terça-feira, 20 de outubro de 2009

"Areté" e "Kakia": Qual escolher?

Texto de Alexandra Azevedo, professora de Grego, Latim e Português do Ensino Secundário, com quem o De Rerum Natura falou há uns meses atrás a propósito do ensino da Cultura Clássica em Portugal.

A escola de hoje estrutura-se a partir de uma série de princípios e valores que devem alicerçar a identidade pessoal e social do aluno, de modo a formar cidadãos autónomos e responsáveis. Os saberes fundamentais em uso, devidamente articulados pelas competências, permitirão ao aluno a integração plena na vida activa. É claro que o conceito de competência se tem de alicerçar em conhecimentos. Que médico enquadra competentemente a sua prática sem recurso ao conhecimento de dados clínicos, que conjuga e sobre os quais reflecte? Que pintor igualmente competente usa a policromia e o polimorfismo sem conhecimento de temas e modalidades estéticas?

A memória atenta da conhecida, mas talvez falaciosa, Querelle des Anciens et des Modernes, que teve lugar na Academia Francesa no século XVII, conduz-nos à noção de que o progresso se fará sempre da consideração do clássico, porque a eternidade deste permite o jogo da imitação, da renovação, da contestação, da superação, estando ele sempre presente, qualquer que seja a opção tomada… uma vez que, qualquer que esta seja, partimos sempre do velho, por vezes ancestral, para a edificação do novo.

Tudo isto para reflectir hoje sobre um texto pleno de actualidade, excerto dos Memorabilia, (literalmente, O que é digno de ser lembrado), escrito por Xenofonte, autor ateniense, onde ele evoca a figura de Sócrates (na figura).

Assim, no capítulo II, Xenofonte, na voz de Sócrates, relembra a fábula que o filósofo Pródico contara: um dia, o jovem Hércules é abordado no seu caminho por duas mulheres. Uma é bela, tranquila e pura, a outra é exemplo de beleza copiosa e atraente. Numa há a graça e a docilidade, noutra a volúpia e o artifício. A primeira chama-se Areté - perfeição, em grego – e a segunda Kakia – maldade, prazer. Ambas se degladiam, esgrimindo argumentos para convencer o jovem a segui-las…

Que oportuna e sugestiva esta alegoria, entusiasmante pela linguagem simples, mas cheia de significado: ela revela que a vida se faz de escolhas que determinam o caminho que seguimos. Cedo é dada esta verdade aos nossos alunos – não conhecem eles a facilidade e êxtase do perigo, do risco, do prazer? Não se revêem eles nas dúvidas de Hércules, jovem, belo e forte, ao poder escolher, ao acompanhar a Kakia, o caminho mais fácil? Não terá interesse, afinal, levá-los a reconhecer que o melhor prémio será a perfeição e a excelência no caminho da vida, apesar das dificuldades e do trabalho que a sua obtenção pressupõe?

Com as palavras de Xenofonte, acedemos à discussão de questões morais variadas, que nos permitem um trabalho educativo rico num quadro de formação integral.

Penso ser este o papel do professor de hoje (como o de ontem!) – escolher e discutir bons modelos textuais, ricos em exemplo e facilmente transpostos através do diálogo com os alunos para a vida quotidiana moderna, onde todos os dias uma Kakia espreita...

A escola, hoje como ontem, não pode desistir de fazer a pedagogia do esforço, pois de outra maneira não estará a fazer aquilo que se propõe: preparar para a vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

"A escola, hoje como ontem, não pode desistir de fazer a pedagogia do esforço, pois de outra maneira não estará a fazer aquilo que se propõe: preparar para a vida."

Confesso que tenho cada vez mais dificuldade em analisar a educação através de antinomias (esforço/prazer; excelência/mediocridade; rigor/laxismo; ordem/caos, etc.). É forma redutora de analisar qualquer temática.

PJ

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