhum.

REFERÊNCIAS:

[20] Richard P. Feynman,
“O Que é uma Lei Física”, Lisboa: Gradiva, 1989.
[21] Richard P. Feynman,
“O Significado de Tudo. Reflexões de um Cidadão Cientista”, Lisboa: Gradiva, 2001.
[22] C. P.
Snow, “As Duas Culturas”, Lisboa: Presença, 1996.

FIGURA:
Richard Feynman, o Nobel da Física tocador de bongo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Entre muitas outras, eis uma frase a reter:

"nunca se irá descobrir amanhã que afinal a matéria não é feita de átomos"

Especialmente interessante pois tanto o conceito de matéria, como o de átomo, têm uma história e o seu significado tem vindo a ser alterado. Isto só mostra que não é nada claro que se saiba do que falamos quando falamos em átomos e matéria. Como tal, a frase só pode ter sentido se for entendida como um postulado, uma regra pressuposta "a matéria é feita (??) de átomos", o que a esvazia de qualquer conteúdo empírico. Logo, não é possível descobrir que a matéria não é feita de átomos pois postulamos que a matéria é feita de átomos. Se pensarmos como tentou pensar, por exemplo, o Hertz, o Schröndinger ou como se pensa, actualmente, em Mecânica Quântica estocástica,já vemos que a afirmação aqui citada pode ser falsa.

Por outro lado, e como é bem sabido desde Aristóteles, pelo menos, o conhecimento científico, porque é contigente, dá-se mal com essa coisa do "nunca" e do "sempre".

E ainda assinalável que em todas estes textos termos como "imaginação" e "conhecimento" tenham aqui, ao longo destes textos, sido referidos de forma confusa e obscura. Exactamente do que fala Fiolhais quando fala em "imaginação"? E o que é isso do "conhecimento" para Fiolhais?

Feynman afirmou nesse mesmo "o que é uma lei Física?: "Para se ser considerado um filósofi profundo é necessário tão-só dizer generalidades compreensíveis por toda a gente."
Creio que o Feynman fez uma terrível confusão entre os filósofos e o cientístas que gostam de escrever umas "filosofadas".

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