Sobre José Saramago ter declarado ser a Bíblia um “manual de maus costumes” e “catálogo de crueldades”, o De Rerum Natura perguntou à Classicista Alexandra Azevedo se os mesmos juízos poderão ser feitos em relação às obras antigas, como a Ilíada ou a Odisseia e, caso isso seja possível, que sentido poderão ter. A resposta é a que se segue:
A Bíblia, «o livro dos livros», contém, para além da vertente sagrada em que se estruturam e edificaram tantas civilizações, a história do povo judaico e, também, a história da humanidade.
Independentemente do credo religioso que sigamos, ou de não seguirmos credo nenhum, não lhe podemos negar o estatuto de referência da cultura mundial. A sua antiguidade, o seu modo de transmissão geracional justifica leis e actos duros ou mesmo, cruéis que, na actualidade, podemos ter dificuldade em entender. A própria figura de Deus é construída e materializada com base no modo como o Homem vivia a justiça, a culpa, o castigo.
Para além de toda a exegese bíblica, fica o conhecimento da ancestralidade que delineou o nosso modo de pensar e de ser.
À semelhança desta obra, outras obras antigas dão-nos conta de culturas fundacionais, como é o caso das conhecidas epopeias homéricas que foram edificadas por acrescentos que a tradição aédica oral permitira. Será legítimo, portanto, questionarmo-nos também sobre os códigos que encerram, as leis e as práticas que descrevem, os sentimentos que enaltecem, as guerras sangrentas de que dão conta.
Ninguém parece contestar – mesmo quem não viu mais do que a grande metragem Tróia, onde Brad Pitt actualizou a figura do "divino" Aquiles – o seu valor estético, histórico e moral.
Poderemos, então, refolhear as suas páginas e lembrar que, na Ilíada, o vate invoca logo na abertura a Musa para que o ajude a cantar «a cólera de Aquiles». Este, irado, por lhe ter sido roubada a escrava querida, depois de se distinguir heroicamente em combate, recusa-se a combater em Tróia. Porém, ao saber que o seu amigo Pátroclo morrera às mãos de Heitor no seu lugar, entrega-se, num ódio quase insano, à perseguição dos inimigos.
Quem leu esta obra ou viu o filme lembrar-se-á da cena em que Aquiles amarra o cadáver de Heitor ao seu carro, arrastando-o numa corrida alucinada, recusando-lhe o descanso, que as leis consagravam. Horroriza ver o herói, feito de força e agilidade, ser capaz de tal impiedade. Mas reconhecemos humanidade ao seu carácter, reconhecemos-lhe também verdade e intensidade.
Em geral, sentimos que, nas epopeias, os homens e as mulheres movem-se por paixões: o pai que pede ao inimigo, sem altivez, o cadáver do filho; o marido, que ao regressar a casa vinte anos depois – «o divino Ulisses» – mata os pretendentes que lhe roubavam os bens…
Longe, porém, de as considerarmos um «catálogo de crueldades».
É que estávamos no século VIII antes de Cristo. Esquecê-lo e transpor para o presente, sem qualquer interpretação, os quadros que tais obras descrevem, torná-las-ia ininteligíveis, restando-nos a sua denúncia e condenação por revelarem “maus costumes”.
Em suma, a Bíblia e as grandes epopeias, como Ilíada e a Odisseia, sendo a origem da literatura ocidental, ajudam-nos a compreender onde e como se edificaram os costumes, maus e bons, que têm feito de nós o que somos. São eternidade.
Imagem: Aquiles e Pátroclo
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
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8 comentários:
Estaria inteiramente de acordo, excepto quanto a uma questão:
É que ao contrário da Bíblia, ninguém nos tenta enfiar a Ilíada ou Odisseia na cabeça como código de conduta ou como código definitivo de valores pelos quais nos devemos reger.
Fernando Torres
Concordo com a autora do post e com o comentário de Pascoal.
Recebi o Prêmio Dardos do Blog Caminhos do Turismo pelo turismólogo.
O prêmio em questão visa reconhecer o "desempenho de blogueiros na transmissão de valores culturais, éticos, literários e pessoais, que demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras".
O selo foi criado com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à web, diminuindo as barreiras à comunicação e à amizade.
Ao receber o Prêmio, há algumas regrinhas a serem seguidas:
1) Exibir a imagem do selo em seu blog;
2) Linkar o blog pelo qual você recebeu a indicação;
3) Escolher outros 15 blogs a quem entregar o PRÊMIO DARDOS;
4) Avisar os escolhidos.
Você é um deles.
Abraço, Lúcio Alcântara
De facto olhar para estes "escritos" - Bíblia - não nos colocando no seu tempo, pode causar distorções.Por outro lado os principios de moral e bons/maus costumes foram tendo parametros de avaliação diferentes ao longo dos tempos. Por fim, mesmo não sendo crentes, mesmo discordando de muito do que se escreveu no Antigo e no Novo Testamento - e até tendo dificuldade em entender - , tudo pode ser desmontado, ou esclarecido, com correcção, com dignidade e sem insulto facil.
E também me vão dizer que o Corão não tem nada que ver com a condenação à pena capital, por exemplo, de homossexuais em países muçulmanos como o Irão?
Já ontem comentai aqui para mostrar que a bíblia, o livro do Génesis, é utilizado pelo Vaticano para justificar a sua não aceitação de actos homossexuais, mas também outras coisas. Não se pode negar isso. Não percebo esta moda de criticar Saramago por dizer o óbvio! Será ineja pelo Nobel? Eu também não simpatizo muito com o homem nem gosto dos seus livros, mas parece-me que ele tem razão.
Volto a por o exerto do site Vaticano e o link:
The natural truth about marriage was confirmed by the Revelation contained in the biblical accounts of creation, an expression also of the original human wisdom, in which the voice of nature itself is heard. There are three fundamental elements of the Creator's plan for marriage, as narrated in the Book of Genesis.
e depois:
Homosexual acts “close the sexual act to the gift of life. They do not proceed from a genuine affective and sexual complementarity. Under no circumstances can they be approved.
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20030731_homosexual-unions_en.html
luis
Pois! A questão é mesmo essa. O Alcorão ou a Bíblia são referencias culturais mas não modelos de conduta.
Asneira é ver na Odisseia ou na Bíblia a voz de Deus e pretender impor um código moral, imutável, a partir deles.
É a questão da moral relativa ou absoluta.
Concordo com o que diz a Alexandra Azevedo. Tirar do contexto temporal as obras é um disparate chapado. Hoje já ninguém enfia coisa nenhuma a ninguém. Quem quer aceitar como acto de fé aceita quem não quer não o faz. É simples.
Estúpido é esta cruzada do Saramago e só não o seria se fosse feita com todos os livros "sagrados" de todos os credos. Assim é apenas uma vingança pueril.
Não participo de nenhuma cruzada contra o Saramago, porém acho muito perigoso alguem ler, por exemplo, O Evangelho segundo Jesus Cristo do Saramgo, sem antes ter lido o Evangelho original, pois perigas ter uma visão completamente Saramago e não a sua propria visão.
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